a criança com lesão cerebral - Visionvox
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a diferenciado de acompanhamento com infantários especiais, escolas especiais, terapia ocupacional e oficinas protegidas tem-se alargado e pode ser já considerado completo em muitas regiões.
Quadros clínicos que ainda há anos eram significativos, no aspecto quantitativo, quase que desapareceram, a lesão cerebral mínima, a disfunção cerebral mínima foi aparentemente descoberta de novo, pelo menos foi novamente definida e, desse modo, foi esclarecido um campo que anteriormente pouca atenção merecia.
Apesar disso, para cada um dos casos, os cuidados não se tomaram significativamente menores, surgiram novas questões e dificuldades de que mal se suspeitava anteriormente, quando se tratava sobretudo de crianças. Trata-se aqui, sobretudo, da problemática da idade e da integração social e profissional com ela relacionada, tanto do jovem como do adulto. Este livro tornou-se, por assim dizer, mais velho com o seu autor e com uma grande parte das crianças por ele acompanhadas. Também os seus pais ficaram, entretanto, mais
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velhos. Do mesmo modo devem ser também apresentadas as experiências que a esse respeito se fizeram. O significado do provérbio «Criança pequena - pequenos cuidados - criança grande - grandes cuidados» tornou-se, para todos nós, muito claro. Onze anos são um longo período na vida de uma criança com lesão cerebral. Também a pessoa que a trata seja, ela professor, educador, terapeuta, médico ou psicólogo mas, sobretudo, mãe e pai sentirá o desenvolvimento de uma criança, durante esse período de tempo, como uma pesada tarefa. A experiência não traz apenas mais conhecimentos; ela traz também o perigo da resignação, que é também o produto deste longo período.
Nesta nova edição muito foi acrescentado, alterado, adaptado. Algumas partes permanecem sem alteração dado que, em nossa opinião, a informação original mantém-se actual.
Este livro é muito pessoal e, por isso, subjectivo. No fundo, o título também devia ser alterado pois a criança com lesão cerebral evoluiu, entretanto, para jovem e para adulto; e - isto é um conhecimento dos anos passados - quem considera apenas a criança passa ao lado de cuidados, necessidades, angústias e deveres essenciais.
Os congressos, colóquios, livros, filmes, artigos e discursos a esse respeito são actualmente em grande número. A criança com lesão cerebral tornou-se interessante e lucrativa para a medicina, psicologia, pedagogia, sociologia e política.
Quando surgiu, na sua primeira edição, este livro era um dos primeiros sobre este tema. Actualmente, há uma multiplicidade de artigos e livros em todos os domínios da pedagogia, sociologia, medicina, etc. O tema é actual e é proporcionalmente desprovido do interesse de muitos. Infelizmente, também daqueles a quem esta área serve de emprego, ou daqueles que nela querem ingressar. Para muitos, hoje, o seu compromisso de simpatia para com o deficiente é como que um traje moderno que assenta bem.
Isoladamente, à margem da cena, há manifestações que deixam reconhecer uma espécie de superideologia da criança deficiente e um transbordar de exigências ao Estado e à Sociedade. Os problemas, sem dúvida, já não são hoje superados somente com caridade, mas com justiça. O percurso até agora foi difícil e continuará ainda a sê-lo.
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Este livro não está concebido como um manual, como uma catalogação de diagnósticos, sintomas e possibilidades terapêuticas. Tem muito mais a função de salientar os mais importantes problemas práticos, dar referências e apoio relativamente a formas de comportamento e a desenvolvimentos, aproximar mais os parentes e educadores da criança e, a partir do conhecimento do pormenor, chegar a uma reflexão complexa.
Ainda não por toda a parte, mas já em satisfatória medida, o Estado e a Sociedade reconheceram que a criança deficiente devido a lesão cerebral é um dos maiores deveres sociais. As listas de intenções deviam ser feitas com objectividade e realismo, adaptadas às possibilidades da sociedade e, fundamentalmente, ser sinceras.
A euforia utópica, a negação da realidade não adiantam a ninguém; contudo, sem conhecimentos sólidos dos vários problemas e sem energia para o novo, demasiado incipiente trabalho, o idealismo permanecerá, terá mesmo que permanecer, uma caixa vazia.
Viena, Fevereiro de 1980
Andreas Rett e Horst Seidler
Posfácio à 5ª edição
O que anteriormente foi dito continua a ser válido para nós. Se ficou comprovado que a sociedade tem que ajudar a superar os problemas, então pode dizer-se que a evolução dos últimos anos trouxe grandes progressos sociais, legais e institucionais.
Neste período, desenhou-se também o sistema dentro do qual o deficiente encontra, desde o princípio, as facilidades necessárias ao desenrolar da sua vida.
Que este sistema tem que ser amplamente diferenciado, que tem que considerar todos os problemas individuais do desenvolvimento dos deficientes e da sua família é uma consequência da qual também têm estado conscientes os responsáveis políticos deste país.
Capítulo 1
A CRIANÇA COM LESÃO CEREBRAL
Noção e definição
Para muitos, esta noção pode soar hoje a qualquer coisa de antiquado e ultrapassado, até mesmo anti-social. Mesmo a designação actual de «deficiente» é já uma recusa de discriminação social.
Contudo, parece quase tão impossível como provar a quadratura do círculo encontrar uma noção tão perfeita que satisfaça todas as exigências de uma definição precisa, válida relativamente a uma base ampla e, apesar de tudo, não exagerada. A mesma devia, por um lado, deixar transparecer a presença de uma perturbação orgânica do sistema nervoso central, mas, por outro lado, não levar de imediato a ideias prematuras de desespero biológico e social. Quanto menor foi, noutros tempos, o interesse por estas perturbações, mais elas foram postas de modo descuidado nos dois grandes sacos de «atrasado mental» e «traumatismo de parto».
O facto de haver vozes que se manifestam contra a utilização dos termos «doente» e «doença» para as lesões cerebrais revela que existe, de facto, um mecanismo de repressão, que contudo dificilmente atingiria qualquer objectivo, dado que a fuga violenta da realidade, por tão dramática, ultrapassa os limites.
A recusa da noção de doença tem as suas causas psicológicas. As mesmas assentam no facto de, para muitos pais e tutores, a palavra «doença» estar relacionada com terapia, cura, médico, observação e medicamentos; contudo, aqui o papel da medicina não é reconhecido, pois pretendem não haver nada para tratar.
Mas, em parte, este raciocínio tem a sua justificação, uma vez que a chamada medicina escolar muito pouco se empenhou nos
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inúmeros problemas das crianças com lesão cerebral. Insiste, e insiste frequentemente, apenas no diagnóstico e isso é demasiado pouco.
Também pode ter aqui a sua importância o facto de muitas deficiências orgânico-cerebrais, no sentido da medicina, não serem curáveis. A recusa radical da noção de doença veio depois a ser posta em causa, mas com limitações, dado que houve necessidade de um trabalho de esclarecimento de dez anos, para fazer compreender aos homens da nossa sociedade que as crianças com lesão cerebral não são indivíduos que se carregam como uma culpa antiga, mas crianças com doenças, no sentido exacto do termo, e, além disso, com perturbações que podem atingir fatalmente uma família. Somente através da alteração dos rótulos não se muda o conteúdo. Também no acompanhamento de uma criança com lesão cerebral a mentira do rótulo só tem efeito por pouco tempo.
Importante é também, hoje, a noção de desenvolvimento perturbado. Distingue-se da expressão «cérebro lesionado» pelo facto de esta conter a definição da lesão e a sua localização, enquanto que a expressão «desenvolvimento perturbado» revela que a evolução dinâmica do crescimento e desenvolvimento está interrompida, perturbada, ou apenas afectada. Em compensação, também a palavra «perturbação» pode ser mais adequada do que a palavra «lesão», pois permite sempre ainda a regeneração, a reparação, o restabelecimento e a melhoria.
É um conhecimento essencial de fisiologia que a célula nervosa somente permite uma regeneração e reparação muito limitadas, e que a célula nervosa morta não tem essa possibilidade. Fixam-se aqui os limites do desenvolvimento, aqui fica depois a lesão que, por seu lado, tem as suas consequências com as quais têm que conviver a pessoa afectada e o seu envolvimento.
Se considerarmos a profissão do médico, em princípio, como um trabalho social e se defendermos que, conforme a moderna psiquiatria, também as crianças intelectualmente diminuídas são um problema profundamente social relacionado com a pedagogia, a psicologia, a neurofisiologia, a teologia, até a meteorologia, não pode o médico actuar fora do sistema dos educadores. Naturalmente com o pressuposto que ele vê a sua tarefa não apenas no aspecto do diagnóstico, mas como um trabalho social, no sentido mais lato.
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Até agora, não conseguiu ainda encontrar-se, em nenhuma língua, uma versão oficial definitiva e genericamente uniforme. Se no título do livro nos ficamos pela «Criança com lesão cerebral» é porque isso não é evidentemente nenhum postulado, ou uma concepção do mundo, mas é como que uma hipótese de trabalho. E o leitor pode, através do seu raciocínio, encontrar a sua própria noção.
Mas se, como não é raro acontecer, o diagnóstico for entendido logo como uma discriminação, uma apreciação das possibilidades e capacidades físicas, mentais e intelectuais, com o pretexto da participação dos deficientes na sociedade, é utilizada com fins diferentes, sendo depois difícil reconhecer o médico como a primeira etapa na vida de um deficiente.
Pode ser sempre possível melhorar apenas funções e darem-se assim oportunidades; contudo, para isso, é necessária a observação, o teste, a sondagem das capacidades e a análise do problema. A criança com lesão cerebral e a sua família deviam ser educadas, ou acarinhadas não só relativamente a forças mágicas mas no sentido de cada criança, bem como os seus familiares, sentirem a necessidade do êxito da experiência. Contudo, é muito clara aqui a diferença entre esgotamento das capacidades e exploração das capacidades.
São também várias as tentativas de classificação sistemática dos quadros patológicos. Aqui deve remeter-se para a origem temporal que, de acordo com a natureza, contém uma classificação muito rudimentar em doenças pré, pen e pós-natais. Antes, durante, e após o parto isso pode ser, hoje, apenas mais um complemento no sentido de uma referência ao tempo da génese da lesão.
Uma classificação com base em lesões físicas, ou psíquicas e mentais é superficial e insuficiente, sobretudo se se considerar que há perturbações que surgem apenas isoladamente, sem ligações transversais, e sem repercussões nas restantes áreas.
As classificações segundo o nível de inteligência final, como as que são sempre feitas, com análogas consequências no acompanhamento pedagógico, são precárias se o quociente de inteligência for aplicado como único parâmetro. Sabemos, contudo, que há diferenças extremamente grandes quanto às dimensões que compõem a chamada «Inteligência» global. Se aceitarmos as possibilidades, que podem estar na origem da perturbação, como sistema de classificação, então temos hoje conhecimento de uma quantidade de possibili-
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dades: as causas inflamatórias ou infecciosas, vasculares, enzimáticas, metabólicas, traumáticas, hormonais, genéticas, degenerativas, específicas de grupos sanguíneos, de privação e as sociais devem mencionar-se como as essenciais.
Mas, também aqui, não há somente perturbações que derivam de uma só causa, mas, frequentemente, também a associação simultânea ou consecutiva de várias causas, como a etiologia múltipla. Apesar do número de causas diversas, dos diversos momentos de acção, que nós podemos situar, há ainda casos cuja origem não é clara. Contudo, relativamente a muitos casos, é possível hoje seguir o rasto dessa cadeia de causas que estão interligadas entre si, como elos de uma cadeia.
Está fora de dúvida que, nos últimos dez anos, foi dado um grande passo em frente no que respeita ao diagnóstico.
Contudo, o que se toma cada vez mais claro é o facto de, dentro de quadros clínicos etiologicamente tão divergentes, se continuarem sempre a encontrar grupos, os chamados sintomas axiais que, sobretudo no âmbito do comportamento, surgem em resultado de diferentes perturbações localizadas no sistema nervoso central.
Diversos tipos de doença exigem medidas diversas para o seu acompanhamento. Estas diferentes exigências levam a objectivos diferentes a atingir e, é por isso lógico e legítimo que, desta diversificação, se formem vários interesses.
É lícito pensar-se que hoje temos uma necessidade imprescindível desta associação de interesses, mas que os subgrupos, cada vez mais fortes, levam muitas vezes a uma dispersão das exigências e dos deveres de um modo geral demasiados, pelo que é bem compreensível a necessidade de organização de topo. O «Bundesbeirat» para deficientes, na Áustria, é uma associação de cuidados e interesses comuns.
Para os sócios está em primeiro plano o futuro dos próprios filhos. Isto é inteiramente compreensível. Contudo, o conhecimento de que há outros com sorte semelhante, ou igual, e que existem associações para defesa de interesses comuns, que podem dar, a cada um por si, apoio e auxilio, informação e conselho, não deve ser esquecido por cada um de nós.
A existência de uma criança com lesão cerebral é um desafio permanente para os associados. Para responderem a este desafio pre-
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cisam de força, dedicação, bem como de apoio físico e 1 segurança social e família íntegra.
É admissível pensar-se que este livro vai ter a crítica de muitas pessoas. Isso não deveria significar senão a comi de experiências e conhecimentos acerca de um problema e sociedade que cada um, isoladamente, já não consegue resolver se trata de um convite à compaixão pseudo-humanitária «compensar» e, talvez, à «com-paixão» que, por fim, serv chamada de atenção para o destino dos atingidos e para a cape e disposição indispensáveis à compreensão.
Capítulo 2
NORMALIZAÇÃO E INTEGRAÇÃO COMO OBJECTIVO A ATINGIR
Normalização é uma noção que, tendo vindo do americano, foi inicialmente compreendida com dificuldade no espaço linguístico alemão, porém impõe-se hoje como definição de um objectivo a atingir, embora em parte continue ainda a ser mal compreendida.
De acordo com a nossa interpretação, a normalização pode ser entendida, não com referência à deficiência e à sua génese orgânica mas, em primeira linha, com referência à condição de vida dos deficientes. É um objectivo e um dever inserir os deficientes, com todo o apoio que for necessário, na vida normal. Para isso, é necessário que ele sinta não só que tem os mesmos direitos mas que é, tanto quanto possível, normal. Contudo, ser normal significa não apenas não sobressair, não se destacar dos outros, tem que significar também que os homens do meio social aceitam a criança deficiente com o seu defeito, como fazendo parte da sociedade e, no contacto social com ela, se comportam eles próprios normalmente.
Não é possível eliminar o defeito organo-neurológico da estrutura específica do sistema nervoso que lhe corresponde. A noção de normalização diz respeito também a cada contributo para a integração, que tem que pagar a sociedade por um lado, o deficiente e os seus familiares por outro.
É uma realidade de facto lamentável que esta aceitação natural ainda não foi, até agora, muito longe entre nós. Contudo, isso não deve inibir-nos de trabalhar para este fim.
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Normalização e integração são, hoje, não apenas objectivos, mas também palavras de ordem da política dos deficientes. Ambos os conceitos estão relacionados um com o outro e dependem um do outro. Ambos são hoje, só em parte, compreendidos e interpretados correctamente.
Integração é também um objectivo que tem que ser definido dado que, também aqui, o conteúdo da noção de integração é entendido de um modo muito diferente. Integração pode ser um acontecimento dinâmico, um processo para o indivíduo, para o grupo, os grupos e a sociedade. A integração tem possibilidades, necessidades, mas também limitações. Não ver as limitações seria tão falso quanto seria insensato não aproveitar, em princípio, todas as possibilidades de integração. As causas dos erros, que a esse respeito se cometem, assentam também na incompreensão e na informação deficiente. A sociedade integra o deficiente já para o tornar normal, quer dizer olhá-lo, mas não arregalar os olhos para ele, respeitá-lo, mas não lastimá-lo. Contudo, é infelizmente uma realidade que uma sensibilidade não raramente acentuada, não só do deficiente, mas também da sua família, não torna sempre fácil este comportamento por parte da sociedade. Mas, faz também parte do trabalho de integração reconhecer e atenuar esta sensibilidade, tanto da parte do deficiente, como da parte do seu meio mais íntimo e mais afastado.
A integração tem também vários planos e, em cada um deles, os seus problemas e dificuldades específicas. «Aceitar» a criança pequena com lesão cerebral e integrá-la não é difícil. Quanto mais velha é a criança mais difícil é, muitas vezes, no seu comportamento. A criança em idade escolar, o jovem e o adulto passam por fases, em cada uma das quais devia ser efectuada a integração com outros grupos de pessoas, que, por seu lado, deviam ser também capazes de integração. A capacidade de integração pressupõe disposição para a integração, a qual, por seu lado, necessita de certos pressupostos humanitários e de suficiente informação.
Isto requer um processo de educação que devia iniciar-se já na primeira infância.
Somos de opinião que não consegue fazer-se uma integração, a cem por cento, de todos os deficientes. Relativamente a muitas formas de deficiência pode conseguir-se uma integração completa, porém, relativamente a outras uma integração parcial, ou seja gra-
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dual. Aquilo que é inteiramente possível num jardim de infância, sobretudo por volta dos 4 e 5 anos de idade, pode ser já impossível na escola, onde o fim em vista é essencialmente a aprendizagem.
As experiências, até agora levadas a efeito, com a tentativa de obter uma integração total de crianças deficientes mentais na escola normal, continuam a ser uma utopia. Admitir que uma criança mentalmente atrasada é mais feliz num meio «normal» e que, desse modo, aprenderia mais facilmente e melhor e que também os não deficientes poderiam aí «ajudar» é irrealista, dado que a criança mentalmente deficiente sofre permanentemente a sua deficiência na confrontação com os outros como frustração e, daí, têm que resultar forçosamente dificuldades de comportamento, sobretudo agressões e depressões. Alegar que a restante classe poderia aproveitar do deficiente é difícil de provar... O deficiente como meio de educação para os não deficientes, seria isso uma concepção ideal? Somente numa escola disposta à integração e capaz de integração, com professores adequados, e uma classe disposta e capaz de integração de uma criança deficiente, com condições para isso, poderiam realizar positivamente a experiência. Na verdade, conforme já foi referido, este é sempre um processo dinâmico, sujeito a enormes pressões e a múltiplas influências e que tem que estar sempre a ser controlado, revisto e adaptado.
A integração de crianças com deficiências físicas, em classes normais, é inteiramente possível com os condicionalismos apresentados; contudo, isso não pode ser generalizado incondicionalmente a todas as escolas e a todos os deficientes. É difícil integrar, somente numa classe, mais do que uma ou duas crianças deficientes físicas sendo, contudo, aqui, condição indispensável uma capacidade intelectual normal, ou quase normal.
A deficiência mental apresenta naturalmente condições mais difíceis. Nas deficiências em áreas isoladas do intelecto pode eventualmente compensar muito um professor de talento; caso as deficiências sejam demasiado maciças, ou demasiado numerosas a integração tem que falhar forçosamente.
No que respeita ao âmbito escolar é desejável a integração gradual, o encontro em cada plano em que a diferença intelectual não levou a discrepâncias demasiado grandes. É evidente que, no fundo, as escolas especiais deveriam funcionar nos mesmos edifícios das
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escolas normais de modo que, nos intervalos e nas cerimónias oficiais, na ginástica e no desporto, fossem possíveis e pudessem ser promovidos encontros.
Na vida profissional a situação é muito semelhante. A integração coloca também, aqui, condições que têm que ser realizáveis para possibilitar o processo de integração. O rumo selvagem e livre da economia livre é infelizmente um trajecto inimigo dos deficientes.
Só poucos estão dispostos a aceitar deficientes. Os deficientes físicos com inteligência normal, ainda que com esforço, conseguem postos de trabalho adequados. Pelo contrário, os cegos, em consequência da automatização, já mal conseguem os anteriormente privilegiados lugares de telefonistas. O deficiente com afecção mental mínima quase que só consegue trabalho, mais ou menos seguro, como operário auxiliar. Aqueles que têm um grande atraso não têm praticamente nenhuma possibilidade, nem mesmo ao abrigo das condições, financeiramente tão favoráveis, dos «postos de trabalho protegidos». Uma determinada proporção em deficiência mental fará com que uma oficina especial fique imprescindivelmente em «situação protegida». É uma realidade que a nossa sociedade, extremamente orientada para o lucro, torna hoje quase impossível a integração de deficientes mentais. No entanto, se não estivermos em condições de conseguir para cada um a sua situação protegida especial estaremos, em breve, perante problemas insolúveis de natureza política.
A localização de instituições de deficientes é hoje objecto de discussões veementes. Evidentemente, o melhor local, para uma organização desta natureza, é dentro de uma estrutura social como a das cidades. Contudo, se considerarmos a origem das instituições actuais, no aspecto histórico, reconhecemos que o dinheiro só muito escassamente flui para elas. Na perspectiva actual, não foram sempre os locais mais favorecidos.
Mas a noção de «ghetto», como sabemos, não é apenas política;
é, pelo contrário, também mental e social. Neste sentido, pode haver
também «ghettos» de deficientes no meio de grandes cidades.
Porém, formar hoje novas instituições isoladas e segregadas de
formações sociais é, sem dúvida, extremamente problemático.
Deve acentuar-se que a família tem que ser, em princípio, o
lugar do deficiente. Porém, a família não dura eternamente e, mais
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cedo ou mais tarde, tem que ser procurado esse lugar de que o deficiente necessita para a fase mais tardia da sua vida.
A integração a qualquer preço não tem sentido. A integração é um dever social e de política comum. É um objectivo, que depende de uma quantidade de factores. Reconhecer as possibilidades e os limites da integração é pressuposto para a sua realização. Tudo o mais é pura utopia, ou falta de consciência social.
O modelo de integração escolar conforme o praticado em algumas regiões de Itália, certamente concebido originalmente como representação ideal, tem sido transformado na prática. Os resultados de tais experiências, tanto quanto são discutidas de um modo aberto e apolítico, revelam que só com Decretos e Leis não se conseguem realizar utopias. Estas limitações deviam ter sido previsíveis para todos os casos.
Neste passo, deve ser chamada a atenção para o facto de a integração ter que ser discutida somente depois de estar claro qual o círculo de pessoas em que se pensa.
Que, conforme é frequentemente alegado, as grandes famílias campestres seriam a forma ideal de integração temos sempre posto em dúvida com veemência e, baseando-nos precisamente no conhecimento de tais situações. FELIX MITTERER na sua peça de teatro «Nenhum lugar para os idiotas», num duplo sentido, mostrou dramaticamente que a realidade foi muito mais cruel, e ainda é, do que muitos queriam admitir, com o propósito de a si próprios se iludirem e sossegarem.
A integração tomou-se hoje, em parte, tão acentuada para palavra de ordem que provoca resistências. Ela pode ser somente um processo evolutivo, primeiramente da informação e depois da organização. Admitir que uma transformação da sociedade teria que conduzir também a uma integração total do deficiente é ilusão. A integração tem que ser permanentemente reiniciada, experimentada e executada. Não para proveito próprio, ou por um desejo de atingir um fim social, mas para garantir a cada um uma vida com possibilidades de acesso a uma certa qualidade de vida e ainda para conseguir a humanização da sociedade, despertar a compreensão e reconhecer a integração, como comportamento social normal.
Capítulo 3
FREQUÊNCIA
Não se tem actualmente ainda uma resposta documentada com números definitivos, para a importante questão, tanto para os casos isolados como para a política de família e de saúde, quanto à incidência das lesões cerebrais na infância. Contudo, pelo menos alguns dos factos essenciais estão entretanto suficientemente esclarecidos. A questão deve ser também aberta a partir de uma multiplicidade de olhares em várias direcções, de tal modo que daí resulte forçosamente uma imagem que agora só lentamente é iluminada nos seus contornos; isso porque a questão referente ao número de crianças atingidas não é, em si mesma, estática. Causas de doenças, que ainda há vinte anos eram responsáveis por uma pequena parte do aparecimento de lesões cerebrais, puderam ser eliminadas, graças ao progresso da medicina; quadros clínicos, cuja etiologia não era outrora clara, puderam ser esclarecidos, sem equívocos, mediante os novos conhecimentos da genética humana, de tal modo que foram também postas de parte diferenças de opinião quanto aos diagnósticos.
A moderna sociedade industrial, o ambiente biológico, social e profissional condicionam novas formas de lesão cerebral infantil, até agora desconhecidas.
Também a discussão do número de crianças com lesão cerebral, com os habituais métodos de estatística médica e. tomando como referência um determinado país, dificilmente conduziu a um resultado realista.
Na Áustria, essa possibilidade serviu de base, a partir de 1980, para a aferição dos dados do chamado passaporte mãe-filho. De acordo com um regime obrigatório, todas as grávidas foram aqui
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abrangidas e acompanhadas. Fica assegurado, assim, um número suficiente de observações de mães e de recém-nascidos e, entretanto, uma apreciação do desenvolvimento da criança até ao primeiro ano de vida. Os formulários estatísticos para o efeito foram previstos de modo a serem obtidos dados anamnésicos, apreciáveis objectiva e estatisticamente, relativos à evolução da gravidez, à situação que rodeou o parto e, finalmente, ao desenvolvimento do recém-nascido, ou seja da criança em crescimento.
É tão importante obter informação, ainda que não muito precisa, sobre a frequência do diagnóstico de crianças anormais, que deve ser sempre salientado o facto de muitos médicos, graças ao instrumento do passaporte mãe-filho, terem aprendido a diagnosticar e a deter anomalias, que excedem a sua formação universitária, e a defini-las depois também no sentido de uma estatística de saúde, fundamentada (A. Rsrr, 1979).
Quando se trata a importante questão da «Incidência das lesões cerebrais infantis», é de acentuar, em primeiro lugar, que há que distinguir entre incidência absoluta e incidência relativa. Devem ser sempre tratados, com cepticismo e com a necessária prudência, elementos estatísticos absolutos, sempre que não se tenham à disposição dados referentes à população total.
A rápida diminuição do número anual de partos, no decorrer do decénio anterior, é evidente. Com isso decresce também, em si, o número de crianças com lesão. Se hoje se diz que agora se vêem ainda mais crianças nessa situação, isso deve-se ao facto de hoje se mostrar mais interesse por crianças com esse tipo de perturbações e se terem criado escolas, jardins de infância e centros de terapia, enquanto que, em décadas anteriores a a maior parte das vezes por vergonha perante o público, as crianças eram escondidas. Numa época de apreciação totalmente acrítica, quanto à origem de tais perturbações, como aconteceu na era do terceiro Reich, a vida destas crianças tinha pouco valor. Por esse motivo, as crianças mortas por doença genética não eram na altura incluídas no número total.
De particular significado, para uma apreciação da incidência, é o facto de não existirem quaisquer estatísticas aproveitáveis de anos anteriores, e ainda hoje estamos de posse apenas de números aproximadamente válidos. Mesmo o passaporte mãe-filho abrange somente lesões graves e, por isso, de diagnóstico fácil, enquanto a
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formação dos médicos não é nem intensiva, nem específica. Isto significa que, com o passaporte mãe-filho, somente são abrangidas as crianças cuja lesão é tão maciça que as perturbações não podem passar despercebidas, como no caso de um recém-nascido mongolóide, ou de uma anomalia evidente do sistema nervoso central. Contudo, muitos daqueles casos, e trata-se certamente do número substancialmente mais elevado, parecem, na altura do parto, pelo menos normais na aparência. Assim, não é de estranhar que, devido ao pouco interesse dos médicos obstetras para com os recém-nascidos e a sua situação neurofisiológica, uma não pequena parte dos casos diagnosticados mais tarde, muito mais tarde e, muitas vezes, demasiado tarde, não seja simplesmente diagnosticada logo após o parto.
Assim, por exemplo, a frequência média de várias afecções mentais oscila na dependência da idade, raça, camada social, podiam até mesmo ser encontradas diferenças de frequência entre população da cidade e do campo (E. ZERBIN-RUDIN, 1970).
L. S. PENROSE calculou, em 1963, para o grupo etário até aos 4 anos, uma taxa de 0,12 por cento de crianças com deficiência mental, mas, nas crianças dos 10-14 anos, já uma taxa de 2,56%. Da comparação destas duas percentagens resulta um problema de método significativo, se tivermos que lidar com números. Há de facto muito menos crianças com atraso intelectual neste primeiro grupo etário, ou as manifestações da capacidade intelectual diminuída só aparecem mais tarde - seja por factores genéticos ou ambientais?
Isto parece difícil de provar. A explicação deve procurar-se muito mais no facto de os métodos de diagnóstico, que actualmente temos ao dispor, não conseguirem simplesmente abranger ainda muitas crianças pequenas. Os critérios de definição são também extremamente diferentes de autor para autor. Se diferenças maiores de apreciação se explicam ainda através deste sintoma de debilidade mental, relativamente frequente e pouco uniforme, uma observação feita em Birmingham revela a problemática, já com muito mais nitidez. Entre 1950 e 1952, foram examinados 56 760 recém-nascidos em relação a vários tipos de anomalias. Em 0,11 por cento de todos os recém-nascidos foi diagnosticado, nessa altura, o quadro bem circunscrito e de diagnóstico aparentemente fácil do mongolismo.
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Nos exames de revisão efectuados por T. MCKEOWN e R. G. RECORD (1960) este número aumentou para 0,17 por cento. Para o leitor não exigente impõem-se agora 0,1 1 por cento e 0,17 por cento como não muito diferentes. Devia considerar-se que a diferença mínima de 0,06 por cento seria para desprezar. Mas, relacionando-se com 56 760 recém-nascidos, 0,11 por cento significam 62 casos de mongolismo e 0,17 por cento 96 crianças com esta doença. Isto significa também uma margem de erro aproximadamente de um terço na avaliação da frequência do mongolismo! Este exemplo revela nitidamente com quanto maior cuidado devem ser feitos, na altura do nascimento, os primeiros diagnósticos.
Naturalmente, nós hoje conhecemos programas de risco nos quais uma gravidez com riscos é vigiada escrupulosamente durante o parto é acompanhada esmeradamente e, depois, é também controlado intensamente o desenvolvimento da criança. Porém, considerando o actual estado de formação dos médicos, essa não é ainda a norma, mas sim a excepção. Contudo, esse devia ser, sem dúvida, o fim para que têm que trabalhar a obstetrícia e a pediatria.
Os dados quanto à frequência estão, no entanto, também dependentes do momento da observação, do ano da observação.
Em Boston foram encontrados 0,34% de mongolóides entre 1930 e 1944, em Londres 1947-1951 0,21 %, em Zurique entre 1942 e 1957 0,27% e em Milão 1942-1957 não mais que 0,17%. Houve então uma diminuição dos casos de mongolismo de 1930 até 1957, há diferenças de frequência dentro das populações europeias? Provavelmente não. Nós temos, contudo, presente que, só desde 1959, o diagnóstico do síndroma de Down foi fundamentado no seu significado causal, de modo a que- fosse possível aos médicos demonstrar no microscópio uma alteração do portador da hereditariedade (mutação dos cromossomas). Todos os dados desta altura, relativos à incidência do síndroma de Down, estavam dependentes exclusivamente da experiência e da impressão subjectiva do médico. Além disso, os mais diversos factores ambientais podiam, em muitos casos, ter caracteres de tal forma determinantes que, também desse modo, tornavam possíveis diferenças nos dados percentuais.
Em 1965, na Austrália, foram observados por A. STOLLER e R. D. COLLMAN ciclos no que respeita à incidência de crianças mongolóides. Estes ciclos situam-se entre um e cinco anos e são atri-
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buídos a infecção por vírus. Por outro lado, apresentam-se dados que descrevem a frequência deste quadro clínico nos últimos quinze anos. Aqui podem ter agora o seu peso componentes sociais, ou mudanças substanciais do sistema político da Europa ocidental. A idade média do casamento diminuiu nitidamente. Por exemplo, na R. F. A., de 1950 a 1966, foi reduzida numa média de 2 anos. A tendência para casar mais cedo, expressão de uma sociedade de abastança, tem também consequências para exemplo do síndroma de Down acima mencionado.
O factor de risco desta anomalia cromossómica assenta na idade mais elevada do pai e da mãe. O avanço da actividade generativa pode, por esse motivo, conduzir a uma diminuição deste quadro clínico. Se nas mães até aos 20 anos é de esperar uma criança mongolóide por 2300 saudáveis, esta proporção aumenta para 1:300 nas mulheres de 35-39 anos e finalmente nas mães com mais de 45 para
1:45 (R. D. COLLMAN, A. STOLLER, 1962).
A antecipação do período de reprodução pode também conduzir a uma diminuição absoluta da frequência deste sindroma. As influências tão significativas da antecipação da ocorrência da reprodução descreveu-as W. LENZ, em 1967: Se todos os partos até aos 30 anos de idade continuassem a suceder como até agora, todos os partos depois dos 30 anos seriam adiantados cerca de cinco anos de tal modo que, em vez de um, parto com 40 anos, dar-se-ia um com 35, em vez de um com 32 anos, um com 27 anos, etc. Assim a frequência do síndroma de Down desceria à volta de mais de 40 por cento.
Em vez de cerca de 1600 crianças mongolóides nasceriam
agora somente 900 (P. E. BECKER, H. W. JURGENS, 1972). F. VOGEL,
baseando-se nestas alterações da sociedade, admitiu que, por volta de 1950, o mongolismo podia ter sido cerca de 30 por cento mais frequente do que hoje.
Mas, a antecipação da idade fértil pode não reduzir apenas a incidência do mongolismo. São conhecidas outras deformações que estão também na dependência da idade dos pais, como, por exemplo, determinadas formas de nanismo, hidrocefalia e espinha bífida.
Até mesmo alterações das disposições legais podem conduzir a uma diminuição de anomalias e a uma descida da mortalidade infantil.
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Conforme mais tarde irá ser falado ainda com mais pormenor, relativamente ao síndroma de Down, a chamada amniocentese, quer dizer a colheita de líquido amniótico, na transição do 3.° para o 4.' mês de gravidez, permitiu uma observação dos cromossomas do feto. Isso conduziu a uma drástica diminuição do número de mães que antes, em plena idade de procriação (depois dos 38 anos de idade), traziam ao mundo cerca de 30 por cento de crianças mongolóides.
Está também fora de questão que a liberalização de interrupção da gravidez e o reconhecimento do avanço da idade fértil como um eventual indicador genético tiveram aqui influência decisiva. Quando no Japão a pressão da população se tornou demasiado forte, o governo legalizou a interrupção da gravidez. NACHTSHEIM demonstrou, em 1967, que, desse modo, a mortalidade dos recém-nascidos, com anomalias congénitas, diminuiu de 23,7 por mil, no ano de 1950 para 19,0 por mil, no ano de 1960.
Trata-se de ideias e considerações, que hoje são ainda muito difíceis de demonstrar, mas acerca das quais temos o dever e a obrigação de pensar, se queremos ver a consulta de genética humana com possibilidade de política de saúde profiláctica.
É compreensível que o diagnóstico médico, nos últimos anos, se tenha concentrado particularmente nas doenças facilmente perceptíveis.
Aqui, são sobretudo de referir as perturbações congénitas do metabolismo para as quais O. THALHAMMER, na Áustria, e H. BICKEL, na R. F. A., estabeleceram um amplo e completo sistema de rastreio. Não fazer a um recém-nascido o chamado teste de Guthrie, através do qual são detectadas as mais importantes perturbações e, eventualmente, deixar passar despercebida uma fenilcetonúria é hoje inaceitável. Testes do metabolismo semelhantes, mas aparentemente não tão seguros, são actualmente desenvolvidos na pesquisa do hipofuncionamento da tiróide.
O diagnóstico da fenilcetonúria é também feito com facilidade, mediante exame químico do sangue. Rastreios efectuados nos E.U.A., Canadá, Inglaterra, Suíça e Áustria revelaram que a frequência indicada, por volta de 1954, de 1:20000 foi avaliada muito por baixo. Em 82 850 recém-nascidos H. BiCKEL encontrou 10 pacientes. Assim pode também, com base em dados semelhantes noutros países, ser admitida uma frequência relativa de 1:11000.
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O progresso da medicina levou também a que agora estas doenças tivessem melhores, mesmo boas probabilidades, pelo que seria de pensar numa nova alteração desta frequência. Com tratamento dietético adequado, após um diagnóstico precoce, no âmbito de um rastreio geral obrigatório, esta perturbação metabólica é largamente compensada.
Mas, precisamente nesta perturbação metabólica, que não tratada, condiciona lesões particularmente graves, seria essencial um conhecimento do número exacto de casos. Os especialistas em genética humana podiam comprovar que, com métodos de observação adequados, pode ser indicada a probabilidade com que cada casal pode esperar um filho com fenilcetonúria.
A importância do melhor conhecimento da incidência desta doença torna-se clara se se souber que, para cada novo irmão de uma criança doente, existe uma probabilidade, de 25 por cento, de herdar esta perturbação.
Nos últimos anos verifica-se uma alteração de outro género, no que se refere à icterícia grave neonatal. Esta situação é devida à incompatibilidade entre o grupo sanguíneo da mãe e do filho. Neste caso, mediante um sistema de controlo sanguíneo regular da mãe e, através de medidas profilácticas do feto, no ventre materno, pode falar-se de uma enorme redução da frequência destes casos de tal modo que hoje, só raramente se torna necessário o único método terapêutico, anteriormente existente, da substituição do sangue, após o nascimento.
Mesmo a tão receada embriopatia rubeólica, responsável por atraso físico e mental grave, perturbações da visão e da audição, quase que já não merece ser considerada, dado que se tornou já uma rotina a vacina contra a rubéola, nas raparigas em idade escolar.
Um significado particular atribui-se, como de costume, ao parto pré-termo. Está fora de questão que a moderna peri e neonatologia tenham alterado decisivamente a situação e reduzido acentuadamente a mortalidade dos prematuros.
Está, sem dúvida, relacionada também com isso uma influência decisiva sobre a morbilidade, quando nós, com base nos números apresentados por exemplo por A. ROSENKRANZ, sabemos ainda demasiado pouco sobre o futuro tardio dos prematuros. É actualmente admissível com grande certeza que, prematuros mortos antigamente,
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estariam hoje vivos. Uma parte deles poderia passar pela aventura do parto prematuro sem lesões decisivas, outra parte podia somente mais tarde ser diagnosticada como «Lesão cerebral mínima» e, certamente há também hoje ainda uma parte que deve ser considerada como lesão maciça. Mesmo quando olhamos de um modo crítico para resultados de exames de revisão demasiado eufóricos, está fora de questão que também a morbilidade é considerada como que em mudança.
Os movimentos aqui referidos não são, contudo, para relacionar apenas com o risco do «parto pré-termo» mas sobretudo com todo o período imediatamente antes, durante e após o parto. É hoje, sem dúvida, claro para todo o médico obstetra que, neste âmbito, pode existir uma quantidade de riscos e que o desenvolvimento saudável de uma criança nascida com complicações e riscos não é, de modo nenhum, uma coisa natural.
A perinatologia representa hoje uma parte integrante da obstetrícia e os seus conhecimentos, experiências e consequências deviam ser, com efeito, universalmente conhecidos e acessíveis. Sabemos também que, precisamente neste domínio, continua a haver diferenças notáveis na aplicação prática destes conhecimentos.
A melhoria dos cuidados médicos fez também com que doentes com perturbações cromossómicas tenham hoje já esperanças de vida, que já não são muito diferentes da média da população.
Na verdade, não temos actualmente ainda nenhuns dados, com valor científico, acerca da actual esperança de vida dessas crianças. No grupo que impressiona pelo número, sobretudo no nosso tipo de doentes, os mongolóides, está assente que a mortalidade antigamente muito elevada, no primeiro ano de vida, conseguiu ser largamente suprimida.
Mongolóides de 30-40 anos em Centros de Actividades Ocupacionais são, em 1980, não uma excepção, mas a regra. A idade mais elevada de um mongolóide do sexo masculino, cuja vida conseguimos acompanhar, atingiu os 72 anos. R. R. RECORD e A. SMITH relataram, em 1955, que, dentro da primeira semana de vida, 8 por cento de todos os recém-nascidos mongolóides morriam, dentro do 1.' mês de vida, 28 por cento, e que, depois do 1.° ano de vida, sobreviviam só mais 45 por cento. Também estes dados referentes à incidência não significam incondicionalmente uma imagem realista
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de realidade médica. Os diferentes condicionalismos do meio deviam ser tomados em muito mais consideração. A elevada taxa de mortalidade, conforme a calcularam estes autores, podia ter como base um acompanhamento insuficiente dos doentes. R. D. COLLMANN escreve que, na Austrália, no ano de 1962, no 1º ano de vida, 31 por cento das crianças mongolóides morreram. Na Suécia, a taxa de mortalidade (H. FORSSMANN, 1962), em cerca de 1263 doentes, dentro dos primeiros dez anos, era somente à volta de 10 por cento. Sem dúvida, a mortalidade neste síndroma é elevada, em comparação com a média de população saudável. Contudo, os números referidos indicam claramente como pode ser grande a diferença, quanto à taxa de mortalidade, nas investigações dos diferentes autores. Ainda em 1971 H. A. HIENZ cita a esperança média de vida, de acordo com C. O. CARTER (1950): no 1.' mês de vida morrem já 30 por cento, no 1 ° ano de vida 55 por cento; a partir do l0° ano de vida sobreviviam somente 40 por cento.
A probabilidade de sobrevivência da criança mongolóide depende, juntamente com a mobilização das possibilidades modernas da medicina, sobretudo, também, da acção pedagógica individual, da intensidade da dedicação e do cuidado (acompanhamento). O número de crianças afectadas por inflamações do cérebro e das meninges (encefalite e meningite) está. nitidamente a decrescer, de acordo com as estatísticas internacionais. Isto é certamente de atribuir à acção precoce dos antibióticos e à quimioterapia.
É sabido que, apesar disso, há ainda intensas falhas na cura, quer dizer, crianças que sofreram um processo inflamatório semelhante do sistema nervoso central (SNC), que teve consequências no seu desenvolvimento físico e intelectual. As observações que nós próprios fizemos revelam também que, nos últimos anos, os efeitos intelectuais e motores evoluiram nitidamente e orientaram-se mais para o domínio do comportamento. Aqui, é de referir, sobretudo, a relativa frequência da meningite da parotidite, que, nas suas consequências, é nitidamente inofensiva mas que deve ser motivo de observação escrupulosa do comportamento da criança.
Um equivalente, tão importante como inquietante, das chamadas doenças infecciosas pós-natais do sistema nervoso central é o das crianças a quem é diagnosticado o chamado traumatismo crânio-encefálico, a maioria das vezes devido a acidentes de viação. A
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estatística referente ao período de 1965 a 1971, feita na R. F. A., revelou que o número de crianças, com menos de 15 anos, afectadas por acidente, já tinha aumentado para 45 por cento. Em 1971, na R. F. A., foram vítimas de acidente na estrada 71 000 crianças, 3 por cento destas vítimas de acidente morreram. 26 000 crianças ficaram, devido a isso, com lesões físicas e psíquicas permanentes.
Aqui, contam-se não apenas as vítimas de acidente de viação, mas também todos aqueles acidentes, como por exemplo os resultados de estrangulamento, e ainda incidentes resultantes de narcose ou operação, os quais vão do síndroma da descerebração a uma reabilitação com mais ou menos êxito. Há, a este respeito, várias obras com estatísticas diferentes. Evidentemente que o traumatismo crânio-encefálico depende de uma quantidade de factores. As suas consequências vão de uma elevada sensibilidade ao factor tempo, passando por um psicossíndroma orgânico mais ou menos nítido, até ao síndroma da descerebração.
Também aqui nos parece que o aumento do número de casos reside, em parte, na redução da mortalidade. O risco de um défice permanente, como consequência do trauma crânio-encefálico, tem que ser colocado num nível muito elevado, certamente mais elevado do que o dos acidentes cirúrgicos que ocorrem actualmente.
Nem todos os pretensos traumatismos crânio-encefálicos provocam lesões permanentes, de natureza física ou psíquica. Mas, a proporção do defeito local e a sua localização determinam largamente o futuro da criança e, bem assim, a proporção do risco de um defeito.
O facto de uma criança sobreviver a um acontecimento tão dramático e aprender de novo, também, certas funções nada diz acerca do seu desenvolvimento, mais tarde. O chamado psicossíndroma orgânico é uma consequência quase automática, o enfraquecimento da capacidade de aprendizagem, dificuldades de comportamento e tendência para convulsões com origem cerebral são aqui os sintomas mais frequentes e também os mais graves.
Para as certamente dramáticas consequências da nossa civilização, contribui também a crescente frequência de intoxicações medicamentosas das crianças. De acordo com G. LAST, na verdade, a taxa de mortalidade devida a tais incidentes de ingestão é diminuta
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(0,3-1,0 por cento), mas, cerca de 3 por cento de todas as crianças atingidas fica com lesões permanentes.
A questão do aborto tem influência também na frequência das lesões cerebrais da criança.
Sabemos, com base em inúmeras observações, que nos fetos mortos no chamado aborto espontâneo, portanto naqueles que são expelidos do ventre materno, a maior parte das vezes, por volta do terceiro mês de gravidez são diagnosticadas anomalias, até 75 por cento e o número de anomalias cromossómicas neles encontradas é particularmente elevado.
É evidente que, mediante o tratamento de uma ameaça de aborto, também são dados à luz fetos com esse tipo de perturbações, conforme é também natural que se venham a conseguir muitos fetos saudáveis, com essas medidas terapêuticas.
Hoje, pelo menos em parte, através da observação e análise do líquido amniótico, pode distinguir-se se o feto está saudável ou não no ventre materno. A genética médica conseguiu métodos com o auxílio dos quais pode ser relativamente fácil o diagnóstico de algumas alterações cromossómicas (por exemplo o mongolismo), ou de algumas perturbações do metabolismo.
Como se vê, não é portanto possível dar actualmente uma resposta à questão do número absoluto de crianças nascidas com lesão cerebral.
Devido à falta de números exactos, não podemos igualmente avaliar se, anteriormente, havia mais fetos com lesão do que abortos, e se nasciam crianças mortas com lesão, ou morriam pouco depois do parto.
Até 2 por cento de todos os nados-vivos, com uma vida saudável e autónoma, apresentam anomalias não demasiado concentradas, diagnosticáveis nitidamente. Este número aumenta muito, se se tomarem em consideração deficiências de desenvolvimento no parto pré-termo e nos nados-mortos, bem como nos abortos espontâneos.
Muitos especialistas em genética discutem, hoje, que 30 por cento de todos os embriões morrem sem que a gravidez seja, de algum modo, perceptível.
Admite-se que se se somarem todos os abortos (provocados ou espontâneos), incluindo a mortalidade peri-natal, somente 55 por cento de todos os fetos atingem a idade capaz de sobrevivência.
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Nos mongolóides o zigoto revela também, na elevada taxa de abortos espontâneos, a lesão grave que lhe está na base.
Noutras doenças com origem cromossómica, por exemplo o síndroma de Edward, é conhecida uma taxa de aborto particularmente elevada de 17 por cento. Nas mutações dos cromossomas sexuais foi igualmente comprovada uma considerável perturbação da vitalidade do feto íntra-uterino, embora os portadores desta forma de mutação, se se desenvolverem normalmente, sejam relativamente pouco afectados.
São detectadas, com maior frequência, afecções cromossómicas nos abortos espontâneos que ocorrem dentro do primeiro trimestre. Parece tratar-se, portanto, de uma espécie de selecção natural para com os embriões com lesão.
Ginecologistas com idade e experiência pensam que, em épocas anteriores, o aborto espontâneo era muito mais frequente. A tentativa frustrada de fazer abortar o feto do ventre materno, sobretudo com meios químicos e mecânicos, perdeu, quase por completo, o seu significado. Ela precedeu, conforme se pode supor, a introdução da pílula anticoncepcional.
É interessante neste contexto que, tanto quanto pode ser comprovado pelas estatísticas, no período da chamada «onda da talidomida», que é atribuída ao sedativo Contergan, o número total de crianças nascidas com malformações, ao que parece, não aumentou, antes parece ter ocorrido uma mudança das malformações do sistema nervoso central para as malformações dos membros.
Se pensarmos que problemas desta natureza, até há poucos HYPERLINK http://anos.na anos. na prática, pouca atenção mereceram, pelo menos o interesse público por esta questão tornou-se, nos últimos anos, substancialmente mais vivo.
Resumindo, à questão da frequência deve responder-se: O número absoluto de fetos com lesão, ou de crianças nascidas com lesão, não permitiu descobrir alterações muito grandes. Noxas lesivos do feto no útero, ou da criança durante ou após o parto, houve-os provavelmente antes em número igual, ou até mesmo mais elevado. Relativamente ao nosso tempo a radioactividade, que continua sempre a ser discutida neste contexto, os produtos químicos, os medicamentos, em resumo, as nossas condições modernas de vida são responsáveis, cada uma por si, pelas lesões do sistema nervoso central.
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Em que medida favorecem outras lesões, o actual estado de investigação somente permite admitir, com grandes reservas, mas de modo nenhum provar.
Sabemos que, na discussão sobre a incidência das lesões cerebrais, deparamos sempre com a questão da capacidade de sobrevivência. Quanto mais acentuada é a perturbação, tanto mais cedo ela leva eventualmente já no ventre materno à morte do feto e, com isso, ao aborto. Se não for este o caso, a criança vem ao mundo e a sua capacidade de sobrevivência é determinada pelas possibilidades da sua adaptação ao meio. Se a criança ultrapassou este processo e a moderna medicina a proteger extraordinariamente ela pode viver, portanto, com esta anomalia.
Em caso diferente ela morre por dificuldade, ou falta de capacidade de adaptação. Em ambos os casos a morte é uma solução para o problema. Conforme é do conhecimento de uma pessoa experiente, as previsões relativamente à mortalidade ou morbilidade, isto é, à morte, ou à vida com a doença, podem ser feitas apenas condicionalmente. Há nas crianças deficientes capacidades de sobrevivência inconsideráveis e incompreensíveis pela medicina. É particularmente trágico se o médico defende haver uma absoluta falta de probabilidades de sobrevivência e, contudo, a criança não morre e vive com a lesão. Esta questão diz respeito, como foi já acentuado, quase somente às crianças com lesões graves. À questão se eventualmente a moderna medicina hoje, com todas as suas possibilidades, «faz demasiado», quer dizer com a diminuição da mortalidade não aumenta pura e simplesmente a frequência da doença, responde-se sem equívocos: Tanto a mortalidade como a morbilidade diminuiram. Infelizmente continua ainda a haver sempre crianças com lesões graves, contudo, o seu número diminuiu. O número de crianças com perturbações leves aumentou, devido a uma melhor e mais frequente definição do diagnóstico. Certamente aqui está incluído aquele grupo que dantes era designado por estúpido, parvo, malicioso, malcriado e mau e cujo desenvolvimento social e futuro eram determinados por estes epítetos.
Para terminar, referimo-nos ainda, em poucas palavras, à situação na Áustria. Dado que aqui não existe qualquer obrigatoriedade de identificação das crianças com perturbações, só é possível responder à questão do número de crianças e jovens com desenvolvimento perturbado, com base na própria experiência clínica.
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Num cálculo desta natureza é necessário partir da definição do conceito de «incapacidade» da Junta Consultiva para questões de incapacidade do Ministério Federal de Saúde e Protecção do Ambiente, 1976: «Qualificam-se de incapacitadas todas as crianças, jovens e adultos que, nas suas capacidades físicas, psíquicas, mentais, nas suas funções sensoriais, na aprendizagem, ou na sua comunicação linguística sofrem de restrição temporária ou permanente, de tal modo substancial, que a sua participação na vida profissional ou social não é possível sem auxilio adequado, ou sem meio de auxílio».
De acordo com esta definição, A. RErr, 1979, calcula que, na Áustria, o número de crianças e de jovens considerados com desenvolvimento perturbado se situa entre 11 e 15 por cento de todas as crianças e jovens vivos.
Capítulo 4
CAUSAS
Conforme já foi acentuado no início, a noção genérica de «lesões cerebrais infantis» encerra em si uma multiplicidade e um quadro clínico uniforme. Em termos quantitativos, estas estão em primeiro plano, contudo, há também um número relativamente grande de doentes cujo quadro clínico não pode ser inserido em nenhum dos quadros de diagnóstico existentes e conhecidos, sendo neste caso impossível, ou apenas possível condicionalmente, a associação com um sindroma.
Acontece que há grande necessidade de classificar estes doentes de acordo com os seus sintomas fundamentais, isto é, de acordo com aquele complexo de sintomas, em que estão em primeiro plano todos os factores clínicos e psicológicos que depois se tornam determinantes para o comportamento da criança e a sua relação com o meio ambiente.
Se se pensar que um defeito orgânico no cérebro tem muitas repercussões no âmbito de várias funções, é compreensível que, aqui, nem sempre seja possível reconhecer apenas um sintoma, mas que vários se sobreponham, e, deste modo, uma vez domine este outra vez aquele.
É também evidente que os sintomas se influenciam mutuamente e, desse modo, acentuam nas suas manifestações a perturbação geral.
Se se perguntarem as causas das lesões cerebrais infantis é, em primeiro lugar, imprescindível, colocar estes quadros clínicos num sistema ordenado, de acordo com determinadas normas. Num destes
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esquemas de classificação, que se tem afirmado correcto, tanto na teoria como na prática, é a classificação segundo o momento suposto da formação dessas perturbações.
4.1 LESÕES ANTES DO PARTO (PRÉ-NATAIS)
Na evolução do desenvolvimento anterior ao parto faz-se ainda a distinção, conforme a fase de desenvolvimento intra-uterino, entre embriopatias e fetopatias. Por embriopatias entendem-se as lesões orgânicas, que ocorrem dentro dos três primeiros meses de gravidez, enquanto que as fetoptias descrevem as lesões do feto, que ocorrem após o terceiro mês de gravidez.
O significado de traçar o limite após o termo do terceiro mês é também importante, pelo facto de uma interrupção da gravidez, dentro dos primeiros três meses, ficar impune no código penal de muitos países (no caso da Áustria, desde l de Janeiro de 1975).
Após o decurso dos três meses, a interrupção da gravidez somente pode efectuar-se por indicação médica. Contudo, deve referirse que esta definição temporal não é aceite por todos os investigadores. Segundo o médico austríaco, O. THALHAMMER o fim do terceiro mês basta, como primeiro compromisso, somente enquanto nos dermos por satisfeitos com uma mera descrição da anatomia embrionária. Se, pelo contrário, quisermos estudar a dinâmica dos fenómenos fisiológicos, sobretudo reacções patológicas. teremos que traçar os limites no fim do quarto mês; para estabelecer a diferença entre período embrionário e fetal.
O. THALHAMMER distingue três fases no desenvolvimento intra-uterino:
Fase da blástula: começa no momento da fecundação e termina com o início da circulação sanguínea, portanto com o primeiro batimento cardíaco.
Fase do embrião: o período a partir do termo da 4.' semana até ao fim do 4° mês. Nesta fase, ocorre a formação dos grandes órgãos.
Fase do feto: vai do início do 5.° mês até ao parto. Agora atinge-se a maturidade funcional dos órgãos. Estão criadas todas as
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condições para o funcionamento autónomo do corpo, na vida após o parto.
Dos factores que, antes do parto, afectam o desenvolvimento individual e foram reconhecidos como causa de anomalias do desenvolvimento temos que distinguir dois grupos que se relacionam entre si: as perturbações hereditárias (condicionadas pelo gene = genéticas) e as doenças condicionadas pelo meio ambiente (exógenas).
4.1.1 Perturbações de origem hereditária (Genopatias)
Embora o espírito humano tenda para simplificações demasiado sistemáticas, e sistemas difíceis e complexos, muitas vezes, tenham que permanecer desordenados e incompreensíveis, queremos contudo referir que o grande grupo das genopatias é de considerar, em nossa opinião, como uma dessas simplificações.
Os limites e as transições são muitos, há doenças hereditárias que têm a sua origem antes do nascimento mas que, todavia, só relativamente tarde, na vida posterior ao parto, conseguem manifestar-se. Acontece isso com a situação hereditária «dança de S. Vito» (Coreia de Huntíngton) que só entre os 30 e os 40 anos de idade revela os sinais característicos da doença e que, sem dúvida, é de natureza genética.
Além disso, dentro das chamadas genopatias está ainda o grupo das gametopatias. Trata-se de perturbações genéticas que têm a sua origem durante a maturação da célula germinal (maturação dos gâmetas) do pai ou da mãe, ou antes de o espermatozóide ter fecundado o óvulo. Podem incluir-se, aqui, por exemplo, as perturbações cromossómicas.
No quadro da nossa exposição gostaríamos de distinguir, dentro das genopatias, dois grupos: quadros clínicos cuja origem está na alteração (mutação) de um único factor hereditário e aqueles em que os portadores da hereditariedade (cromossomas) se afastam no seu número, ou forma, da variação normal.
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4.1.1.1 Mutações de um único Factor Hereditário (Mutações genéticas)
Os genes são isoladamente, e na sua acção comum, portadores de todas as características da estrutura física, psíquica e mental do homem. Numa comparação gráfica eles estão enfiados nos cromossomas, como as pérolas de um colar.
É provável que o número de crianças com mutação de base genética seja maior do que o que se consegue detectar, com as actuais possibilidades técnicas de observação.
A causa da lesão de uma parte das crianças com perturbações do desenvolvimento, cujo quadro clínico deve ser atribuído à mutação de um só gene, pode estar concentrada na noção genética de «perturbações do metabolismo» (erros congénitos do metabolismo).
Nós queríamos todavia insistir que, apesar do carácter particularmente grave de tais doenças, o número dessas formas é relativamente pequeno em comparação com o número total de crianças com lesão cerebral.
A investigação clínica conseguiu obter, nos últimos anos, grandes progressos justamente nestas perturbações do metabolismo. Os modernos métodos de observação da bioquímica permitem, hoje, diagnosticar com segurança uma série completa de perturbações do metabolismo e ajudar com determinadas terapias.
Alguns exemplos de perturbações do metabolismo mais frequentes:
Galactosémia: Esta doença foi descrita, pela primeira vez, logo após a descoberta das leis da hereditariedade de Mendel. Nesta afecção do metabolismo está ausente um factor bioquímico de transformação (enzima), que, no organismo saudável, transforma a lactose (galactose).
Esta doença revela-se logo poucos dias depois do parto. Devido à incapacidade do organismo da criança de assimilar a lactose, no caso de se alimentar com leite, ocorre primeiramente uma icterícia e, nas primeiras semanas de vida, uma alteração patológica do fígado. Entretanto, aparecem sinais de lesões definitivas do sistema nervoso central. Dado que, à nascença, o peso desta criança é frequentemente inferior ao de uma criança saudável, admite-se que este bloqueio do metabolismo pode estar já activo no útero.
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Trata-se de um aspecto importante dado que, neste ponto, a consulta de genética humana da mãe pode ajudar no que respeita a outras gravidezes. Se uma mãe tiver já um filho com galactosémia, é de contar, habitualmente, com uma probabilidade de 25 por cento, que também a próxima criança sofra dessa afecção. H. F. KALOUD C F. C. SITZMANN, em 197!, propuseram que as mães que já tiveram um filho doente deveriam prescindir de leite e de produtos derivados do leite, durante a gravidez. Quanto mais cedo fosse iniciado o tratamento das crianças doentes com uma dieta rigorosa, isenta de lactose, maior seria a probabilidade de serem evitadas lesões irreparáveis.
De acordo com R. G. HANSEN, 1964, a frequência dessas perturbações genéticas é de cerca de 1:18 000. Em muitos manuais de genética é ainda referida a frequência de 1:70 000. Isto é provavelmente de atribuir ao facto de não serem reconhecidos muitos doentes com galactosémia tanto mais que, nesta doença, a mortalidade após o parto é muito elevada.
Esta frequência é válida apenas para os países europeus. A galactosémia é também importante na etnografia moderna. Cerca de 70 a 75 por cento dos negros americanos sofrem desta incapacidade de assimilar a galactose. Isto é muito importante porque a oferta de leite escolar às crianças negras representa frequentemente a única fonte de proteínas da alimentação diária. A intolerância à lactose pode assim conduzir à falta de proteínas.
A intolerância à lactose também não se manifesta da mesma maneira em todos os doentes. As perturbações do desenvolvimento mental são apenas cerca de metade de todos os casos detectados. Só muito raramente ocorrem formas graves de idiotia.
Doença de Xarope do Bordo: O nome desta perturbação dometabolismo refere-se ao cheiro particular, que tem a urina das crianças em causa. A doença tem a sua origem no facto de determinadoselementos constituintes das proteínas (os aminoácidos leucina,isoleucina e valina) não serem metabolizados. Por esse motivo,encontra-se no soro e na urina um nítido aumento destes aminoácidos.Segundo D. ORYWALL, a percentagem de casos desta perturbação pode estimar-se, apenas aproximadamente, entre 1:10000 a1:100000. A dificuldade em fornecer o número exacto está, entre
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outros motivos, também no facto de, nestas crianças, ser elevada a mortalidade após o parto.
Já no período de desenvolvimento posterior ao parto, portanto na fase de recém-nascido, fazem parte do quadro clínico lesões cerebrais graves. Recusa de alimentos, convulsões e perturbações respiratórias que conduzem frequentemente à morte, nos primeiros meses de vida. Não está ainda esclarecido até que ponto as medidas dietéticas podem atenuar a doença.
Doença de Niemann-Pick: Esta doença foi descrita pela pri
meira vez pelo pediatra A. NIEMANN, 1914. Trata-se de uma perturbação do metabolismo dos lípidos. Logo após o nascimento, as crianças apresentam perturbações do desenvolvimento, tanto físico como mental. As consequências são grave défice intelectual e deficiência física progressiva. A morte ocorre geralmente por volta do fim do segundo ano de vida.
Ao lado desta forma maligna infantil, foi também descrita uma variante benigna que surge nos adultos e que é extremamente rara. Da investigação de A. ViDEBACK, 1949, deduz-se que esta afecção do metabolismo constitui um factor de risco importante, sobretudo nas comunidades judaicas.
Fenilcetonúria: Esta perturbação, bem mais conhecida, do metabolismo é devida à incapacidade de o organismo continuar a actuar no aminoácido essencial, a fenilalanina. Os aminoácidos essenciais são aqueles que o próprio corpo não consegue sintetizar e que, por esse motivo, têm que ser fornecidos com a alimentação diária.
A doença foi pela primeira vez descrita, em 1939, por A. FÕLLING. A perturbação dominante, o atraso intelectual, a maioria das vezes grave, não se nota nos primeiros meses de vida.
W. FUHRMANN refere que, até à adopção da observação obrigatória dos recém-nascidos, por meio do teste de Guthrie, a maior parte dos doentes, somente depois dos 10 anos de idade, apareciam para tratamento. Contudo, este momento é, sem dúvida, já demasiado tardio para se atenuarem as lesões do sistema nervoso central já existentes. Nos doentes que não foram tratados não se conseguiram encontrar quocientes de inteligência que atingissem, ou ultrapassassem 50.
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O início de uma dieta pobre, ou isenta de fenilalanina, logo a seguir ao nascimento, é absolutamente necessário para evitar grandes perturbações do desenvolvimento. O resultado dos exames obtidos por S. WASSER, 1979, revelaram também o grande significado de um plano dietético cuidadosamente elaborado. Num estudo feito em 107 crianças com fenílcetonúria 14 conseguiram ficar sem convulsões, exclusivamente através da dieta! Isto é muito importante, pois nos primeiros anos de vida uma em cada duas crianças e, na fase mais tardia, cerca de uma em cada quatro crianças têm convulsões com origem cerebral.
O atraso mental grande é o sintoma clássico de uma fenilcetonúria não tratada e, por isso, também a primeira designação desta doença foi «Imbecillitas Phenylpyruvica». É de fazer esta referência por as investigações mais recentes revelarem que o quadro clínico apresenta uma admirável variedade. Admirável, evidentemente, pelo facto de a mesma perturbação genética permitir várias manifestações.
W. FUHRMANN reuniu, a partir de trabalhos publicados, 25 casos reconhecidos que, mesmo sem dieta, atingiram níveis de inteligência quase médios. Isto pode ser considerado como um exemplo das várias maneiras em que uma série de efeitos sobre o gene pode determinar o quadro de manifestações, o fenótipo.
A dieta nos bebés e na criança pequena não traz dificuldades particularmente grandes aos pais. O problema assume importância à medida que o doente fica com mais idade, se tiver que ser continuada a terapia dietética.
Mas, o conhecimento da variante, atrás referida, do grau de manifestação de fenilcetonúria tem interesse prático para a medicina preventiva. Já em 1966 C. C. MABRY e outros referiam que crianças sem fenílcetonúria, que nascessem de mães fenilcetonúricas tinham um elevado risco no que respeita ao desenvolvimento intelectual. Até 1966, foram conhecidos 16 partos desta natureza. O quociente de inteligência era, sem excepção, inferior a 90, em metade das crianças mesmo inferior a 60.
O. THALHAMMER descreveu estas formas sob o conceito de «Intoxicações fetais». Em 1967, ele teve à disposição dados referentes a 27 crianças cujas mães tinham esta doença. Pelo menos 10 das crianças tinham atraso mental grave, embora não acusassem claramente essa doença. Tais frequências não são agora certamente aci-
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dentais. Já no útero o cérebro do feto pode ser lesado, de um modo irreversível, devido ao nível de fenilalanina da mãe.
O exame médico preventivo pode cingir-se sobretudo a grávidas com graus de atraso intelectual muito diferentes. Neste grupo incluem-se as mães que têm uma fenilcetonúria clinicamente discreta. A sua dieta, durante a gravidez, pode evitar uma intoxicação fetal com fenilalanina.
4.1.2 Mutações Cromossómicas
Lesões que são provocadas por alterações do número e forma dos cromossomas.
4.1.2.1 Aberrações numéricas (mutações referentes ao número de cromossomas)
Mongolismo (Síndroma de Down, Trissomia 21): Enquanto que o número total de cromossomas no núcleo das células é de 46 (44 cromossomas somáticos e 2 cromossomas sexuais) nestes doentes o número total é de mais 1. Em vez de 2 pequenos cromossomas somáticos (Grupo G, número 21), existem 3.
Conforme é hoje sabido, este cromossoma supra-numerário pode ser trazido para o zigoto tanto pelo pai como pela mãe, devido a um defeito na maturação da célula embrionária e, precisamente, na proporção de 1:3. Estas descobertas recentes têm, contudo, um grande significado no que se refere ao aspecto humano. Até há pouco tempo, era aceite, não apenas pelos leigos, que a idade avançada da mãe era a única «culpada». Se se conhecerem as elevadas cargas psíquicas e sociais resultantes do nascimento de uma criança com lesão cerebral, no presente caso do nascimento de um mongolóide, o que, baseandonos totalmente nas nossas experiências não podemos deixar de confirmar, os resultados das investigações são claramente insuficientes. O peso e a responsabilidade, que silenciosamente eram postas sobre a mulher, não apenas pela sociedade, podem agora ser-lhe finalmente tirados. O factor de risco da idade continua evidentemente a existir,
contudo, atinge tanto o pai como a mãe (W. SCHNEDL, P. WAGENBICHLER, A. RETT).
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Sindroma de Patau: Neste grave e complexo síndroma malformativo que foi descrito, já em 1657, por BARTHOUNI, o cromossoma 13 existe em triplicado. Nos nados-vivos a incidência é muito pequena e oscila de autor para autor entre 0,068 por cento e 0,20 por cento. No entanto, a frequência de 6 por cento destas mutações cromossómicas nos abortos espontâneos é consideravelmente alta. A esperança de vida é muito pequena; só 14 por cento sobrevivem ao primeiro ano de vida. Os sintomas referem-se, sobretudo, a grave defeito de formação do sistema nervoso central, das extremidades e do coração.
Sindroma de Edward: Também neste quadro patológico existe um cromossoma a mais, o cromossoma 18 (Grupo E). Em 6700 recém-nascidos encontra-se, em média, uma criança com esta grave perturbação de origem cromossómica.
Sindroma de Wolf (Síndroma de Hirschhorn-Wolf): Os cromossomas destes doentes correspondem no seu número ao normal, contudo, no cromossoma 4 uma porção está partida (defecção do braço curto). Os sintomas essenciais estão nas deformações e anomalias múltiplas, nas perturbações cerebrais e nos acessos convulsivos. A esperança de vida das crianças é muito reduzida.
Síndroma do grito do gato (Cri-du-chat): O resultado do exame dos cromossomas revela que falta uma porção do cromossoma 5 (delecção do braço curto). Este sindroma tornou-se particularmente conhecido devido ao sinal primeiramente dominante e que quase sempre se verifica, que consiste num grito particular da criança, sobretudo do bebé, em que o chorar estridente lembra o miar dos gatos. Este sindroma faz parte das anomalias da estrutura relativamente frequentes, com uma incidência à volta de 1:50 000 a 1:100 000. Não se sabe ainda muito sobre a esperança de vida. Dentro do nosso tipo de doentes há, contudo, alguns que têm agora já mais de 20 anos e nos quais as anomalias estruturais foram demonstradas sem equívocos. São também notórios o peso à nascença. que é claramente . baixo, e perturbações do desenvolvimento mental e físico. O atraso intelectual está sempre presente, assim como um epicanto acentuado.
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Sindroma de De-Grouchy I: Detecção do braço curto do cromossoma 18. Aqui, juntamente com um menor desenvolvimento mental e físico, estão em primeiro plano, sobretudo, anomalias do crânio. O quadro pode variar muito nas suas manifestações e espectro: pode ir de lábio leporino à ciclopia.
Num contexto diferente este sindroma resulta num paralelo do mongolismo. Os autores estão de acordo que, neste quadro clínico, a idade da mãe é elevada. P. E. POLANI indica como valor médio para a mãe 34,2 anos. Mas é de facto apenas a idade da mãe? Observações rigorosas dos cromossomas podem talvez revelar que, tal como acontece com o mongolismo, a perturbação pode ser também transmitida pelo pai.
Síndroma de De-Grouchy I/: Esta anomalia estrutural diz também respeito ao cromossoma 18 (contudo, detecção do braço comprido). O quadro clínico é, em si, uniforme, fechado, pouco variável. Em todos é comum o atraso físico e mental evidentes.
A gravidez não apresenta, de um modo geral, quaisquer indícios da perturbação existente, contudo, as crianças nascem com peso inferior ao normal.
Aqui, deve ser chamada a atenção para o facto de, nos últimos cinco anos, mediante técnicas de observação aperfeiçoadas, se terem descoberto, sobretudo, indícios substanciais da existência e frequência de alterações estruturais, como por exemplo defecção e cromossomas anelares.
No âmbito da apresentação do diagnóstico das crianças com lesão cerebral, a observação dos cromossomas é portanto imprescindível, se houver indícios de possíveis factores genéticos na história pregressa da criança, ou de sua família, no sistema padrão (M. ANDRLE).
4.1.3 Lesões devidas a infecção da grávida
As causas da lesão do feto por vírus estão divididas em embriopatias víricas e afecções víricas do feto.
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4.1.3.1 Embriopatias víricas
Como exemplo clássico podem aqui ser referidas, primeiramente, as deformações que são provocadas por uma infecção da mãe por rubéola. O oftalmologista australiano GREGG observou, em 1941, uma frequente ocorrência, excessivamente aleatória, de afecções da visão e audição, cerca de seis a nove meses após uma epidemia de rubéola. O efeito do vírus da rubéola está relacionado com lesões cerebrais e nervosas graves. A grande epidemia de rubéola ocorrida nos E.U.A., no ano de 1964, demonstrou muito claramente a extrema fraqueza do embrião, perante uma infecção por rubéola da mãe. Na sequência da mesma, vieram ao mundo cerca de 20 000 crianças com lesões.
Entretanto, sabe-se (G. TõNDURY, 1962) que também as infecções maternas pelo sarampo, papeira e outros vírus que infectam a mãe podem conduzir à afecção do embrião. O quadro clínico da embriopatia vírica, independentemente da variedade do vírus, revela, portanto, antes uma sintomatologia comum que corresponde a um sindroma. Este sindroma de embriopatia viral apresenta muitas das seguintes características: atraso intelectual, microcefalia, perturbações na recepção sensorial (cataratas, surdez) e deformações cardíacas congénitas.
Se bem que também a sintomatologia seja relativamente homogénea, o embrião reage de uma maneira diferente a essas infecções virais. A taxa de mortalidade do embrião, devido a infecção pelo vírus da poliomielite (embriopatia poliomielítica), é muito mais frequente do que devido a infecção pelo vírus da rubéola.
4.1.3.2 Infecções víricas do feto
Como exemplo do efeito das infecções víricas do feto, fazemos referência breve à citomegália e à toxoplasmose. Na citomegália (afecção devida a vírus nas glândulas salivares), ocorre uma alteração particular e aumento de volume das células afectadas. Células gigantes semelhantes são encontradas em quase todo o sistema orgânico. O elemento causal é o vírus das glândulas salivares do homem que, mesmo nos adultos, tem efeitos não raramente nocivos mas que, no período pré-natal, conduz a sérias enfermidades.
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A infecção «in utero» dá-se em focos de inflamação na placenta. É importante a observação de O. THALHAMMER segundo o qual, até agora, não foi descrito nenhum caso em que tenha sido encontrada mais do que uma criança afectada, em várias gravidezes da mesma mulher. Isto quer dizer que somente numa fase curta, após a primeira infecção, há perigo para o feto. Os prognósticos para futuras gravidezes, após o nascimento de uma criança com doença de inclusão citomegálica, são muito favoráveis.
O quadro clínico desta doença é variável e depende manifestamente da duração da infecção do feto. Estão quase sempre em primeiro plano alterações do fígado e dos órgãos hematopoiéticos.
Contudo, são também frequentes perturbações cerebrais. É importante, também, a ocorrência de lesões no âmbito dos órgãos endócrinos.
Uma das características mais importantes é também um atraso generalizado do desenvolvimento; mais de metade de todos os recém-nascidos apresenta um peso inferior a 2500 gramas.
O. THALHAMMER estima em 1:1000 a frequência da citomegália congénita, em Viena.
Também a infecção do feto pelo agente da toxoplasmose, o toxoplasma, tem sempre como condição a infecção prévia da mãe. Na Áustria, no passaporte mãe-filho, está previsto o exame de rotina da toxoplasmose às grávidas. Ainda assim, O. THALHAMMER, o pioneiro da investigação da toxoplasmose, estima uma incidência de seis a sete recém-nascidos afectados em cada mil. Na prática clínica é essencial o facto, agora aceite como certo, que uma toxoplasmose congénita é possível, somente na primeira infecção da mulher, durante a gravidez. As gravidezes futuras estão livres de perigo.
O quadro de manifestações posteriores ao nascimento é bem diverso. Contudo, na maior parte dos casos, a infecção do feto leva a lesões cerebrais irreparáveis. Somente nas manifestações mais graves, é possível reconhecer os sintomas logo na altura do parto. Com base numa observação feita por O. THALHAMMER, em Viena, deduz-se que 16 por cento das lesões cerebrais, para as quais não se encontrava uma explicação pouco depois do nascimento, têm por base uma toxoplasmose congénita.
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4.1.4 Embriopatias por intoxicação (lesões devidas a produtos químicos)
Só raramente se consegue determinar, com suficiente segurança, em que medida os produtos químicos (medicamentos, conservantes, insecticidas, etc.) provocam lesões cerebrais e perturbações do desenvolvimento. Em muitos casos admite-se uma relação directa. Contudo, é frequentemente muito difícil apresentar uma prova autêntica, tanto mais que, aqui, a experiência em animais só em parte pode ser utilizada como apoio a esta hipótese.
Como modelo do efeito teratogénico de medicamentos pode servir a Talidomida (Contergan). Em 1961, H. R. WIEDEMANN referiu-se à crescente frequência do desenvolvimento defeituoso das extremidades e, no mesmo ano, o especialista em genética W. LENZ chamou a atenção para o facto de estas malformações dos membros poderem ter como causa a ingestão de Contergan, durante a gravidez.
Embora hoje não seja vendido este soporífero e tranquilizante, ainda aparecem, esporadicamente, malformações dos membros do «tipo Talidomida».
Em 1973, foi organizada por K. A. ROSENBAUER uma lista de medicamentos segundo a qual em cada um destes grupos se encontra, pelo menos, um medicamento que acusa efeitos lesivos para o feto:
Analgésicos Substâncias inorgânicas
Sulfonamidas antibacterianas Antibióticos
Antieméticos Antidiabéticos
Contraceptivos Antihipercolesterinémicos
Antineurálgicos Antipiréticos
Antireumáticos Bloqueadores ganglionares
Diuréticos Hormonas
Alucinogéneos Sedativos e Hipnóticos
Psicofármacos Tireostáticos
Estimulantes Vitaminas
Vasoconstritores Citostáticos
É ainda de referir que a triste realidade das deformações da talidomida teve alguma utilidade para a ciência puramente teórica,
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desde que daí tenha resultado a necessidade de, em observações experimentais, se reflectir sobre a adaptação, muitas vezes não criteriosa, ao ser humano das experiências levadas a efeito em animais. Em quase todas as espécies de mamíferos foram provocadas malformações com a talidomida, não apenas no animal utilizado na investigação experimental, a rata.
O efeito da talidomida foi tão trágico, por a fase sensível se situar, mais ou menos, entre o 21º e o 44º dia após a fecundação e portanto num período em que muitas mulheres não sabiam ainda que estavam grávidas.
Quanto aos outros calmantes (tranquilizantes), é admitido igualmente um efeito lesivo sobre o feto, nos estádios iniciais. Ao mesmo tempo, é particularmente inquietante que também estes tranquilizantes sejam muitas vezes tomados por mulheres que, na altura, não sabem ainda que estão grávidas. A fase sensível é discutida durante as primeiras seis semanas. Numa observação feita por L. MILKOV1cH e BEA J. VAN DEN BERG, 1974, com base em dados referentes a mais de 19 000 recém-nascidos, comprovou-se que eram demonstráveis, estatisticamente, diferenças na taxa média de malformações se se distinguissem dois grupos: crianças cujas mães, nos primeiros 42 dias da sua gravidez, tomaram calmantes e crianças cujas mães prescindiram desses tranquilizantes, durante esse período*. Enquanto que, no primeiro grupo, foram observadas 2,7 por cento de malformações, no segundo, situaram-se à volta de 12 por cento. Embora não possa ser ainda indicada qualquer relação inequívoca de tais malformações, supõe-se que medicamentos do grupo Equanil conduzem a uma taxa elevada de defeitos cardíacos.
Quanto ao possível efeito teratogéneo do tranquilizante Valium, a maior parte das vezes classificado de inofensivo, que seja do nosso conhecimento não existem ainda quaisquer resultados garantidos. Assim, deve ser salientado, embora em poucas palavras, um trabalho de J. A. STERN, 1975. Com um método recente para a medição de perturbações da concentração, foi demonstrado que, após ingestão deste medicamento pelos adultos, se verifica uma deterioração nítida do poder de concentração.
___________
* Nota do Tradutor: Embora pareça não ter sentido, é a tradução que corresponde ao texto no original.
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Muitas vezes, são tomados medicamentos, ou vitaminas, cujas doses são consideradas necessárias e inofensivas para a grávida. Por exemplo as vitaminas são prescritas e ingeridas em elevadas quantidades, muitas vezes sem critério, para compensar a perda de vitaminas durante a gravidez. Enquanto que no ensaio em animais puderam ser causadas malformações devidas a doses demasiado elevadas de vitaminas A e D, a vitamina C é tida, ainda hoje, como consideravelmente inofensiva. A vitamina C não está apenas incluída nos preparados de vitaminas que a grávida toma, mas é também um componente de muitos medicamentos. Por isso, assumem particular significado os estudos de E. P. SAMBORSKAJA e T. D. FERDMANN, 1972. De 20 grávidas, que durante a gravidez tomaram diariamente 6 gramas de vitamina C, 16 tiveram um aborto. Em relação a este aspecto K. A. ROSENBAUER chama a atenção para o facto de que também, em substâncias aparentemente inocentes, podem estar ocultos factores ambientais de grande risco.
Mas, também os anestésicos, que são utilizados em cirurgia, podem ser causa de malformações e de perturbações de desenvolvimento das crianças. Na América, estão reunidos dados, desde 1965, que apontam para a legitimidade de tal suspeita. Se bem que tais relações somente pudessem ser demonstradas concludentemente em ensaios feitos em animais, B. FINK e outros, aconselharam em 1969 o máximo cuidado na utilização desses medicamentos nos estádios iniciais da gravidez.
4.1.5 Lesões devidas a noxas físicas
O possível efeito patogénico das radiações conta-se hoje entre as questões que estão no centro do interesse público, relacionadas com a prestação do ambiente e a instalação de centrais nucleares. Justamente devido às emoções fortes e, não raro, pouco críticas, este problema deve ser discutido com extrema prudência. Não está de modo nenhum esclarecido, conforme muitas vezes parece nas discussões públicas, em que medida pode ser lesado o património genético pela exposição às radiações.
Relativamente à possibilidade de um aborto espontâneo, devido a uma carga de radiações, foi já chamada a atenção logo no virar do
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século. Em 1926, J. ZAPPERT descreveu, pela primeira vez, o quadro clínico da embriopatia devida a radiações. O. THALHAMMER reuniu, até 1967, o resultado de 38 crianças nascidas com vida e que tinham sido submetidas a radiações, durante os primeiros quatro meses de vida pré-natal. 76 por cento destas crianças tinham microcefalia marcada; excepto duas crianças, todas tinham perturbações do sistema nervoso central. 19 crianças revelavam indícios particularmente graves de um subdesenvolvimento geral e foram qualificadas de «anãs». Os pesos de nascimento estavam entre 750 e 2500 gramas. THALHAMMER designou de «microcriança» o aspecto de uma criança com uma embriopatia por radiações, totalmente desenvolvida.
J. N. JAMAZAKI, em 1951, observou uma parte das mães que tinham estado expostas a uma carga elevada de radiações, quando das explosões da bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki. Eram cerca de 98 mães que estavam grávidas, durante o lançamento, e tinham estado dentro do limite dos 2000 metros do centro da explosão. Muitas mulheres apresentavam mesmo graves lesões físicas, devido à exposição às radiações. O grupo que serviu de controlo compreendia grávidas que, nessa altura, tinham vivido 4000 a 5000 metros fora do centro. Também em cerca de 30 por cento destas mães foi comprovada uma lesão somática, devida às radiações.
Nas mães que tinham estado perto do centro das radiações foi comprovada uma mortalidade global das crianças na escola de 43 por cento, naquelas que se tinham mantido mais afastadas uma taxa de mortalidade de 9 por cento. Nas crianças fortemente expostas às radiações sobretudo a mortalidade fetal era muito elevada. As crianças que sobreviviam e cujas mães apresentavam forte carga de radiações revelavam nítidas perturbações do desenvolvimento físico e mental. Embora o resultado destes exames seja também o resultado de uma carga extrema, deve ser, porém, posta em primeiro plano, e com toda a insistência, a seguinte reflexão:
É conhecida da genética experimental que nos mamíferos, entre os quais, pelo sistema orgânico, se inclui também o homem, a sensibilidade às radiações é mais elevada nos primeiros, mais antigos estádios do desenvolvimento do embrião. Nos estádios fetais mais tardios a sensibilidade diminui um pouco. As primeiras semanas da gravidez são, por isso, particularmente perigosas. Mas, muitas vezes neste período as mães ainda nem têm conhecimento da sua gravidez.
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Por isso, para evitar lesões, seria particularmente importante que não fossem mandados efectuar quaisquer exames de Raios X ao abdómen, na segunda metade do cicio ováríco. As mulheres que, devido à sua profissão, estão expostas a uma carga de radiações, deveriam, durante este período, trabalhar numa zona livre de radiações.
Como exemplo de uma outra espécie de lesões físicas deve ser apenas referido que, segundo H. VoGT, 1972, podem. ocorrer lesões cerebrais em resultado de um excesso de fornecimento de oxigénio. Uma fase particularmente sensível, para o crescimento e desenvolvimento do cérebro, é o período pouco antes e pouco depois do parto. No efeito lesivo do excesso de oxigénio não está, contudo, considerada a pressão excessiva de oxigénio sobre cujo efeito no sistema nervoso já muito se escreveu. O autor demonstra antes tratarem-se aqui de efeitos resultantes de um aumento de oxigénio, mesmo sob condições de pressão normais. O efeito prejudicial baseia-se numa diminuição da taxa de crescimento das células cerebrais. Segundo H. VOGT, um tratamento com oxigénio devia, em todo o caso, ser olhado com cepticismo.
Como uma outra possibilidade de lesão física, deve ainda ser feita uma breve referência às deformações do feto, devidas a temperaturas elevadas da mãe. Pelo menos nos ensaios feitos em animais, foram positivos os resultados de animais prenhes que foram expostos a altas temperaturas. Estes ensaios foram de tal modo impressionantes que a O.M.S. considera prioritário que se continue a investigar se as afecções febris podem provocar anomalias congénitas no homem. O vírus da gripe podia ser excluído como estando na base de malformações. M. J. EDWARDS pôs, em 1973, à discussão a questão se a elevação da temperatura induzida por vírus pode restringir o desenvolvimento saudável do feto.
Há mais de cem anos (BRESLAU, 1859) que se sabe que intoxicações das grávidas, com monóxido de carbono, provocavam lesões do feto. Em geral, trata-se de grávidas que fizeram tentativas de suicídio com gás. Segundo THALHAMMER, as crianças nascidas com vida apresentam, sem excepção, graves perturbações de desenvolvimento e deficiências intelectuais. Nas intoxicações das grávidas com monóxido de carbono o prognóstico, quanto à saúde da criança, é extremamente mau. As consequências são lesões cerebrais graves.
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4.1.6 Lesões devidas a perturbações hormonais
As perturbações hormonais da mãe, como causa de lesões cerebrais infantis, são já conhecidas há muito. Em primeiro lugar deve pensar-se aqui na grávida diabética. G. LAST calcula que até 5 por cento de todos os cidadãos da Europa Ocidental são diabéticos. As lesões do feto devidas à diabetes (diabetes mellitus) são, entretanto, bem conhecidas. Deve chamar-se a atenção, particularmente, para o facto de também poderem ocorrer lesões do feto, quando a grávida não tem ainda qualquer conhecimento da sua doença (diabetes latente, estado pré-diabético). O. THALHAMMER escreve, a este respeito, que as consequências que a diabetes materna tem nas lesões do feto podem ter sido conhecidas já em anos anteriores aos mais subtis métodos de observação clínica.
Surgem graves perturbações orgânicas, em 6 a 12 por cento de todas as crianças, cujas mães são manifestamente diabéticas. Enquanto que nas outras lesões do feto se encontram, a maior parte das vezes, bebés leves para a idade de gestação, quer portanto dizer recém-nascidos com um peso à nascença inferior a 2500 gramas, as mães diabéticas dão frequentemente à luz os chamados bebés gigantes, com pesos à nascença à volta de 4000 gramas. Contudo, em média, numa em cada duas destas gravidezes ocorre a morte do feto.
São também conhecidas anomalias e atrasos de desenvolvimento, devidos a perturbações da função da glândula tiróide materna. Certos medicamentos para a regulação da glândula tiróide (tireostáticos) atingem o feto, através da placenta. Foram observados aumentos de volume da glândula tiróide fetal, podendo, no entanto, ser muito variável a sua manifestação. Em casos raros, pode admitir-se o aumento de volume com uma amplitude tal que, através de uma pressão demasiada do tecido recém-formado, ocorre a morte do feto, por asfixia.
A ingestão contínua, durante muito tempo, de medicamentos, nos casos de hipofuncionamento da tiróide (hipotiroidismo) da grávida, pode também conduzir a uma diminuição da função da tiróide do feto. São conhecidos da literatura hipotiroidismos fetais, com lesões cerebrais irreversíveis. Pelo contrário, é pouco conhecido o facto (W. BICKENBACH, 1948) de os tireostáticos também serem transmitidos à criança, durante a amamentação, através do leite materno. Por
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conseguinte, as mulheres que são tratadas com medicamentos desta natureza não deviam amamentar os seus filhos.
Se considerarmos o tipo de doentes da nossa clínica, não pode ser dada uma resposta à questão das causas hormonais com referência apenas à diabetes, ou a um hipofuncionamento da tiróide. Sabemos que o sistema hormonal do organismo feminino é extremamente complicado, conduzido por uma multiplicidade de factores, e perturbável com relativa facilidade. Bastam pequenos desvios, qualitativos ou quantitativos, do normal, para provocar já repercussões noutros sistemas do organismo. As consequências de tais disfunções hormonais são aqueles fenómenos que se qualificam de aborto iminente. A maior parte das vezes, por volta do terceiro mês de gravidez, ocorrem hemorragias uterinas que ou levam ao aborto, isto é, à morte e saída do feto, ou então o feto, ainda com vida, pode ser mantido ainda no útero através de uma terapia especial de hormonas. Nesta história não se pode dar uma «lei-de-tudo-ou-nada» em que ou, num caso, o feto saia, ou, noutro caso, permaneça sem perturbações e sempre saudável, no útero.
4.1.7 Nicotina e Álcool
A importância que assumiu, para a saúde nacional, o crescente abuso do álcool pode ser muito claramente explicada pelo facto de, em 1968, o Tribunal Social Federal da R. F. A. ter reconhecido o alcoolismo como doença, no sentido da legislação sobre segurança social.
Nas lesões graves provocadas pelo álcool incluem-se, não só, as lesões tardias dos alcoólicos adultos, mas as lesões irreversíveis do feto, actualmente em quantidade crescente, causadas pelo abuso de álcool por parte das grávidas. O consumo de álcool pela mãe leva, muitas vezes, a perturbações de crescimento no decurso do desenvolvimento anterior e posterior ao parto. Em consequência disso, é possível observar deformações nos filhos de mulheres alcoólicas; verificaram-se deformações cardíacas em cerca de uni quarto. Nas características mais frequentes incluem-se perturbações do desenvolvimento mental. B. LEIHER descreveu, em 1972, um quadro patológico clinicamente definido, o chamado síndroma feto alcoólico.
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F. MAJEWSKI descreve, em 1978, a embriopatia alcoólica da seguinte maneira: menor crescimento, microcefalia, atraso intelectual e várias lesões orgânicas.
O abuso do álcool, durante a gravidez, está, todavia, também relacionado com a nutrição deficiente e insuficiente, de tal modo que se produz uma perda de tecidos vitais para a criança.
Também cada cigarro fumado obriga o feto, em crescimento, a um fumar passivo. Embora a nicotina não pudesse ter sido ainda declarada como causa directa de anomalias, os filhos de uma grande fumadora têm menos cerca de 250 gramas de peso do que os filhos das mulheres não fumadoras. As estatísticas fornecem também dados de que o tempo de gestação é também reduzido em alguns dias. Observações levadas a efeito, durante um período longo, pelos americanos revelam com insistência os efeitos tardios em filhos de fumadoras. Num estudo feito durante um longo período de mais de sete anos, em cerca de 17 000 crianças, puderam ser encontradas provas desses efeitos tardios. A percentagem de filhos com dificuldades de aprendizagem e ligeiras perturbações do comportamento era significativamente mais elevada nas mães que fumaram durante a gravidez. Um critério, no quadro desta observação, era se a mãe tinha ou não fumado mais de dez cigarros por dia durante a gravidez; este número, aparentemente insignificante, podia ser definido como uma linha de demarcação inequívoca. Relativamente ao consumo excessivo de nicotina e de álcool pela grávidas, admite-se que só determinados tipos de mulheres não têm em conta a sobriedade considerada como normal na população. A razão pela qual uma mulher fuma ou bebe tanto, ou, a maior parte das vezes, fuma e bebe aponta já para dificuldades primárias. Aqui encontram-se paralelos com as mulheres que tomam soporíferos e tranquilizantes em excesso; deve existir, como pré-disposição, uma carga particular da situação psicossocial.
4.1.8 Estupefacientes na gravidez
Os recém-nascidos de mães que, durante a sua gravidez, ingeriram até ao fim estupefacientes, revelam todos os sinais de abstinência. Este síndroma de abstinência foi já descrito no século passado. Em 1934 foi conhecida a primeira grande colecção de dados dessa
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natureza através de E. MENNINGER-LERCHENTHAL. Entretanto, este
sindroma veio a transformar-se num problema sério e, nos anos seguintes, muitas preocupações viria a trazer aos serviços de saúde.
Sobretudo as observações levadas a efeito pelos americanos revelaram que cerca de metade dos recém-nascidos de mães toxicómanas tinham manifestações de abstinência. As crianças revelam múltiplos sinais de subdesenvolvimento, o seu peso à nascença é geralmente inferior a 2500 gramas. Nos primeiros, dias, ocorrem perturbações típicas do sistema nervoso central como agitação, convulsões e um choro alto característico. O. THALHAMMER descreve como sinal característico quase obrigatório um chupar e mastigar desesperados nos dedos e nas mãos. Desidratação e diarreia podem assumir proporções críticas. Se as crianças sobrevivem, os sintomas desaparecem, em média, após a primeira semana de vida.
4.1.9 Lesões devidas a insuficiente ou deficiente nutrição da mãe
O desenvolvimento óptimo, quer físico quer mental, da criança depende, em primeiro lugar, e, em grande proporção, da nutrição da mãe durante a gravidez. G. LAST chama a atenção para o facto de, entre muitos partos prematuros e bebés leves para a idade de gestação, se encontrarem aqueles cujas perturbações de desenvolvimento encontram a sua explicação numa alimentação insuficiente, ou defeituosa, da mãe. Cerca de dois terços das células cerebrais estão já formadas na altura do nascimento, o último terço amadurece no primeiro meio ano de vida. Importante é que nesta lesão a nutrição da mãe foi tida subjectivamente como suficiente porque, por ignorância, ela continha, na verdade, uma suficiente quantidade de hidratos de carbono, mas não foi acompanhada de um valor suficientemente elevado de proteínas. Contudo, a falta destas proteínas tem consequências prejudiciais no crescimento das células cerebrais e na formação das ligações dos neurónios dos centros cerebrais. A falta de proteínas, nos últimos três meses que precedem o parto, e, depois, durante o primeiro meio ano de vida, pode ter como consequência perturbações irreparáveis do desenvolvimento da criança.
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Contudo, não é apenas a falta de proteínas que pode levar a perturbações do desenvolvimento, mas também a falta de oligoelementos e de vitaminas. Há indícios de que a falta de magnésio, por exemplo, provoca uma maturação bioquímica insuficiente do cérebro.
Observações levadas a efeito em países subdesenvolvidos revelam pormenores impressionantes sobre a deficiente alimentação das grávidas. Num estudo feito na índia foram diagnosticados, em 44 por cento das grávidas, sinais de falta de vitamina B já com manifestações clínicas e, em cerca de 15 por cento das grávidas, avitaminoses da vitamina A. P. S. VENKATACHALAM escreve, em 1962, (citado por O. THALGAMMER): «Deve, contudo, ter-se plena consciência de que testemunhos de trabalhos desta natureza são válidos para centenas, milhões de grávidas em todo o mundo».
Contudo, também alimentos que são tidos como saudáveis podem ter efeitos prejudiciais em determinadas circunstâncias, se forem consumidos em estádios muito precoces da gravidez. A hipótese de J. RENWICK, 1972, de que o popular alimento do povo, a batata, em más condições, pode provocar malformações não foi, até hoje, refutada. Com a questão «Pode a batata ser um teratógeno?», a revista médica Selecta faz um apelo a uma discussão geral. RENWICK chama a atenção para a possibilidade de batatas armazenadas durante muito tempo levarem a deformações da coluna vertebral (Spina bífida) e a outras malformações do sistema nervoso central. Embora estejam ainda em aberto questões causais, muitos cientistas advertem já, por razões de precaução, contra o consumo de batata, durante a gravidez, que esteja armazenada durante muito tempo, ou que apresente indícios de putrefacção.
4.1.10 Lesões devidas a «stress» psíquico
À questão do significado do stress psíquico na gravidez não pode ser dada uma resposta nem eficaz, nem genérica. É sabido que um choque, devido ao seu efeito agudo e directo na circulação e no sistema nervoso, pode exercer uma acção perturbadora sobre a interacção mãe-feto. A tendência para aborto, na sequência de estados de choque, é nitidamente elevada. A diminuição dos movimentos da
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criança no ventre materno é igualmente conhecida e pôde ser comprovada em experiências feitas em animais. Até que ponto essas cargas psíquicas externas, agudas e em forma de choque, atribuídas a preocupações, emoções, estados de angústia, depressões exercem uma influência negativa sobre o sistema mãe-filho é, na verdade, uma das grandes questões em aberto nas investigações que estão a ser feitas. Embora tais relações pareçam ser, de qualquer modo, naturais; não é, actualmente, possível demonstrá-las. Muitas vezes os familiares chamam a atenção para as circunstâncias que lhes parecem naturais para a explicação do «porquê». A necessidade causal, isto é, o desejo do conhecimento da causa encontra justamente uma forte satisfação nessas cargas psíquicas. É de considerar também que, precisamente nos casos de fortes cargas psíquicas, é quase sempre possível a actuação de factores de risco adicionais como a nicotina, o álcool, analgésicos, tranquilizantes.
4.1.11 Incompatibilidade de grupos sanguíneos
Um grupo também significativo, em termos numéricos, de lesões cerebrais é aquele em que se verificam sobretudo deficiências motoras, com perturbações da recepção sensorial, da inteligência; e por vezes epilepsia e que devem ser atribuídas a incompatibilidade dos grupos sanguíneos. Neste caso, trata-se de incompatibilidade entre grupos particulares de sangue da mãe e do filho, que herda do pai os seus caracteres sanguíneos.
Particularmente conhecida é a incompatibilidade Rhesus. Nesta perturbação, pode dar-se a seguinte situação: o sangue da mãe revela no seu efeito bioquímico sobre o soro sanguíneo do macacus Rhesus uma reacção diferente do sangue do pai da criança. Se o sangue da criança apresenta a reacção paterna, então verifica-se, ou logo no ventre materno, ou imediatamente após o parto, uma incompatibilidade entre os glóbulos sanguíneos da mãe e os do filho. Formaram-se no sangue da mãe anticorpos contra os glóbulos sanguíneos do filho que podem levar estes à destruição.
De acordo com a reacção serológica distinguem-se factores sanguíneos Rhesus-positivo
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sangue Rhesus-positivo casa com uma mulher com reacção Rhesus-negativa e da sua união resulta uma gravidez com um filho Rhesus-positivo, então o organismo da mãe começa a formar anticorpos contra o sangue do filho. Esta formação de anticorpos, contudo, processa-se de um modo relativamente lento de tal modo que, na primeira gravidez, não ocorre ainda qualquer lesão do feto. Contudo, se a seguir ocorrer uma gravidez com um filho Rhesus-positivo, então os anticorpos da mãe podem atravessar a placenta e agredir os glóbulos sanguíneos fetais.
As formas de reacção do organismo da criança não são uniformes; vão desde as perturbações relativamente insignificantes, à morte. Todas estas perturbações são agrupadas sob a designação de «Erythoblastosis fetalis». O efeito dos anticorpos matemos sobre os glóbulos sanguíneos do filho leva à libertação de pigmento sanguíneo (Hemoglobina) que, a seguir, se constitui em bilirrubina. A bilirrubina é de cor amarela intensa e a percentagem excessiva de bilirrubina no sangue conduz a uma coloração fortemente amarelada de todo o corpo, quadro que é designado por icter us neonator um gravis (icterícia grave do recém-nascido). Esta extingue-se por si após algumas semanas, mesmo sem tratamento. Contudo, se a taxa de bilirrubina, isto é, se a sua percentagem no soro sanguíneo da criança ultrapassar uma certa medida, a bilirrubina irá destruir determinadas zonas de células do cérebro. Há aqui um limite de tolerância, que não pode ser ultrapassado, sem consequências. Este limite não está fixado com exactidão, há uma pequena diferença provavelmente individual; contudo, geralmente situa-se entre 15 e 20 por cento de bilirrubina no soro sanguíneo.
Trata-se de uma determinada região do cérebro e, precisamente, o chamado sistema estriopalidal, portanto um dos órgãos mais importantes do comando da motilidade, que está particularmente ameaçado, devido ao elevado nível de bilirrubina. A bilirrubina tem um efeito tóxico nas células nervosas desta região, isto é, destrói-as. A designação habitual para esta lesão especial «icterícia nuclear» referese ao chamado núcleo motor no qual se inclui o sistema estriopalidal. As perturbações neste domínio conduzem a formas patológicas de movimento bem características que são qualificadas de coreicas, ou atetósicas.
A questão se, e em que medida, se chega ao icterus neonatorum gravis, ou seja ao processo patológico da «icterícia nuclear», depende
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da dimensão da formação de anticorpos no organismo da mãe. Na primeira gravidez ela é insignificante, em cada gravidez que se seguir a percentagem de anticorpos aumenta. Quer dizer, quanto mais anticorpos, mais perigo corre o feto dentro do ventre materno. E, contudo, neste quadro também nada se consegue generalizar, quer dizer há mulheres que em gravidezes posteriores apresentam concentrações francamente baixas de anticorpos de tal modo que não é de recear um perigo para a criança, ou ele só existe mas em proporções insignificantes. Contudo, após transfusões sanguíneas também se podem formar anticorpos; portanto, não é de modo nenhum necessária uma gravidez para se produzirem anticorpos.
O tratamento do icterus neonatorum gravis, através da substituição de todo o sangue da criança, pelo sangue do seu próprio grupo sanguíneo, foi, durante longos anos, uma medida eficaz. Apesar disso, actualmente podem mesmo aparecer ainda deficiências motoras e intelectuais, em casos de substituição de sangue perfeitas. Sobretudo, podem não ser evitados, muitas vezes, os chamados defeitos mínimos. Aqui parecem desempenhar também o seu papel diferenças individuais na reacção do organismo infantil e do seu sistema nervoso. Métodos como a substituição do sangue da criança, ainda no ventre materno, são apenas de considerar a título experimental. As possibilidades que uma criança tem de sobreviver saudavelmente a um tal processo são mínimas.
Nos últimos anos, foram efectuadas, a nível mundial, tentativas de administrar às grávidas um soro específico contra a formação de anticorpos. Parece que esta via se tomou uma profilaxia autêntica e eficaz. Contudo, antes de podermos considerar este quadro patológico evitável, há que aguardar os resultados dos amplos estudos de revisão.
Análoga à incompatibilidade do sangue Rhesus-positivo e Rhesus-negativo pode considerar-se, como constelação de segunda importância, a situação do sistema clássico dos grupos sanguíneos ABO. Já em 1905 (F. VOGEL, 1961) se supôs ser a incompatibilidade mãe-filho responsável pelo icterus neonatorum e pela morte intra-uterina do feto. Enquanto que no sistema Rhesus a primeira gravidez apresenta apenas um risco mínimo, na constelação desfavorável dos grupos sanguíneos do sistema ABO a primeira gravidez está já ameaçada. Reacções de incompatibilidade são particularmente inten-
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sas nos primeiros meses de gravidez e conduzem a uma taxa elevada de abortos. F. VoGEL escreve que podem produzir-se aparências de esterilidade devido à constelação ABO. A evolução da afecção ictérica nos sobreviventes é, em geral, mais leve do que nos casos de incompatibilidade Rhesus.
4.1.12 Hemorragias no início da gravidez
Se se discutir a ocorrência de lesões cerebrais infantis numa perspectiva puramente temporal, surge logo claramente a noção de encadeamento de causas. Isto deve significar que não é sempre apenas um único factor causal que está em questão, mas que estão presentes vários factores temporais, uns a seguir aos outros, ou simultaneamente, sendo difícil distinguir a qual cabe maior importância, em termos quantitativos ou qualitativos. Típico numa cadeia causal é: hemorragia uterina durante o início da gravidez - parto prematuro - asfixia - convulsões e, depois, como consequência, perturbações do movimento, de origem central.
Na observação duma cadeia causal desta natureza parecem particularmente importantes as interpretações de W. LENZ, 1970, que escreveu: «A suspeita de que fortes hemorragias, nos primeiros meses de gravidez, podiam provocar uma pretensa ameaça de aborto tornou-se do domínio público, juntamente com a apologia do Contergan».
LENZ concluiu, a partir dos dados até agora conhecidos da literatura, que as hemorragias no início da gravidez não constituem, a maior parte das vezes, nenhuma causa de malformações, mas surgem em consequência dessas anomalias, que, na verdade, na maioria dos casos implicam um aborto. Estas considerações baseiam-se em primeiro lugar nos resultados das observações de C. O. CARTER, 1950, e H. KREMLING, 1963. Os autores descobriram, num total de 718 crianças que nasceram após hemorragias no princípio da gravidez, à volta de 3,1 por cento de malformações. LENZ considera que este número não é extraordinariamente elevado, dado que foram também incluídas deformidades dos membros, como por exemplo, o pé equino varo.
Estranho é que, seja ou não por acaso, nas 16 mães que sofreram hemorragias muito graves não se tenha encontrado uma única criança malformada.
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M. E. TAKALA, 1958, verificou que em 241 mães de filhos com desenvolvimento perturbado, apenas 3,5 por cento tiveram hemorragias vaginais nos primeiros meses de gravidez. Num exame de controlo de mães que tinham no mínimo dois filhos saudáveis, mas nenhum filho com lesão, verificaram-se hemorragias, durante a gravidez, em 5,4 por cento.
LENZ confronta estes resultados com o levantamento de H. NisHIMURA, 1969. 0 autor descobriu na observação de fetos, após a interrupção da gravidez, cerca de 1,6 por cento de deformações, nos casos em que a anamnese prévia não apontava para quaisquer sinais de hemorragias. Nas interrupções após hemorragias 3,6 por cento, nas interrupções após ameaça de aborto já foram comprovadas 6,2 por cento de lesões.
Os autores inclinam-se para a opinião de que, na interrupção artificial da gravidez, estão frequentemente incluídos aqueles fetos que, na maior parte das vezes, não iriam sobreviver, ou sobreviriam apenas condicionados.
4.2 LESÕES PERINATAIS
4.2.1 Lesões devidas a falta de oxigénio
As perturbações vasculares têm uma cota substancial na etiologia das lesões cerebrais infantis. Entendemos por isso as lesões que resultam de perturbações da irrigação do sistema nervoso central e que são atribuídas, essencialmente, ao deficiente fornecimento de oxigénio ao cérebro, ou a hemorragias por diapedese. O rasgar de vasos, com saída maciça de sangue para dentro do tecido nervoso leva, quase sempre, à morte. Só raramente as crianças conseguem sobreviver a tais acontecimentos.
A Tríade de Little à qual, facto que é quase desconhecido, S. Freud se referiu, nos seus primeiros trabalhos científicos, relacionada com os três importantes eventos: parto prematuro, parto difícil, anóxia
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(suspensão da respiração devida à falta de oxigénio), também não perdeu, do ponto de vista actual, nada do seu peso etiológico, simplesmente já não podemos constatar, com tanta frequência, a anóxia como causa primária de uma lesão cerebral. Actualmente, parece-nos muito mais ser já o resultado de uma perturbação passada em que a anóxia originada desse modo, depois, por seu lado, provoca lesões mais ou menos graves no cérebro devido à falta de oxigénio. No parto difícil ela está relacionada com a ausência parcial, ou total, de oxigénio. Assim, o processo de parto é suspenso devido às contracções hipertónicas permanentes, e a cabeça da criança fica exposta a uma pressão elevada. Esta pressão fica sobre a pressão sistólica da criança no útero materno. As fases de repouso normalmente dadas à criança entre as contracções de parto são muito curtas, ou estão ausentes. Para um desenvolvimento mental e físico saudável, é indispensável um fornecimento óptimo de oxigénio. Até uma falta de oxigénio, por curto espaço de tempo, que talvez dure poucos minutos, pode provocar lesões cerebrais maciças. Em casos particularmente graves, pode ocorrer a morte, na sequência de uma lesão anterior.
F. STÃHLER e outros demonstraram, em 1979, que lactentes com alterações orgânicas ligeiras devidas a falta de oxigénio no primeiro período de vida são, a maior parte das vezes, normais e que somente na infância é possível diagnosticar lesões tardias. Todavia, não é certamente possível admitir, no caso isolado, exclusivamente a falta de oxigénio como causa primária. As crianças que sofreram asfixia são sempre crianças de risco.
A fase de asfixia pode prolongar-se muito para além do parto, e pode passar um longo espaço de tempo, até que se estabeleça á respiração espontânea. Antes do parto pode, em consequência da pressão elevada no útero, ocorrer também uma obstrução da irrigação do cérebro da criança. Depois do parto, após libertação da circulação da pressão anterior, subsiste ainda uma acentuada falta de oxigénio que persiste até se estabelecer totalmente a função pulmonar da criança. Se, e em que medida, o cérebro infantil é atingido depende da duração da asfixia, isto é, do lapso de tempo que vai desde o início da asfixia até à primeira excursão respiratória completa e suficiente, depende de ser ultrapassada essa fase crítica durante a qual o cérebro ainda sofre uma falta de oxigénio. Sabe-se que lesões dessa natureza também podem ser provocadas por compressão da
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artéria carótida, por exemplo devido a torsão do cordão umbilical. De acordo com a nossa experiência, as lesões devidas a trauma directo, portanto dano efectivo do tecido cerebral, em termos numéricos, estão, de longe, em primeiro plano. Além disso, as chamadas grandes hemorragias intracranianas, eventualmente devidas a laceração do sinus cerebral, ou das veias ponte, quase que não têm expressão nas crianças com lesão cerebral, uma vez que não dão hipóteses de sobrevivência à criança. No centro da história está, portanto, como muito claramente se reconhece, a falta de oxigénio. Esta leva ao declínio das células ganglionares e à ruína das células nervosas, na sequência das quais resultam depois «cicatrizes» devidas à excrescência de nevroglía reactiva. Aqui deve também salientar-se que o parto com fórceps, ou as suas variantes modernas, as chamadas ventosas (no cimo da cabeça da criança é aplicada uma campânula e a criança é tirada do útero mecanicamente, quer dizer, por meio de tracção), só raramente podem ser consideradas responsáveis por tais lesões. Não é o fórceps, ou a ventosa que provocam a lesão, mas muito mais os processos anteriores que dão pretexto à aplicação de medidas mecânicas.
4.2.2 Parto pré-termo
A relação entre o parto pré-termo e as lesões cerebrais é conhecida há muito tempo, conforme já se referiu. Na literatura anglo-saxónica o diagnóstico do parto pré-termo é incluído nos «chíef-baby-killers during pregnancy*». Sobretudo nas últimas décadas, a participação dos prematuros e dos recém-nascidos imaturos no grupo das crianças com lesão cerebral é particularmente elevada.
Continua a ser chamada a atenção, em muitos trabalhos, para a relação entre peso no parto e lesão cerebral. Mas, nos prematuros, estão incluídas não só as crianças que vêm ao mundo antes do termo calculado para o nascimento, mas também os recém-nascidos cujo peso é inferior a 2500 gramas. Este baixo peso à nascença é quase sempre indício de uma falta de desenvolvimento. Segundo F. STÀHLER
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* Principais causadores da morte do feto durante a gravidez.
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e outros, a participação dos prematuros na mortalidade total dos recém-nascidos é de 50 a 55 por cento. Portanto, só seria possível uma descida eficaz da taxa de mortalidade dos recém-nascidos através da redução da frequência da prematuridade. Segundo YUNG (1975) de 5262 recém-nascidos 5,7 por cento pesavam menos de 2500 g, estavam portanto abaixo do limite de risco. Propomo-nos, a este respeito, definir o parto pré-termo como um parto anterior à maturação óptima do recém-nascido, independentemente do seu peso.
Uma das possíveis causas da prematuridade encontra-se também na situação da mulher na sociedade moderna. Estímulos nervosos ambientais de toda a natureza e a reiterada carga da mulher, já anteriormente referida, estão aqui certamente em primeiro plano.
Acessoriamente é de mencionar também a característica específica do estrato social, como factor de risco. As classes sociais mais baixas estão sempre expostas, com mais frequência, a factores negativos de influência socio-económica. Cada nova carga leva ao «stress» social que, segundo G. SELYE, é considerado como uma verdadeira doença. O. THALHAMMER escreve, em 1973, que o risco das operárias incultas, com menos de 21 anos é sobremaneira elevado.
Dos pormenorizados exames de revisão, clínicos e psicológicos, feitos a um grupo de 100 crianças prematuras, nascidas nos anos de 1956/57, foi-nos possível, em comparação com resultados correspondentes da população média e grupos de doentes com lesão cerebral, e prematuras, encontrar uma série de provas que permitam reconhecer o significado da prematuridade.
Assim, foi confirmado que há uma relação entre o peso de parto e perturbações do desenvolvimento, na medida em que o risco de uma lesão aumenta com o decréscimo do peso de parto.
Esclarece-se que a percentagem de crianças com tendência para reacção neurótica é extraordinariamente elevada em prematuros com resultado do exame físico aparentemente normal. É acentuada nos prematuros a discrepância entre os valores, em si normais, da inteligência linguística abstracta e da inteligência prática.
Na questão referente às causas do «nascer demasiado cedo» não é de menosprezar a hemorragia uterina, no início da gravidez. Os fetos com lesão, ou com perturbação no útero, estimulam a saída antes do tempo. 0 risco de uma lesão do desenvolvimento físico e
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mental é, nestes casos, particularmente elevado, tanto mais que a frequência de anóxia perinatal se relaciona directamente com as hemorragias uterinas. Por seu lado, a anóxia é de considerar como carga adicional.
Tendo-se uma visão das perturbações possíveis, deduz-se que «nascer demasiado cedo» representa, sem dúvida, uma carga cujas consequências não têm, contudo, que ser diagnosticadas logo após o parto. Se essa carga foi tão intensa que daí resultaram estados patológicos subsequentes, ou se foram acentuadas lesões já existentes no útero, não é possível saber-se logo após o parto. Também sintomas como a asfixia e as convulsões não são sempre sinais seguros de uma lesão cerebral já fixa. Contudo, a noção de que cada prematuro - e quanto menor é o peso de parto tanto mais isto se aplica - deve ser classificado de bebé de risco impõe-se forçosamente. O facto de se ouvir, muita vezes, que prematuros extremamente leves se desenvolveram de um modo completamente normal não deve aqui camuflar os riscos. Somos de opinião que, como em todas as crianças de risco, somente os exames de revisão regulares, por longos períodos de tempo, fornecem dados definitivos. As etapas críticas do desenvolvimento, como o terceiro ano de vida, o ano da entrada na escola e a transferência da escola primária para a escola secundária, devem ser incluídas na observação. Parece-nos grave que crianças de risco, sejam elas prematuras, tenham sofrido anóxia perinatal, ou sejam suspeitas de perturbações motoras de origem central, se qualifiquem, durante meses ou mesmo um ano, de saudáveis ou curadas.
É uma das questões essenciais da política de saúde do nosso tempo saber se a mortalidade e a morbilidade podem ser reduzidas através da melhoria dos cuidados terapêuticos pré-, pen- e pós-natais. Certamente que só o melhor transporte da secção da maternidade para as clínicas especializadas traz já melhoras decisivas. Os sistemas de respiração, as modernas incubadoras, tudo isso são, sem dúvida, progressos que conseguem uma involução da mortalidade e da morbilidade. Contudo, para nós é claro que é de esperar, em primeiro lugar, da profilaxia uma ampla solução do problema. O objectivo dos nossos esforços deve ser evitar o «nascimento antes do tempo», tanto quanto isso seja possível no quadro dos acontecimentos ginecológicos da gravidez. Contudo, enquanto a ginecologia não for confrontada profundamente com o futuro das crianças trazidas
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ao mundo, isto é, enquanto não forem apresentados ao médico parteiro os relatórios dos exames de revisão das crianças de risco, os factos que para o neuropediatra têm um valor patogénico, para o médico parteiro não adquirem a importância que lhes compete. O futuro assenta, portanto, no acompanhamento da gravidez, e seria atirar areia para os olhos da classe médica e do público, se nós próprios acreditássemos, e fizéssemos outros acreditar, que esta tão importante tarefa de medicina social é já feita, o bastante, em toda a parte.
É inteiramente possível que, na nossa perspectiva, em que a criança com lesão cerebral está em primeiro plano, seja dada demasiada importância aos perigos do risco do parto prematuro e do parto difícil, que o problema seja visto de um modo muito pessimista. Contudo, e isso tem que ser mais uma vez acentuado, a literatura que até agora existe sobre exames de revisão ainda não tranquiliza o suficiente para que nos possamos dar por satisfeitos.
4.2.3 Cuidados de obstetrícia
Os problemas do período perinatal levaram ao desenvolvimento de uma investigação especializada que agrupa obstetras e pediatras. Espera-se que o trabalho comum reduza os riscos do período perinatal.
A noção de criança de risco, por conseguinte de um recém-nascido cujas dificuldades durante o período perinatal fazem esperar possíveis consequências, mesmo que não seja possível dianosticar ainda deficiências organoneurológicas, é hoje de grande actualidade. Conforme já foi acentuado noutros pontos, o acompanhamento, a observação e o controlo destas crianças são a grande e importante missão da pediatria moderna.
Se dermos conta das possíveis lesões pré- e perinatais e, provavelmente não temos hoje ainda conhecimento de todos - concluímos que é relativamente raro que um factor, só por si, leve já à lesão. Trata-se muito mais de uma interacção, e são necessárias ou várias noxas, ou o encontro do momento propício com os factores causais. Sabemos pouco, ou quase nada da realidade individual,
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especial e diferencial dentro do sistema mãe-feto. Mas, nesta relação do organismo da mãe com o feto, governada por múltiplos factores, podem estar escondidas possibilidades que proporcionam noxas lesivas, as tornam activas, ou as impedem.
A colaboração entre pediatria e obstetrícia não pode consistir apenas em cada serviço de obstetrícia estar um pediatra a cuidar dos recém-nascidos, a quem o obstetra nunca mais vê e de cujo futuro mais tardio nada chega a saber. O acompanhamento da gravidez não pode ser feito «de passagem». Além disso, são também necessários conhecimentos acerca da mãe e do feto bem como da intuição psicológica da grávida e da sua problemática psíquica e somática.
Na Áustria, a mortalidade à volta do parto, no período de 1972 a 1978, diminuiu cerca de metade: um sinal evidente dos esforços eficazes da perinatalogia. É estranho que, no ano de 1979, tenha de novo aumentado muito pouco sem que tenham sido conhecidas, com precisão, as causas disso. Para que a mortalidade perinatal continue a descer, é necessário continuar a desenvolver os cuidados com a gravidez como se fez na Áustria com a ajuda do passaporte mãe-filho.
Além disso, é indispensável uma óptima assistência no parto. K. BAUMGARTEN, em 1979, previne, a este respeito, cair-se no extremo. Ele refere-se sobretudo à preferência muitas vezes reclamada por uma assistência no parto predominantemente separativa, anónima, e, por último, desumana. O outro extremo está em ser apresentado como única verdade o contacto mãe-recém-nascido, sem consideração pelos cuidados imediatos do lactente. Uma perinatalogia razoável toma em conta ambos.
Uma medicina obstétrica sensata e suficientemente equipada está pois indicada, sempre que tenha que ser acompanhada uma gravidez de risco e um parto de risco. Segundo H. RCrrrGERS, 1979, a capacidade de uma unidade de obstetrícia deve ser definida menos pelo número de camas e critérios quantitativos análogos do que pela capacidade funcional e uma clínica: capacidade laboratorial, provimento de pessoal, possibilidades de cooperação interdiciplinar com vista à segurança da grávida e da criança.
No espaço de mais de dez anos, em colaboração com o dispensário de grávidas do serviço de obstetrícia do hospital de Lainz e vários obstetras, foram dadas à luz 182 crianças cujas mães, antes desta gravidez, tinham trazido ao mundo uma criança com lesão
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cerebral, sobretudo paralisia cerebral. Em nenhum dos partos seguintes ocorreram complicações perinatais e estamos convencidos de que um acompanhamento óptimo da gravidez e a assistência no parto, efectuada com o conhecimento da anamnese do filho anterior, podem ser considerados como autêntica profilaxia. Nem a ginecologia, nem a pediatria podem confiar demasiado na natureza e na resistência do feto. O nosso conhecimento acerca da fisiologia e patologia pré-natal e perinatal deu um salto justamente nos últimos anos. Este conhecimento está hoje já tão consolidado e tão difundido, que a sua não aplicação deveria ser considerada como falta de arte.
4.3 LESÕES APÓS O TERMO DO PERÍODO NEONATAL (LESÕES PÓS-NATAIS)
4.3.1 Infecções
São sobretudo de referir aqui as lesões que surgem em consequência da chamada encefalite (afecção viral, do sistema nervoso central).
A meningite (inflamação das meninges), devida a um grande número de agentes, é um processo inflamatório que ocorre entre as membranas duras e moles que envolvem o cérebro, sendo um processo denominado de encefalite (inflamação do cérebro) se depois atinge a própria substância do cérebro. Enquanto que a inflamação das meninges é relativamente fácil de diagnosticar, devido à sua sintomatologia dramática, o diagnóstico da encefalite é muita vezes difícil. Ela pode surgir como que disfarçada com muitos sintomas (náuseas, vertigens, dores de cabeça, estrabismo, convulsões) e, desse modo, desviar a atenção para uma orientação errada. Aparecem, com frequência, formas mistas de inflamação da meninge e do encéfalo, portanto meningo-encefalites.
Além disso, no nosso tempo, que tem à sua disposição uma enorme quantidade de antibióticos de forte acção, a chamada encefalite termina em condições que, muitas vezes, só pouco se prendem a
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normalidades. Queremos dizer, com isto, que uma terapia medicamentosa maciça pode frequentemente travar o processo inflamatório e limitá-lo na sua extensão; contudo, a restituição íntegra (restabelecimento completo) não fica, de modo nenhum, garantida por meio de antibióticos. A mortalidade por encefalite é hoje, sem dúvida mínima, em comparação com a do período anterior ao uso dos antibióticos. Contudo, o número das curas defeituosas, portanto o da moralidade, devia, pelo contrário, ter aumentado. Também aqui deve evidentemente ser tida em conta a reacção individual do cérebro da criança, cuja capacidade de resistência pode ser diferente.
Deve salientar-se que, na contagem das crianças com lesão devida a encefalite, devem ser incluídos não somente os casos que sobreviveram ao processo com lesões maciças de natureza intelectual e motora, mas também os casos com lesões mínimas que, do mesmo modo, temos que classificar no grande quadro do síndroma pós-encefalítico.
A sintomatologia vai desde irritabilidade acentuada, passando por perturbações da concentração, diminuição das capacidades de aprendizagem, perturbações do sono, até lesões cerebrais maciças, com paralisia total das extremidades e extinção de toda a reacção sensorial. O restabelecimento, após processos encefalíticos graves, após os mais graves sintomas, frequentemente por longo tempo, convulsões e perdas de conhecimento muito profundas é por vezes assombroso; contudo, isso não deve dar oportunidade a que levianamente se conte, com certeza, com uma restitutio ad integrum. Ela pode, mas não tem que acontecer. Muitas vezes, passados vários anos, podem aparecer lesões tardias. No fundo, também aqui devia ter aplicação a noção de criança de risco e ser feita a observação e controlo, tendo em consideração as correspondentes consequências.
Numericamente, essas crianças formam um grupo relativamente grande, juntamente com as que apresentam sintomas encefalíticos, após vacinação contra a varíola.
Sabemos que existe uma particular predisposição de acordo com a idade, isto é, que a idade da criança tem importância para a ocorrência de uma lesão. O risco de uma complicação desta natureza anda à volta de 1:10000 e aumenta nitidamente do 1.º ao 3.º ano de vida.
A chamada encefalopatia pós-vacinai, de acordo com A. MATTHES e R. KRUSE, tem uma incidência de 1:500 a 1:1000. Neste caso,
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provocam-se acessos convulsivos por vacinação que, frequentemente, podem transformar-se numa encefalopatia permanente.
A supressão, no ano de 1978, na Áustria, da obrigatoriedade de vacinação imposta oficialmente é uma consequência lógica da avaliação de dois riscos, dos quais o da vacinação tem, inequivocamente, um peso maior.
4.3.2 O trauma crânio-encefálico
Lesões do crânio e do cérebro, devidas a influências traumáticas, sempre as houve. Antigamente eram sobretudo os coices, actualmente são os acidentes de viação que, como causa, estão em primeiro plano. Contudo, aqui devem ser também incluídos os casos em que o fornecimento de oxigénio e de sangue ao cérebro fica interrompido por muito tempo, devido a estrangulamentos, ou episódios de narcose. A diferença relativamente a períodos anteriores está no facto de a moderna medicina, com a suas possibilidades biofísicas, poder conservar a vida de uma criança atingida dessa maneira.
Casos de crianças que, antigamente, com a maior probabilidade faleceriam mantêm-se, desse modo, vivas, vencem a ameaça permanente devida às perturbações respiratórias e circulatórias para, após retrocesso do edema cerebral, muitas vezes intenso, conseguir de novo a consciência e repor também outras funções como o movimento, a fala, a visão e a audição.
O defeito orgânico permanente limita mais ou menos os horizontes deste restabelecimento.
O síndroma da descerebração, um estado da mais profunda perda de consciência, que frequentemente se encontra nos cuidados intensivos, apresenta as pessoas numa dependência completa dos ventiladores e das máquinas de alimentação parentérica. Está fora de dúvida que há hoje possibilidades de melhorar funções que antigamente eram impensáveis. As hipóteses disso dependem de muitos factores, sobretudo, naturalmente, da extensão da lesão do encéfalo. Quanto mais maciças forem e quanto mais tempo durarem mais grave é o prognóstico. É extraordinariamente importante a utilização da terapia da fala, da música, da ergoterapia e da fisioterapia.
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Baseando-nos na nossa experiência, somos muito reservados quanto à esperança de uma restitutio ad integrum, quer dizer, quanto a uma reposição completa do estado de saúde anteriormente existente. A observação, durante longo período, destas crianças, quer no aspecto intelectual quer motor, mas sobretudo, no comportamento, revela o quadro de um psicosindroma orgânico, que, nestes casos, é diagnosticável principalmente pelo atraso da fala, da motricidade e do raciocínio. Há casos em que, como resíduos do acontecimento, apenas ficam dores de cabeça condicionadas pelo tempo e pela situação, talvez mesmo somente uma irritabilidade acentuada. De acordo com a nossa experiência, as lesões traumáticas do encéfalo, ou perturbações duradoiras da irrigação com perda de substância, ou seja, formação cicatriciat, são também de considerar como restitutio, num restabelecimento supostamente satisfatório; contudo, o aditamento «ad integrum» é despropositado.
4.3.3 Processos degenerativos e atróficos do sistema nervoso central
Aqui devem ser referidas resumidamente as doenças cujo início, no tempo, a maior parte das vezes só com dificuldade se consegue fixar e de cujas causas nós ainda sabemos relativamente pouco. São as afecções degenerativas e atróficas do sistema nervoso central, em virtude das quais ocorre a ruína contínua ou gradual de determinadas regiões do encéfalo. A degradação das funções do encéfalo é muitas vezes observada em infecções de índole geral que possam trazer consigo uma deterioração maciça. Na maior parte das perturbações desta natureza, a criança parece aos seus familiares primeiro completamente normal: o desenvolvimento motor, psíquico e mental pode decorrer sem perturbações, durante anos, muitas vezes mesmo até à idade escolar. antes que a degradação se inicie.
Na procura dos sintomas clínicos e psicológicos pode datar-se o início da doença, a maior parte das vezes, depois do que primeiramente aparece aos pais. Contudo, é frequentemente muito difícil de fixar quando é que a doença começa de facto. Esses processos degenerativos de atrofia cerebral são particularmente deprimentes para os
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familiares, dado que atingem crianças que, aparentemente, com uma saúde física e mental completa, lenta e sistematicamente perdem as suas anteriores capacidades e, quase sempre, acabam na imobilidade total e na demência.
Trata-se de um estado em que, no quadro dos exames bioquímicos, foi detectado um acentuado excesso de amoníaco no soro sanguíneo e em que se observam modelos estereotipados, característicos dos movimentos das mãos, conforme foi por nós observado em mais de 40 crianças. Nesta doença, o fim com paralisia de todas as extremidades e deterioração mental é também inevitável. As causas deste processo continuam ainda actualmente às escuras.
Além das possibilidades, que estão na origem de uma lesão cerebral mencionadas neste capítulo, há ainda muitas outras, que não é possível descrever pormenorizadamente, como por exemplo os estados de debilidade mental provocados por hipofuncionamento da tiróide, as malformações do sistema nervoso central e muitas outras mais.
A respeito das experiências construídas com base num tipo de doentes amplo, nós gostaríamos de acentuar, para terminar, que a investigação das causas quando é feita cientificamente, criticamente, com intensidade e, sobretudo, em paralelo com um colectivo não seleccionado da população média, permite reconhecer a multiplicidade das causas, quer para o caso isolado, quer para a totalidade do tipo de doentes. Impõe-se sempre mais a opinião de que é a coincidência de vários factores que proporcionam uma lesão cerebral. A perturbação devida a um único factor, portanto monocausal, é rara, mais rara, em todo o caso, do que até agora se tem considerado.
4.3.4 Lesões devidas a causas psicossociais
No âmbito do Simpósio «Inteligência, aprendizagem e perturbações de aprendizagem», G. NISSEN, 1976, chamou a atenção para o facto de a influência do meio ser de enorme significado, para o desenvolvimento da função cerebral dos recém-nascidos e dos lactentes. Nítidas relações entre a irrigação do cérebro e o tamanho das células nervosas estão na dependência de um ambiente social pobre em estímulos, ou com estímulos intensos. A relação óptima entre mãe e
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filho constitui a melhor base para o desenvolvimento psíquico e físico da criança. Desde 1920, mais ou menos, que temos conhecimento das investigações de R. SPrrz, que defendeu a ideia de que a hospitalização, como grande privação da mãe, podia prejudicar uma vida saudável.
Sem dúvida que a hospitalização, no sentido de R. SPrrz, estava naturalmente só reservada às crianças que ficavam internadas por muito tempo. Os atrasos permanentes do desenvolvimento físico, perturbações da fala e capacidade intelectual nitidamente diminuída, contam-se entre os sintomas fundamentais deste sindroma. Em contraste com a situação de épocas anteriores, está a chamada hospitalização familiar, hoje um fenómeno da nossa sociedade de nível mais elevado. A privação da mãe está planeada, naturalmente, nas condições de vida da sociedade moderna, dado que a força de trabalho da mulher constitui a base da nossa prosperidade material. As manifestações modernas da hospitalização são associadas por R. LEMP, em parte, ao quadro dos psicosindromas orgânicos.
O número de crianças com dificuldades de aprendizagem aumenta, não somente devido ao aperfeiçoamento das técnicas de diagnóstico, mas também devido às condições sociais.
G. KLEIN, em 1980, demonstra que estão super-representadas, sobretudo, as crianças oriundas das camadas sociais mais baixas e chama a atenção para as causas disso. São muito mais os factores socio-culturais que rodeiam a vida destas crianças que levam à perturbação. Deve acentuar-se que já a atitude linguística do meio mais próximo da criança pode ser válida para o seu desenvolvimento, quer seja como factor de estimulação, quer seja como factor de perturbação. Todos os factores que afectam a vida da família são também responsáveis pelas restrições da criança. Nas famílias em que dominam o excesso de trabalho, a miséria, ou as perturbações psíquicas, as necessidades básicas da criança não são satisfeitas. Tudo isto são causas que afectam o desenvolvimento saudável da criança e podem fazer dela uma incapaz.
Um factor que também provoca perturbações intensas do desenvolvimento é o mau trato das crianças. De uma estatística que os Serviços de Saúde Ingleses divulgaram na imprensa, em 1980, depreende-se que, neste caso, desempenham um papel cada vez maior factores socio-políticos. Maus tratos graves infligidos às crianças são
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cada vez mais conhecidos, entre as famílias jovens, onde o elemento que angaria o sustento, devido a dificuldades económicas crescentes e ao desemprego do país, perde o seu posto de trabalho.
H. CZEMARK, em 1979, calcula, em relação à Áustria, que só cerca de 5 por cento dos maus tratos que têm de facto lugar são denunciados (cerca de 200 denúncias por ano). De uma observação levada a efeito em Viena, deduz-se, inequivocamente, que cerca de 65 por cento das crianças maltratadas têm as seguintes perturbações: subdesenvolvimento físico, agitação motora, reacções de teimosia, enurese, debilidade, timidez, encoprose, roem as unhas e têm dificuldades na fala. Uma grande parte destas crianças frequenta escolas especiais para crianças com dificuldade de aprendizagem.
Capítulo 5
OBSERVAÇÃO E DIAGNÓSTICO
A base para o êxito do diagnóstico é a anamnese. «Conditio sine qua non», já em todas as disciplinas da medicina ela toma-se, tanto na observação como no acompanhamento da criança com lesão cerebral, um factor importante da actuação do médico, dado que, a partir da anamnese ressaltam logo aspectos marcantes da etiologia e da evolução da doença.
A evolução crónica, muitas vezes durante anos e décadas é aqui a regra; assim, é perfeitamente indispensável seguir o rasto da doença, logo a partir das suas primeiras raízes, que podem remontar à história familiar, passar pelos pais da criança, os seus irmãos, a gravidez da mãe, até ao parto e vida própria da criança em todas as suas etapas físicas, psíquicas e mentais. Quanto mais profundamente nos debruçamos sobre a anamnese, mais claro se toma o facto que, tal como noutro âmbito da medicina humana, se trata de perturbações cuja causa deve ser procurada num jogo alternado de vários factores, cuja coincidência simultânea, ou sucessiva, é responsável pela origem de uma doença desta natureza.
Um fenómeno humanamente compreensível é o comportamento de muitos pais relativamente à questão, para eles puramente existencial, das causas da doença do seu filho. A questão: «Porquê precisamente eu?» sobrepõe-se muitas vezes à das verdadeiras causas; com demasiada frequência, e de um modo perfeitamente compreensível, os familiares refugiam-se numa ideia construída de causas e culpa e, não é sempre fácil, pôr na sua consciência o ponto de vista médico. Frequentemente são atribuídas responsabilidades, mais
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ou menos abertamente ao cônjuge, à sua família, ou ao obstetra e à parteira; não raramente há autoculpabilização, cujas reacções psicológicas em cadeia podem conduzir a perturbações neuróticas profundas. Estas falsas ideias são, contudo, determinantes no comportamento da família perante a criança com lesão. O conhecimento da «atitude e relações intrínsecas» da família para com a criança é necessário, dado que o comportamento social da criança depende largamente da maneira como o seu meio ambiente se manifesta em relação à sua doença e personalidade e do modo como ele assimila estes problemas.
É de reconhecer sobretudo que, para a recolha da anamnese, são necessárias não apenas perguntas detalhadas sobre muitos aspectos, mas também intuição humana e delicadeza. Uma pergunta feita com pouca habilidade pode impedir o nascimento da tão necessária relação de confiança, entre o médico e a família, com vista ao acompanhamento futuro, e obstruir a via para o esclarecimento objectivo de um processo patológico.
A apreciação da capacidade funcional do sistema nervoso central proporciona não apenas depoimentos sobre a natureza e localização da perturbação, mas permite ainda documentar bem o estado geral do desenvolvimento. Em primeiro plano, está a apreciação da diferenciação funcional de cada uma das áreas do sistema nervoso central. Contudo, é necessário, ao mesmo tempo, conseguir não somente um resultado do exame do momento presente mas obter, para apreciação, e na medida do possível, pontos de referência no decurso do desenvolvimento infantil, em forma de cortes longitudinais. É evidente a variabilidade do resultado do exame na dependência do tempo, podendo tais alterações ser também muitas vezes indício de uma normalização do resultado do exame, pela primeira vez patológico. É indispensável uma apreciação uniforme com base na mesma técnica de observação. Muitas vezes, em relação ao mesmo doente, são apresentados resultados diferentes que depois se manifestam em diagnósticos diferentes. Essas diferenças dão naturalmente uma falta de segurança aos familiares, que procuram depois um terceiro diagnóstico para, a maior parte das vezes, apenas continuarem ainda com mais dúvidas. Não raramente, começa aqui um calvário até àquele médico que veja a situação de maneira «mais favorável», alimente todas as esperanças e aquiete todas as
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preocupações. Mais cedo, ou mais tarde, é revelado se isso estava certo ou errado.
A pediatria do futuro, isso ressalta já claramente, irá ocupar-se do diagnóstico do desenvolvimento do recém-nascido e do lactente. A apreciação de um risco, o seu esclarecimento, ou seja, a confirmação da primeira suspeita passam a ser a missão do pediatra do futuro.
Entre as áreas funcionais mais importantes do sistema nervoso central, no que respeita a um possível diagnóstico do desenvolvimento, contam-se os seguintes pontos: motricidade espontânea, reflexos, reacções e capacidade funcional dos órgãos dos sentidos. O estudo de E. BERCER, 1979, mostra como são importantes tais observações. Estas áreas foram observadas, com muito pormenor, em 150 crianças. Em recém-nascidos, em que mal eram conhecidos factores de risco, foram contudo observados, em cerca de 30 por cento, ligeiros sinais de reacções no limite patológico. O resultado de todos estes exames mostra, porém, na evolução mais tardia do desenvolvimento, uma tendência clara de normalização. No fim do primeiro ano de vida, tinham desaparecido completamente todos os sintomas. Isto revela que, em determinadas condições favoráveis, o sistema nervoso infantil tem contudo, uma capacidade de compensação considerável.
Mas o nosso trabalho com a criança deficiente começa com a confirmação de um defeito, a observação da sua presença e da sua manifestação respectiva, para depois, com medidas adequadas, tratar as suas consequências. Não raramente, consegue-se já repor a normalidade, após relativamente pouco tempo. Muitas vezes, é necessário tempo para obter melhoras, frequentemente, é uma terapia para toda a vida.
Capítulo 6
ANAMNESE
6.1 ANAMNESE FAMILIAR
Idade, doenças, causas eventuais da morte dos avós e bisavós do doente.
Carga familiar
Doenças nervosas, lesões cerebrais, doenças mentais, convulsões (epilepsia, convulsões ocasionais), deformações, pessoas com características anormais, talentos especiais, casos de gémeos, doenças frequentes na família (pré-disposições), alcoólicos, drogados, suicidas, sanções penais.
Pai
Profissão, idade, nacionalidade, filho legítimo ou ilegítimo, o seu lugar na fratria, particularidades do parto, frequência escolar, aproveitamento, exames. Onde cresceu (casa dos pais, pais adoptivos ou asilo, etc.). Doenças infantis (quais, em que idade). Outras doenças (doenças sexuais, doenças crónicas, operações, irritabilidade, neurastenia, abuso do álcool e da nicotina, diabetes, perturbações da tiróide). Impressão pessoal acerca do pai.
Irmãos do pai: idades, anomalias (mesmo da parte dos seus filhos, considerando sobretudo doenças nervosas, lesões cerebrais, doenças mentais, doenças convulsivas, malformações).
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Mãe
Como no caso do pai, casamento (ano da união, data exacta para apreciação da concepção do doente, problemas com o casamento, atitude do cônjuge para com a criança doente).
Condições de habitação
Tamanho da habitação; número de divisões; número de habitantes; estado.
6,2 ANAMNESE GINECOLÓGICA
Primeira menstruação, ciclo, perturbações menstruais, menopausa, número de gravidezes, sexo dos filhos, anomalias, aborto espontâneo e aborto provocado (isto é, induzido artificialmente), tentativas eventuais de aborto em gravidezes anteriores (quando, como).
Anamnese da gravidez
Idade e estado de saúde dos pais aquando da concepção, doenças infecciosas na família, ou nos que a rodeavam (rubéola, toxoplasmose). Data da concepção, data do primeiro dia da última menstruação, relações sexuais durante a gravidez (até quando, dores, hemorragias). Hospitalizações durante a gravidez (quando, durante quanto tempo, porquê), operações.
É a primeira gravidez? Caso negativo, em que ordem se situa. Atitude quando à gravidez: desejada, indiferente, não desejada. Tentativa de aborto (quando, como), teste da gravidez, hemorragias durante a gravidez (quando, terapia), vómitos (quando, terapia, estado de nutrição), doenças infecciosas (quando, terapia), carga com radiações (quando), outras radiações (ultra-sons), medicamentos, hipnóticos, tranquilizantes, vitaminas, cálcio, antibióticos, insulina, hormonas, etc. - álcool, nicotina, uso de drogas, toxicose, doenças renais, anemia. Situação psíquica durante a gravidez (choque, carga permanente, excitações, preocupações). Data e natureza dos primeiros movimentos da criança.
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6.3 ANAMNESE DO PARTO
Idade dos pais na data do parto. Onde teve lugar o parto? No prazo calculado? Duração do trabalho de parto, momento da rotura das membranas, hora em que se verificou o parto, posição da criança durante a gravidez e na altura do parto. Auxílio manual e intervenção cirúrgica (cesariana), uso de fórceps ou ventosa, duração do período expulsivo, tons cardíacos. Peso e tamanho de parto. Primeiro grito, anóxia (falta de oxigénio), índice de Apgar, enrolamento do cordão umbilical, deformações imediatamente visíveis. Em caso de parto gemelar: estado do outro gémeo.
Particularidades do parto
Preparação do trabalho de parto, medicamentos, narcose.
6.4 VIDA DO DOENTE
Período de amamentação, desidratação? Em caso de parto prematuro: onde e como foram assistidos (alimentação por sonda, incubadora, icterícia, transfusão).
Comportamento como lactente e como criança pequena
Problemas na alimentação, dentição, complicações durante a dentição. Desenvolvimento psicomotor (sentar, gatinhar, pôr-se em pé, andar, sorrir, palrar, falar, controlo dos esfíncteres). Enfermidades (quais, como), acidentes, traumatismos cranianos, operações; doenças particulares acompanhadas de febre elevada, vómitos, olhos esgazeados, sinais de irritação das meninges, convulsões, gritos. Que vacinas (quando), lesões vacinais, reacções vacinais.
Frequência de jardins de infância e de escolas
Que escolas, durante quanto tempo, aproveitamento, personalidade do doente (disposição para o contacto, humor, afectividade,
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interesses, actividade), mentiras, roubos, fugas, medo da noite, sonambulismo, comportamento sexual, estereótipos do seu adormecimento, chuchar do dedo polegar.
Em crianças saudáveis até agora: perturbações da visão, perturbações da preensão, quedas, paralisias, dores de cabeça, etc.
6.5 ANAMNESE DAS CONVULSÕES
Primeira crise
Quando, onde, duração, evolução, causas supostas pelos pais? Febre? Que tratamento?
Outras crises
Evolução, agitação emocional prévia, aura (tipo, intensidade), estado psíquico e motor antes das crises. A crise é previsível? Como começam as crises: tónico-clónicas? Do lado direito - esquerdo - de ambos os lados - generalizadas? Durante o dia - durante a noite, ao adormecer - ao despertar? Perda de consciência? É possível uma interrupção? Cor do rosto? Mordedura de língua, eliminação de urina, eliminação de fezes, desvio dos globos oculares, sintomas vegetativos, movimentos da boca, movimentos das mãos, actuações complexas. Duração média de uma crise, frequência da crise. Terapia anticonvulsivante até agora? Sequência do tratamento, medicação no
status epilepticus.
Conforme se viu, a curva das questões anamnésicas deve ser extraordinariamente ampla e inclui áreas da biogenética, medicina, psicologia comportamental, aspectos sociais, pedagógicos e humanos, de modo que, juntamente com os resultados do exame é possível uma apreciação bastante exacta da personalidade global com as suas ligações transversais e repercussões no meio ambiente. Têm interesse e são elucidativas outras informações recolhidas junto das respectivas maternidades e hospitais onde tenham havido internamentos anteriores. É de salientar que, só em 10 por cento dos casos do nosso tipo de doentes que, com a maior das probabilidades, tinha já lesões
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pré e perinatais foram detectados, logo na maternidade, sinais de perturbações; são importantes informações colhidas no jardim de infância e na escola, pois também a partir destas fontes se encontram factos que formam, ou completam a nossa imagem da criança com lesão.
A anamnese, no quadro do acompanhamento da criança com lesão cerebral, nunca está totalmente concluída, dado que no decurso do trabalho conjunto, muitas vezes durante anos, do médico, pedagogos e familiares resultam, frequentemente, complementos preciosos que podem ser significativos para o quadro da doença, para a sua apreciação e tratamento. É de salientar em que medida também as recordações anamnésicas dos familiares são influenciadas pelo estado da criança. Factos que sob uma grande carga psíquica são importantes, quando há uma melhoria do estado tornam-se muitas vezes insignificantes, são menosprezados ou esquecidos.
A discussão da anamnese, no quadro da equipa de acompanhamento, é o controlo imprescindível que nos preserva de não reparar no pormenor, ou de o sobrevalorizar. Tanto na anmnese como na terapia a valorização simples de factores isolados pode conduzir a confusão. É indispensável ordenar o resultado de todos os exames realizados, de acordo com o seu presumível valor biológico.
Capítulo 7
EXAME NEUROLÓGICO E PEDIÁTRICO
Depois da anamnese, o passo a seguir para o diagnóstico é o exame físico. Ele terá que abranger a particularidade especial da criança com lesão cerebral, correspondente não só ao resultado do exame de pediatria interna, mas também de neurologia e psiquiatria devendo, depois, contudo, procurar sempre abarcar a criança como uma unidade. O comportamento da criança, durante o exame, permite logo tirar conclusões acerca da sua capacidade de contacto, a sua inteligência e a sua orientação e serve para completar a impressão geral.
7.1 CABEÇA
A forma e perímetro do crânio dão indicações preciosas para o diagnóstico - configuração hidrocefálica (aumento anormal de volume em consequência de acumulação excessiva de líquido), turricefálica, macrocefálica (demasiado grande), microcefálica (demasiado pequena), braquicefálica (demasiado curta), se as suturas cranianas já estão fechadas, se as fontanelas ainda estão abertas e com que abertura. A repercussão e a mobilidade da cabeça estão alternadas de uma forma característica, em determinados quadros clínicos.
Os cabelos, por exemplo, em perturbações funcionais da tiróide, permitem já reconhecer nitidamente sinais da doença fundamental.
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Em estereótipos do adormecimento são características áreas deterioradas, devido à fricção. A forma do rosto, a distância entre os cantos palpebrais internos (hipertelorismo), a inclinação do eixo palpebral e eventual epicanto devem ser imprescindivelmente tomados em consideração. Os olhos devem ser observados no que respeita à sua mobilidade e posição, as pupilas examinadas na forma e reacção à luz e à convergência. A dependência da função motora da coordenação visual-motora, isto é, da harmonia do ver e agir é evidente no estrabismo (olhos tortos) e no nistagno (movimentos intermitentes dos globos oculares). O fundo do olho, como superfície onde se projecta o sistema nervoso central, é muito importante, considerando a eventual atrofia, quer dizer lesão do nervo óptico (nervus opticus) e a pressão cerebral. Também o coloboma (formação de uma fenda na íris), as cataratas (opacidade do cristalino) ou mesmo focos corioretinianos (alterações inflamatória e da coróide) fornecem indicações importantes para o diagnA apreciação da acuidade visual não é, em muitos casos, possível sem um exame da especialidade. Assim, são mais importantes observações referentes à acuidade visual, apreciável de um modo rudimentar, até que ponto a criança consegue apreender visualmente o seu meio ambiente em geral, se consegue orientar no espaço.
A forma e a ventilação nasal, em articulação com o palato, são importantes para a apreciação da respiração e da fala. A respiração das crianças com paralisia espástica permite já escutar, só com o ouvido, a contracção da musculatura brônquica. O tamanho, o estado das amígdalas bem como o estado dos doentes são importantes para a apreciação de uma criança. Sabemos que a dentição tem influência no comportamento da criança com lesão cerebral. A noção de convulsão da dentição tem muito mais significado nas crianças com lesão do que nas crianças saudáveis. O estado, muitas vezes catastrófico, da dentição, devido à reduzida capacidade de mastigação ou às dores nos dentes cariados leva à ingestão de alimentação exclusivamente líquida ou pastosa e, com isso, a consideráveis deficiências alimentares e a anemias e, posteriormente, também a afecções da gengiva e a deformação do maxilar. O estado da língua, o seu tamanho, forma, cor e mobilidade não podem ser menosprezados. É conhecida a língua anormalmente grande dos mongolóides - macroglossia. A cor dos lábios permite tirar conclusões acerca da circu-
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lação, sobretudo no âmbito das deficiências cardíacas congénitas dos mongolóides.
A salivação visivelmente exagerada (hipersalivação) do espástico é um sintoma quase obrigatório de paralisia espástica, contudo, de modo nenhum de atribuir à produção excessiva de saliva, mas à falta de deglutição. Por seu lado, a intensidade da salivação permite avaliar o estado geral da criança.
O reflexo de Chvostek (na percussão de uma determinada parte da face verificam-se contracções no âmbito da musculatura mímica) é, como medidor do grau de irritabilidade neurovegetativa geral, uma parte do exame neurológico, que se afirma sobretudo na aprec] o efeito de substâncias sedantes.
Juntamente com a forma e posição do pavilhão auricular e o aspecto da membrana do tímpano, é de não esquecer a prova do reflexo cocleo-cerebral (o fechar involuntário dos olhos, quando se batem as palmas).
Nas crianças com lesão cerebral, é muitas vezes difícil determinar a capacidade auditiva, com exactidão, dado que também desempenham o seu papel muitos momentos afectivos. Quer dizer, a criança ouve melhor, com mais atenção, desde que também queira e esteja interessada em ouvir e pode apresentar-se aparentemente surda, se não quiser de modo nenhum ouvir. Assim, o reflexo cocleo-palpebral permite, pelo menos de um modo rudimentar, uma orientação decisiva, se a criança ouve ou não ouve. Nas crianças com lesão cerebral, a audição, linguagem e intelecto ficam automaticamente atingidos em conjunto mesmo que, de início, somente uma destas áreas estivesse afectada; bem mais importante é, por isso, a delimitação quantitativa das possíveis deficiências de cada uma das dimensões. Em qualquer perturbação da audição é, em princípio, necessário um audiograma. Em casos particularmente difíceis, para se conseguir um resultado de exame fidedigno, é necessário efectuar o exame audiológico durante o sono, isto é, com a ajuda dos métodos electroencefalográficos.
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7.2 PESCOÇO E TÓRAX
A forma e o perímetro do pescoço e dos músculos do pescoço, a mobilidade da cabeça, o tamanho e forma da tiróide, bem como o decurso, exteriormente visível e palpável, do acto de deglutir devem ser observados nos esp icos, crianças com convulsões e, compreensivelmente, em todos os doentes com afecções da tiróide.
A forma do tór , os movimentos respiratórios, eventuais indícios de raquitismo, ruíd s respiratórios e repercussão carecem de uma observação pormen zada. A bronquite crónica dos mongolóides mais jovens e a bronquite espástica dos espásticos são, por sua vez, sintomas quase obrigatórios que, variando na sua intensidade, influenciam o estado geral e, desse modo, a capacidade da criança. As malformações cardíacas congénitas são muito frequentes, sobretudo nos mongolóides; contudo, não são sempre detectáveis com o estetoscópio; aqui são necessárias, a maior parte das vezes, várias observações efectuadas com intervalos de tempo, para se poder determinar a qualidade e proporção de uma malformação cardíaca. Também no quadro das malformações do sistema nervoso central e das extremidades podem ser, com frequência, observadas malformações cardíacas congénitas, e a sua natureza e dimensão têm, a maior parte das vezes, influência decisiva nas possibilidades de vida destas crianças.
A pressão sanguínea é, frequentemente, a medida padrão de uma das mais importantes perturbações do comportamento, chamada o eretismo. Em crianças com eretismo acentuado encontramos, muitas vezes, considerável hipertensão (pressão arterial elevada) e, juntamente com a melhoria da perturbação comportamental, observa-se nitidamente uma descida da pressão sanguínea sistólica.
7.3 BAIXO VENTRE
Na região do ventre (abdómen) encontramos frequentemente, sobretudo nos mongolóides, diastase dos rectos, que são formações de fendas nos músculos da parede abdominal, bem como hérnias umbilicais. A reacção de defesa abdominal na criança com lesão
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cerebral é, frequentemente, muito acentuada e, desse modo, também a apreciação do abdómen é naturalmente muito difícil, sobretudo no estado agudo. De acordo com a nossa experiência, a apendicite da criança com lesão cerebral é um dos diagnósticos mais difíceis. No quadro da nossa área de trabalho, a bexiga, vias urinárias e rins desempenham um papel muito insignificante.
7.4 EXAME DAS EXTREMIDADES
O exame dos braços e pernas é uma parte integrante do status pediátrico e neurológico. Também aqui se deve procurar, primeiramente, obter uma impressão geral. As formas de movimentos coreicos ou coreiforme (bambolear intermitente), atesósico ou atetóide (rotativo, helicoidal), muitas vezes, contudo, quadros mistos de ambas as formas são diagnosticáveis com base na observação da motricidade espontânea e na postura em repouso. Mas, a dependência destes movimentos do estado psíquico é acentuada, estando a sua intensidade consideravelmente dependente do facto de, no momento da observação, a criança se encontrar no chamado «estado tenso», isto é, no estado de tensão psíquica elevada, ou no «estado de repouso». O tónus, estado de tensão da musculatura, reage numa dependência semelhante nas paresias cerebrais espásticas, pelo que a avaliação do tónus muscular, nem sempre é fácil. A tensão de defesa psicógena refreada simula, não raramente, um aumento do tónus central. Também aqui, a capacidade de contacto da pessoa que faz o exame, a sua capacidade de tranquilizar a criança são pressupostos para a obtenção de um resultado de exame fidedigno.
O trofismo da pele, bem como a sua cor, lisura ou aspereza, sobretudo no hipotiroidismo e no mongolismo, ficam alterados de uma maneira característica, facto que deve, por isso, ser registado.
Após exame dos reflexos fisiológicos, isto é, dos reflexos desencadeáveis de uma maneira normal e da procura de pretensos sinais piramidais (que são sinais de perturbações da via piramidal) não devem ser esquecidas a prova dedo nariz, a prova dos braços estendidos, a prova da diadococinese (isto é, a rotação rápida e
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simultânea de ambas as mãos) e a prova joelho calcanhar, uma vez que, através destes métodos de observação, pode ser examinada a coordenação em geral, isto é, a harmonia dos movimentos das extremidades, a habilidade, e ainda a compreensão daquilo que lhe é pedido. A este respeito, revela-se de muita utilidade, também, o bater com ambas as mãos, ao mesmo tempo e alternadamente, na coxa.
A verificação da lateralidade direita ou esquerda da criança é de significado eminente. Em muitos casos de perturbações cerebrais mais simples e, por isso, frequentemente muito difíceis de diagnosticar, pode já esclarecer-se uma das possíveis causas do agravamento de um defeito já existente, quando, no exame, a prova da lateralidade esquerda é inequívoca e a criança, conforme ainda acontece, infelizmente, com relativa frequência, foi «obrigada» a «treinar-se» no uso da mão direita. Sobretudo nas crianças com paralisia espástica, isso origina muitas vezes problemas consideráveis, quando se tentou corrigir à força a orientação sobretudo unilateral, isto é, a preferência por um lado, demonstrável em quase todos os casos. A forma das mãos, o tónus da sua musculatura, a extensão exagerada das articulações, o desenho das linhas da mão (a prega palmar única dos mongolóides, a posição do polegar na palma - posição de adução) nas paralisias cerebrais graves, o «pterigium coli» no chamado status Bonnevie-Ulrich, forma e cor das unhas das mãos, mas, sobretudo, a segurança em direcção a um alvo e a força na preensão, bem como o uso diferenciado de cada um dos dedos, fornecem indicações importantes para o diagnóstico.
Relativamente aos pés deve ser examinado o estado da arcada do pé. O pé plano, pé transverso, pé calcâneo, pé equino são indícios frequentes e característicos de determinadas perturbações cerebrais. No espástico, a posição equina espontânea do pé, por exemplo quando está em pé, e quando anda, é um diagnóstico muito seguro. Portanto deve ser-se capaz de fazer a distinção entre o pé equino, como mania dos psicopatas autistas, e o pé equino espástico. Em paresias espásticas discretas este sintoma pode, contudo, só ser observado em estados de agitação, ou de cansaço.
A apreciação das posições de sentado, de pé, ou de marcha depende largamente da capacidade do examinador para «olhar». A marcha do espástico distingue-se nitidamente da da criança com coreoatetose; muito frequentemente, encontramos também na marcha
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espasticidade com formas coreicas e elementos atetódes misturados. Do tipo de perturbação da marcha pode, em muitos casos, surgir o diagnóstico, mas pode, quase sempre, ser deduzida a terapia necessária. A marcha sobre uma linha colocando os pés um à frente do outro é aqui uma prova indispensável.
A partir dos exames de controlo da capacidade motora, efectuados com intervalos, tiram-se conclusões quanto ao prognóstico da natureza da doença e pode distinguir-se entre um processo que está em evolução e um processo estacionário. A forma e mobilidade da coluna vertebral, deformações patológicas como cifoses, escolioses, bem como formação de fendas, ou de bloqueios são importantes para a apreciação de um quadro clínico.
O baixar-se e levantar-se, examinados de acordo com a rapidez e a maneira como decorre este movimento e os auxílios que a criança utiliza para esse efeito, são elucidativos acerca do seu desenvolvimento motor-estático. Muitas vezes, só se consegue fazer o diagnóstico diferencial dos processos evolutivos por se tomar evidente a perda crescente da função motora. O saltar alternadamente sobre uma das pernas afirma-se como uma indicação importante da mobilidade, e eventual lateralidade.
As crianças com lesão cerebral apresentam frequentemente atrasos do desenvolvimento motor, sem que apresentem anomalias no aparelho locomotor. Isto é de atribuir a atrasos do desenvolvimento psíquico, de modo que a criança, devido a falta de impulsos, não utiliza, ou utiliza muito pouco, o seu aparelho locomotor, que não está, em si, perturbado. Curiosos são os fenómenos observáveis nas crianças cujo desenvolvimento motor, em si, tornaria possível, já há muito tempo, a marcha livre e independente, mas que apenas necessitam de um pequeno apoio para andar.
7.5 A REGIÃO GENITAL
Dar menos importância a esta região do corpo, nas crianças com lesão cerebral, seria um erro grosseiro. É digno de menção que a maturidade sexual destas crianças, tanto no aspecto temporal, como
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qualitativo, decorre quase sempre independentemente da natureza e gravidade da patologia. Contudo, dado que os problemas resultantes desta região não são tão assimilados como o são nas crianças saudáveis, resultam daí consideráveis perturbações de comportamento. É indispensável, por isso, fazer um controlo regular do desenvolvimento sexual de que faz parte, forçosamente, a apreciação do estado de maturação, bem como o tamanho e forma dos órgãos genitais e o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários (pêlos na região púbica, desenvolvimento do peito). Nos rapazes, é importante verificar se ambos os testículos são palpáveis no escroto.
O peso e a altura completam a impressão geral e permitem tirar conclusões acerca do estado de maturidade respectivo. Se num estádio de observação forem tidos em conta e retidos todos os aspectos que foram aqui focados, fica dado mais um passo no sentido do diagnóstico definitivo.
7.6 OBSERVAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NEUROLÓGICO
Diagnóstico precoce e terapia precoce são as máximas que, nos últimos anos, foram reconhecidas como imprescindíveis. O diagnóstico precoce só tem, naturalmente, sentido se daí resultarem consequências terapêuticas.
É, sem dúvida, ainda uma utopia que todos os recém-nascidos sejam actualmente observados por um neuropediatra, contudo, isso será, dentro em breve, uma coisa natural. A observação do lactente e da criança pequena concentrar-se-á em questões especiais. A observação da motricidade espontânea, do tónus, da musculatura hipo-, hiperou normotónica, a apreciação do controlo da cabeça, a capacidade para saltar, a capacidade de preensão palmar e o reflexo plantar, o levantar-se, o manter-se em pé espontaneamente, ou só com apoio, a falta da capacidade para estar em pé, a visão, o contacto do olhar, os movimentos oculares, a reacção das pupilas, a reacção aos ruídos, a percepção visual são apenas alguns detalhes do actual programa de observação, de um modo geral conhecido.
Capítulo 8
MÉTODOS DE OBSERVAÇÃO BIOFÍSICOS
8.1 ELECTROENCEFALOGRAFIA (EEC)
A primeira análise sistemática do traçado da actividade eléctrica cerebral tem a sua origem no médico vienense, F. Berger. O EEG (electroencefalograma) é efectuado com o auxílio de eléctrodos que são aplicados sobre o couro cabeludo. O traçado obtido desse modo possibilita a apreciação da actividade eléctrica cerebral. Num adulto em repouso, com os olhos fechados, uma sequência continuamente repetida do ritmo das ondas, as chamadas ondas alfa, apresentase como um indício muito estranho. A sua frequência é de 8 a 12 Hz. Além disso, podem ainda encontrar-se as chamadas ondas beta, que apresentam um ritmo de 18-30 Hz; em crianças saudáveis surgem também ainda ondas grandes e regulares, que têm uma frequência de 4-7 Hz, o que é designado por ritmo teta.
O EEG apresenta uma dependência nítida da idade. O traçado da corrente cerebral revela primeiramente um ritmo rápido que corresponde aproximadamente à frequência beta. Somente com o início da puberdade começam os ritmos alfa, conforme se encontram depois também no adulto.
No decurso do sono, o ritmo alfa é substituído por ondas mais amplas e mais lentas. No estado de sono profundo, aparecem as chamadas ondas delta cuja frequência fica abaixo dos 4 Hz.
A identificação da maturidade bioeléctrica no EEG não é sempre fácil.
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Só é possível tirar conclusões, a partir do EEG, acerca do nível físico e intelectual de uma criança, com base num grande número de experiências. As perturbações evidentes da maturidade, como as que encontramos na hipsarritmia, no quadro das convulsões relâmpago-aceno-salaam não estão, naturalmente, aqui incluídas, uma vez que são fáceis de diagnosticar.
Se possível, o EEG não deve ser feito sob a acção de sedativos, ou em estado de narcose. Embora isso não se consiga evitar em casos isolados, com base na nossa experiência, podemos afirmar que uma enfermeira hábil e habituada a lidar com crianças com lesão cerebral consegue, salvo raras excepções, efectuar o exame a todas as crianças, sem o recurso a essas medidas. A hiperventilação, isto é, a inspiração e a expiração forçadas, com o fim de provocar descargas patológicas, não é praticamente possível de ser efectuada a lactentes e a crianças pequenas, bem como a doentes que sofram de atraso mental, pelo que, em crianças com lesões cerebrais, temos que contar, muitas vezes, com dificuldades.
Actualmente o EEG pode já fornecer dados topográficos precisos, mas, só relativamente, permite conclusões exactas sobre a localização de uma perturbação no cérebro. Contudo, fornece muitas vezes indicações decisivas sobre a função cerebral perturbada que, depois, em articulação com a sintomatologia clínica e o quadro de manifestações psicológicas possibilitam o diagnóstico, mas que permitem, sobretudo, descobrir a situação da criança, no aspecto neurológico.
O resultado do primeiro exame é, simplesmente, o ponto de partida para o diagnóstico, ou seja, para o tratamento médico. Somente através do controlo do traçado da actividade eléctrica cerebral, em períodos análogos, são possíveis afirmações mais aprofundadas a respeito da evolução da doença, razão pela qual exames de controlo desta natureza, devem, ao princípio, ser feitos dentro de períodos mais curtos. Isto não é, de modo nenhum, «brincar aos diagnósticos» mas é antes um controlo autêntico e necessário do desenvolvimento, com vista às observações longitudinais indispensáveis em patologias deste tipo.
Tem-se sempre tentado, a partir da apreciação das curvas da corrente cerebral, estabelecer relações objectivas com os processos psíquicos. Dentro da chamada população normal saudável essas relações, até agora, não se demonstraram concludentes.
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Afigura-se ser particularmente importante, contudo, o poder esclarecedor do EEG naquele grupo «borderline» que, clinicamente, se pode considerar, na verdade, como relativamente normal, mas no qual as alterações comportamentais aparecem, em primeiro plano, como sintoma principal.
Os dados quanto à frequência dos resultados anormais do EEG em perturbações circunscritas ao comportamento, por exemplo enurese, gaguez, comportamento anti-social, entre outros, oscilam, na literatura, de acordo com o autor, entre 10 e 90 por cento. Contudo, tão grandes diferenças são menos a expressão de uma variabilidade de facto biológica do que o indício de diferentes critérios de apreciação com os quais teríamos que deparar, novamente, na problemática da avaliação da frequência.
Contudo, para que, pelo menos, se obtenham pontos de referência aproximativos deve ser feita menção do estudo de HEDwIG RErrNER (1979), que, relativamente à exactidão dos métodos e à grande amplitude da observação sugere:
Foram escolhidas mais de 400 crianças que tinham sido trazidas pelos pais, devido às suas anomalias de comportamento. Em nenhuma destas crianças, a anamnese fazia referência a lesões orgânicas, ou a crises convulsivas. De acordo com a anomalia fundamental, as crianças foram divididas em quatro grupos: crianças com enurese, com perturbações comportamentais de ocorrência súbita, com dificuldades escolares, e com perturbações de linguagem (não foram incluídas no estudo crianças com perturbações auditivas).
Nas crianças com perturbações de linguagem, a baixa percentagem de traçados patológicos da actividade eléctrica cerebral era acentuada. Após o teste psicológico, procedeu-se à apreciação do EEG, de acordo com os critérios do quociente de inteligência: abaixo da média, dentro da média e acima da média. Pelo menos 24 por cento das crianças estavam «acima da média»; só 30 por cento das crianças cuja capacidade intelectual foi considerada abaixo da média tiveram um resultado do EEG normal; 7 por cento apresentavam um traçado da actividade eléctrica cerebral com graves anomalias. Apenas metade das crianças com uma capacidade intelectual média pertencia ao grupo das que tinham sido trazidas ao médico, devido a enurese.
Com base nestas observações pode ser deduzido, com a necessária prudência, que o EEG apresenta qualquer traçado característico
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das perturbações especiais do comportamento; contudo, em articulação com outros meios de diagnóstico, pode trazer esclarecimentos adicionais sobre possíveis lesões orgânicas, em crianças com perturbações comportamentais.
Uma experiência ganha, em muitos anos de observações na nossa área de trabalho, é que quase toda a criança com lesão cerebral pode ter, um dia, convulsões. O defeito orgânico no cérebro provoca, quase sempre, um certo potencial convulsivante que proporciona factores que muito contribuem para perturbar o equilíbrio biológico do cérebro, tão dificilmente conseguido. Parece-nos, por isso, ser uma medida com uma certa prudência chamar a atenção, no diagnóstico de perturbações do desenvolvimento cerebral, para o facto de a consolidação bioeléctrica do sistema nervoso central, devido às alterações orgânicas, não conseguir suportar a sobrecarga do meio ambiente e, possivelmente, poder um dia reagir dramaticamente, isto é, com uma crise convulsiva.
Para concluir, ainda algumas considerações fundamentais quanto ao significado do EEG e ao seu valor, dentro do diagnóstico clínico das crianças com lesão cerebral. H. PESCHKE disse, uma vez, que o EEG seria como o olhar sobre uma cidade nocturna. Pode ver-se bem uma quantidade de luzes, mas não se ver aquilo que está nos quartos, cujas janelas iluminadas se conseguem reconhecer. O EEG tornou-se um exame de rotina, contudo, carece ainda de apreciação experimentada e exacta, em exclusiva articulação com os resultados dos exames clínicos e psicológicos. O resultado do próprio EEG deve ser apresentado criticamente e com precaução e não pode ser nem motivo de apreciação exagerada, nem de menosprezo.
8.2 ELECTROMIOGRAFIA (EMG)
A apresentação gráfica de potenciais musculares, o electromiograma (EMG), mereceu, nos últimos anos, um interesse crescente na neurologia dos adultos. No que se refere às lesões cerebrais infantis não pode, até agora, ser utilizada na proporção total das suas possibilidades, dado que, este tipo de doentes não garante muitas vezes as
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condições de tranquilidade e repouso necessárias à observação rigorosa. A semelhança do que acontece no KG e no EEG, as correntes são derivadas da pele, contudo, simples eléctrodos de contacto, só raramente, dão traçados aproveitáveis totalmente; os eléctrodos com agulha que, naturalmente, permitem esperar resultados substancialmente mais precisos, são, devido à dor resultante da sua colocação, uma carga psíquica negativa para as crianças.
Se se pensar na dependência patológica, já por várias vezes acentuada, das funções motoras da situação psíquica da criança é compreensível que, desse modo, se possa provocar uma distorção do quadro neurofisíológico.
Importante, e cada vez mais necessário em exames de rotina, é o EMG para diferenciação de atrofias neurógenas e musculares e para localização de lesões nervosas periféricas. As conclusões tiradas a partir dos traçados da actividade eléctrica muscular sobre a localização de uma perturbação do movimento são, a maior parte das vezes, indicações valiosas; contudo, tal como no EEG, só têm utilização em articulação com o quadro clínico.
8.3 ANÁLISES DA MARCHA
É tão antigo como compreensível o desejo de controlar, com critérios utilizáveis objectivamente, a evolução de movimentos como por exemplo a marcha, alterações, deteriorações e melhorias do modelo de marcha, perturbações da harmonia do movimento, ataxia, espasticidade, movimentos coreicos e atetósicos, etc., analisar de um modo tão preciso que possam ser apresentados resultados, apreciáveis qualitativa e quantitativamente.
Dado que, de um modo geral, as gravações para filme ou TV, por mais que fossem modificadas, não trouxeram igualmente quaisquer resultados úteis, são tentados, há anos, novos métodos.
Parece que, por a medição, livre de contacto, da evolução do movimento desenvolvido por O. F1EiR (1979), com filmagens em alta velocidade e a subsequente exploração, totalmente automática, dos resultados dos cronogramas e diagramas angulares, se torna possível
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uma representação extraordinariamente exacta da evolução dos movimentos da cabeça, braços, pernas e tronco.
8.4 DIAGNÓSTICO RADIOLÓGICO
A apreciação da forma do crânio, com base na radiografia de conjunto, e a detecção de possíveis desvios patológicos é a primeira etapa deste exame. Em ligação com as medidas do crânio está a distinção em hidrocefálica, braquicefálica e microcefálica (pseudo-microcefalia e microcefalia), como as mais importantes formas patológicas possíveis do crânio. O estado das suturas cranianas e fontanelas, se estão abertas ou fechadas, é importante, sobretudo em relação com a idade.
Na base do cérebro, é particularmente importante aquela região em que está alojada a hipófise. A pressão do líquor, o chamado líquido cefalorraquidiano no interior do crânio, exercida sobre os ossos cranianos pode, em caso de processos patológicos, deixar impressões (impressiones digitae) nos ossos achatados.
Porém, não é apenas o crânio que pode ter significado radiológico. Também alterações da anca, das extremidades, da coluna vertebral e, sobretudo, dos ossos do corpo são claramente detectáveis, em determinadas patologias, através do diagnóstico radiológico, ou no seu estado agudo.
8.5 TOMOGRAFIA COMPUTORIZADA (TAC)
Este método de observação revolucionou, nos últimos anos, o diagnóstico orgânico e tomou, sobretudo a pneumo-encefalografia, largamente supérflua. Na primeira edição deste livro, foram referidas as possibilidades e limites de espaço mais amplo da pneumoencefalografia (introdução de ar nas cavidades cerebrais), e, alertámos para o perigo de se considerar este método como exame de
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rotina. Agora, essa situação parece estar ultrapassada, dado que a tomografia computorizada pode ser efectuada sem punção lombar, isto é, sem dores e sem risco, e fornece dados topográficos e de localização distintos, dentro da estrutura do cérebro.
8.6 ARTERIOGRAFIA
No âmbito da neurologia dos adultos, a arteriografia é um método de exame extraordinariamente comprovado e importante. Na área das lesões cerebrais infantis, em nossa opinião, e de acordo com a nossa experiência, raramente há necessidade urgente de recurso a esta medida. Em determinadas patologias, como anomalias vasculares congénitas, por exemplo, o sindroma de Sturge-Weber, ou para diagnóstico diferencial de tumores, tem, contudo, que ser aplicada.
8.7 ECOGRAFIA CEREBRAL
Os valores atingidos pela reflexão de impulsos de ultra-sons, a partir do interior do cérebro, podem sugerir processos expansivos, dilatação maciça do ventrículo e hemorragias no cérebro; mas, se este método mais nada conseguir, ele dará, sem dúvida, indicações importantes no sentido de observações mais latas e mais pormenorizadas.
8.8 CINTIGRAFIA CEREBRAL
Este método de observação, que se baseia no facto de, entre zonas saudáveis e patológicas, existirem diferenças mensuráveis no metabolismo e, por conseguinte, também na acumulação de substâncias radioactivas marcadas, está em primeira linha no diagnóstico de
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processos tumorais e de formação de abcessos e é, por isso, de grande importância.
8.9 TRANSILUMINAÇÃO DO CRÂNIO
O crânio do lactente, ou da criança pequena, é iluminado e fotografado com o auxilio de uma fonte luminosa intensa. Deste modo, podem tomar-se visíveis hidrocefalias (cabeça de água) e alterações morfológicas rudimentares do cérebro do recém-nascido e do lactente relativamente ligeiras, ou graves. Contudo, este diagnóstico, só em pequena medida, pode fornecer elementos para um diagnóstico exacto.
8.10 PROVAS DA AUDIÇÃO E DA VISÃO
A audiologia (prova da audição) transformou-se num elemento essencial da complexa observação das crianças com lesão cerebral. Nos últimos anos, tem-se cada vez mais consciência da importância da função auditiva no desenvolvimento da linguagem, do contrato social, da aprendizagem, da inteligência. Não se trata, aqui, tanto dos défices de audição intensos, que são sempre notados pelos familiares da criança, mas, muito mais, das perturbações mínimas da função auditiva, que mal se notam, mas que, no entanto, influenciam fortemente o desenvolvimento da criança.
É compreensível que um exame audiológico fidedigno careça de condições exactas: uma criança disposta a fazer o teste, a câmara silenciosa como espaço consideravelmente isolado do som, todos os métodos actualmente em relevância, a mesa de Biesaisky, a audiometria tonal mas, também, a medição da impedância e a audiometria - EEG em casos especiais. É compreensível que o espírito de observação do examinador, a sua capacidade de contacto, relativamente à disposição da criança para fazer o exame, seja de grande importân-
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cia. A qualidade da medição depende das qualidades psicológicas do examinador.
Para a visão é válido o mesmo que para o ouvido. Também aqui o diagnóstico de uma alteração, se se trata de miopia, ou presbitia, estrabismo, ou nístagmo, perturbações no âmbito dos meios refractivos, ou da retina, é de grande significado na avaliação da capacidade e comportamento da criança. Por sua vez, o sucesso da observação depende da capacidade do examinador para lidar com a criança a quem vai fazer o~ este, de modo a que se possam obter resultados relevantes. É admissível que isso dependa naturalmente do QI do doente, isto é, da sua compreensão do exercício e da capacidade de dedicação do adulto.
São as seguintes as áreas a observar:
1. Estado das pálpebras e pestanas
2. Posição dos eixos palpebrais
3. Largura das fendas palpebrais
4. Distância dos cantos palpebrais internos
5. Tamanho dos globos oculares
6. Posição dos globos oculares
7. Cor, forma e estrutura da íris
8. Estado dos cristalinos
9. Exame do fundo do olho
10. Determinação da refracção
11. Determinação da acuidade visual
8.11 ANÁLISES DE SANGUE
O exame dos glóbulos vermelhos e dos glóbulos brancos (eritrócitos e leucócitos), do pigmento sanguíneo (hemoglobina), dos trombócitos, que são responsáveis pela coagulação sanguínea e, finalmente, da velocidade de sedimentação são, evidentemente, exames de rotina. Sobretudo as anemias são detectadas desse modo e a sua identificação é de grande importância, dado que as mesmas podem conduzir a uma redução suplementar da capacidade física e
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psíquica das crianças com lesão cerebral. Finalmente, o controlo do hemograma, tanto no âmbito dos eritrócitos como dos leucócitos é necessário para a ministração de medicamentos depressores e de anticonvulsivantes (substâncias para tratamento de crises epilépticas).
8.11.1 Teste da toxoplasmose
Este método de observação faz hoje também parte dos métodos de rotina. Ainda que, considerada no aspecto quantitativo, a toxoplasmose tenha apenas um pequeno significado no complexo de causas de lesões cerebrais na criança (a sua quota-parte no nosso tipo de doentes é cerca de 2 por cento), esta doença tem, no entanto, efeitos graves e toma necessário um controlo profundo da mãe. Sabemos que a toxoplasmose - como infecção inofensiva, a maior parte das vezes confundida com gripe - apresenta em crianças e adultos das populações camponesas um grau de epidemicidade de 75 por cento, isto é, em 100 mulheres 75 podem apresentar um teste de toxoplasmose positivo, dado que, após ter decorrido a afecção aguda, ficam retidos anticorpos. Contudo, a toxoplasmose é, sem excepção, só depois lesiva para o cérebro da criança, se a mãe, durante a gravidez, se encontrar num estado agudo de toxoplasmose. Felizmente, isso só raramente acontece. É incorrecto, após teste positivo da toxoplasmose numa mãe, considerar sempre qualquer criança com lesão como sendo consequência da toxoplasmose e submeter a mãe e a criança a tratamentos sem sentido. Num caso destes, são simplesmente rejeitados, consciente ou inconscientemente, os conhecimentos científicos reconhecidos até agora.
8.11.2 Reacções de Lues
Antigamente, as lesões cerebrais em casos de sífilis congénita não eram nenhuma raridade. Em Viena, esta tão terrível consequência foi prevenida, nos anos vinte, mediante a acção genial do anatomista e «pai da cidade da saúde» JULIUS TANDLER. Todas as mães
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que, até ao 3º mês de gravidez, se tivessem submetido a um exame de sífilis, recebiam um embrulho de roupa de bebé (extremamente atractivo para aquela época). É difícil apreciar, até que ponto o aumento recente dos casos da quase extinta Lues se apresenta em colaboração com a novamente actual abundância de casos de Lues congénita.
8.11.3 Teste de Guthrie
É enorme a importância ganha pelo teste de Guthrie, que deve ser efectuado no 4.° dia após o nascimento. Equivalente ao teste de Guthrie, embora não tão simples tecnicamente, mas abrangendo um grande espectro de aminoácidos, é a chamada cromatografia em camada fina. O exame dos aminoácídos no soro sanguíneo é cada vez mais importante e não há qualquer dúvida que, juntamente com ambos os métodos, também a cromatografia em coluna em «autoanalyser» tem cada vez mais aplicação.
Este método, técnica e financeiramente dispendioso, mas, contudo, apurado permite medir, qualitativa e quantitativamente, a escala completa dos aminoácidos. Não deve ser menosprezada a importância da determinação do nível de amoníaco no soro sanguíneo na hiperamoníémia. (A. Rr:rr), na citrulinémia, na doença de argíninaácido succínico, na doença de «Maple syop» e numa série de outras perturbações observadas e descritas nos últimos anos, que puderam ser apreendidas com este método.
8.11.4 Exame da tiróide
Se antigamente a medição do iodo proteico sérico suplantou a determinação rádio-iodo, actualmente a determinação da T3 e T4 é, de longe, o método de eleição. Embora a tiróide não seja mesmo necessária à vida- se se recorrer à definição mínima: a vida é metabolismo - então um metabolismo regular é indispensável para um desenvolvimento físivo e mental saudável. A função da tiróide
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reside no armazenamento e no transporte de iodo por um lado, e na síntese de tão necessária e importante hormona da tiróide (tiroxina) por outro.
Nas crianças, uma actividade insuficiente da tiróide conduz ao nanismo e a atraso mental extremo.
8.12 ANÁLISES DA URINA
Juntamente com os exames de rotina do peso específico, açúcar, albumina, sedimento, etc., existe, hoje, uma série de métodos bioquímicos especiais que devem ser usados em determinados casos, como por exemplo a medição da secreção das diferentes substâncias originárias das supra-renais e de outras glândulas, como a hormona do córtex da supra-renal, hormona folicular, gonadotropinas, entre outras.
Em perturbações do metabolismo, como por exemplo a diabetes, a utilização de um simples teste rápido permite a determinação da glucose. A fenilcetonúria, já atrás referida, é demonstrada na urina pelo ácido fenilcetopropiónico; o mesmo se passa com outra afecção congénita do metabolismo, a galactosémia, presença de frutose e de lactose na urina; muitas vezes também na leucémia e em muitos mielomas o diagnóstico pode ser comprovado através da eliminação da chamada proteína de Bence-Jones.
8.13 EXAME CITOLÓGICO
O resultado do exame citológico, a observação dos cromossomas, tornou-se já hoje parte integrante de um programa laboratorial de rotina. A representação dos cromossomas dos glóbulos brancos em processos complicados, e sempre dispendiosos, deu como resultado referências importantes sobre a etiologia de muitas doenças, como por exemplo o mongolismo e numerosos quadros clínicos, na
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verdade muito mais raros, mas, até agora, ainda, etiologicamente, por esclarecer.
Teoricamente, todas as crianças com desenvolvimento perturbado deviam ser submetidas a exame citológico. Contudo, a técnica extraordinariamente penosa torna isso impossível, de tal modo que, na indicação para o estudo cromossómico, deve proceder-se a uma certa selecção. É de salientar que o desenvolvimento da técnica de observação, sobretudo o chamado método das bandas, proporcionou uma imagem substancialmente mais exacta dos cromossomas do que a coloração com orceína anteriormente usada. A importância deste exame pode ser deduzida do facto de, num total de 737 crianças observadas na nossa clínica, pelo método das bandas, terem conseguido detectar-se 146 com aberrações cromossómicas. É também interessante que, destas aberrações, 79 eram numéricas e 67 estruturais.
8.14 MÉTODOS DE OBSERVAÇÃO ANTROPOLÓGICA
O conhecimento da forma e variação das características hereditárias humanas pode não apenas prestar um importante auxílio ao médico, no que respeita ao diagnóstico diferencial, mas também fornecer dados que devem ser tidos em conta, no diagnóstico precoce individual e no prognóstico do desenvolvimento. Nos últimos anos, teve lugar como que um renascimento da metodologia morfológica.
Revela-se, por este processo, que por exemplo o exame microscópico da morfologia do cabelo também pode fornecer elementos para o diagnóstico de determinadas perturbações do desenvolvimento. Numa série completa de sindromas, a forma transversal e a espessura do cabelo revela-se, na observação microscópica, decisiva para o diagnóstico. Assim, os cabelos das crianças com hipofuncionamento do metabolismo da tiróide (hipotiroidismo) são irregulares no corte transversal e, na sua maioria, não estão de acordo com a estabilidade de forma que é conhecida. Investigações recentes, com microscópio electrónico, feitas por M. TESCNLER-NICOLA, acentuaram
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a importância futura deste método de observação. As particularidades dos dermatóglifos dos dedos, mãos e pés são já amplamente conhecidas na prática neuropediátrica.
Na verdade, em articulação com métodos estatísticos relativamente dispendiosos, por exemplo, no síndroma de Down (mongolismo) consegue fazer-se, a maior parte das vezes, já o diagnóstico com base no estudo dos dermatóglifos. G. ANE-HAUSER desenvolveu um método morfológico análogo aos dermatóglifos que é simples de aplicar: a apreciação das chamadas pregas de flexão digital, situadas nas zonas articulares. Aqui, foram observadas manifestações características muito claras que, em muitos casos, dão referências essenciais sobre uma perturbação do desenvolvimento, antes talvez não diagnosticável em primeiro lugar. Deste modo, estas e outras manifestações qualitativas puderam ser utilizadas como rastreio rudimentar nos recém-nascidos.
Enquanto que a metodologia puramente morfológica pressupõe, sem dúvida, muita experiência, em observações e apreciações puramente métricas a situação é muito mais simples e mesmo mais objectiva, dado que os resultados dos exames não estão dependentes da experiência pessoal do examinador. Cada uma das medidas está normalizada internacionalmente (MARTIN-SALLER) e as possibilidades de erro são escassas. Têm-se revelado particularmente expressivas, neste caso, as dimensões da cabeça e face, bem como a verificação exacta da estatura. O significado deste método de observação em crianças com perturbação do desenvolvimento foi apresentado, por H. SEIDLER e A. RETT, em observações de mongolóides, a respeito do seu prognóstico individual de desenvolvimento.
O objectivo da técnica de observação antropológica é apresentar métodos com o auxilio dos quais possam ser feitos diagnósticos precoces, com a maior facilidade possível. O poder informativo do método está sobretudo no facto de abranger crianças em estádios muito precoces da vida e que, à primeira vista, dão a impressão de ser completamente saudáveis mas, nas quais, depois, um exame neuropediátrico cuidadoso revela perturbações do desenvolvimento, no sentido mais lato (H. SEIDLER, 1979, 1980).
Para concluir o tema dos métodos de observação, deve assinalar-se que esta selecção não contém, de modo nenhum, todos os métodos possíveis, no entanto, provavelmente os mais importantes
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para o trabalho prático e diário com a criança com lesão cerebral, Facilmente se deduz também, daqui, que um exame preciso carece de um aparato grande e amplamente especializado. Do diagnóstico antigamente apresentado à primeira vista, com o parecer global de «debilidade mental», «epilepsia» ou «paralisia cerebral infantil» até à apreciação quantitativa e qualitativa actual de todas as zonas do corpo, funções e perturbações psíquicas e mentais vai um longo caminho.
Capítulo 9
MÉTODOS DE DIAGNÓSTICO PSICOLÓGICO
A tarefa essencial do diagnóstico psicológico, na criança com lesão cerebral, reside na objectivação da perturbação de fundo, com o auxilio de testes psicológicos. Neste entrelaçar de estruturas, algumas dimensões têm um papel importante e central, outras um papel periférico. Uma destas dimensões centrais é a perturbação da criança com lesão cerebral, que é rotulada com o conceito de atraso intelectual. O termo psiquiátrico de «oligofrenia» (debilidade mental) aponta primeiramente para a realização de um atraso da inteligência. É importante salientar, aqui, que os primeiros testes psicológicos se debruçaram sobre o problema do desenvolvimento da inteligência da criança (A. BINE-r, H. SIMON, 1905) e, no início da história destes métodos de observação, estava já, em primeiro plano, a criança com desenvolvimento perturbado.
O número dos testes psicológicos cresce de ano para ano. Muitas vezes são aplicados testes cuja base metodológica não corresponde, ou corresponde apenas insuficientemente, ao conceito teórico moderno. Com demasiada frequência é atribuída ao resultado do teste uma validade universal e obrigatória que não pode ser, de modo nenhum, conseguida com base nos instrumentos que se oferecem.
Não é de admirar que sejam feitas cada vez mais críticas ao diagnóstico psicológico e que os resultados dos testes sejam frequentemente postos em causa.
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Quer a utilização, quer a interpretação dos testes devem ser pois efectuadas com o necessário cuidado: tanto no âmbito clínico como no pedagógico devem evitar-se conclusões e consequências peremptórias, com base no desempenho revelado nos testes.
R. BRICKENKAMP refere-se expressamente à impossibilidade de abranger personalidades com estrutura muito complexa. O diagnóstico por meio do teste pode limitar-se a fornecer factores de rendimento e de personalidade, para, desse modo, contribuir para o esclarecimento de problemas humanos. Os modernos métodos de diagnóstico psicológico têm, portanto, a função de um auxiliar de decisão. Auxiliar de decisão significa, contudo, que a capacidade preditiva do teste carece ainda de critérios adicionais de apreciação. É impossível uma descrição ampla de cada um dos testes, dos seus fundamentos, dos seus objectivos determinados, ou apenas postulados. Em 1966, VAN KREVELEN estimou em mais de 10 000 o número de testes existentes, uma quantidade que, entretanto, aumentou concerteza substancialmente. BRICKENKAMP previne aqui contra uma ambição de conhecimentos completos; contudo, refere quão importante é dominar o mais completamente possível, pelo menos, os testes que podem ser relevantes para o campo de trabalho específico.
Mas, ao mesmo tempo, é todavia necessário proceder a uma classificação dos processos que temos à disposição. Seguem-se três tentativas de uma classificação sistemática dos testes psicológicos, por autores, conforme são apresentados por BRICKENKAMP.
A. Classificação segundo K. WILDE
1. Inteligência
2. Capacidade, talento, aptidão
3. Atitudes, comportamentos
4. Interesses, valores
5. Personalidade
6. Diagnóstico clínico
7. Diagnóstico do desenvolvimento e maturidade escolar
8. Conhecimentos, rendimento escolar
9. Outros (sociograma, entre outros)
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B. Classificação segundo G. A. Lienert
Testes de inteligência
Testes de inteligência geral
Testes de aptidão
Testes de realização
Testes da capacidade motora
Testes da capacidade sensorial Testes da capacidade psíquica
Testes de personalidade
Testes de atitude
Testes de interesse
Testes de orientação
Testes de carácter
Testes de tipos
C. Classificação segundo R. Briekenkamp
I. Testes de realização
Testes de desenvolvimento
Testes de inteligência
Testes de realização geral
Testes escolares
Provas especiais de função
II. Testes psicométricos da personalidade
Testes de estrutura da personalidade
Testes de orientação e interesse
Testes clínicos
III. Testes de projecção da personalidade
Testes de interpretação de formas
Testes verbais-temáticos
Testes gráficos e de «gestalt»
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A seguir, e dentro do esquema de BRICKENKAMP, apresentaremos alguns processos que estão relacionados com a problemática em questão.
9.1 TESTES DE REALIZAÇÃO
1. Testes de desenvolvimento
Aqui, estão incluídos todos os processos de diagnóstico psicológico que devem abranger principalmente o actual status de desenvolvimento do probando; entre estes processos, podem incluir-se processos de verificação de inteligência aferidos e variáveis, de acordo com a idade. BRICKENKAMP distingue entre o teste de desenvolvimento primário e secundário. De acordo com G. REINERT, os processos primários definem o nível actual de desenvolvimento do comportamento; os testes de desenvolvimento secundário estão já para além das questões próprias do diagnóstico do desenvolvimento; entre eles, incluem-se os testes de rendimento e de inteligência mencionados.
Deviam ser considerados testes de inteligência somente aqueles que apresentassem um modelo interpretável, o mais possível, por factores analíticos.
Séries de testes de desenvolvimento para a idade escolar (HETR) de H. Hetzer: Um teste clínico que consiste em quatro séries de testes e está concebido para a idade compreendida entre os 7 e os 13 anos. Múltiplas possibilidades de aplicação, mesmo no serviço de psicologia escolar, na orientação educativa, nas clínicas pediátricas.
Teste de desenvolvimento para a idade escolar (SDET) de Lotte Schenk-Danziger: Teste de desenvolvimento clínico, que consiste em seis séries de testes que examinam o comportamento no domínio social, a capacidade de aprendizagem e a capacidade de produção mental. Tentativa de obter uma visão de conjunto de personalidade total da criança. SCHENK-DANZINCER designa de dimensões fundamen-
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tais do comportamento da criança qualidades como domínio do corpo, comportamento social, aprendizagem e capacidade de realização. O teste é frequentemente administrado dentro das instituições que são confrontadas com perturbações do comportamento infantil. O processo foi concebido para a gama de idades dos 5 aos 11 anos.
Teste para crianças pequenas (BHKT) de CH. Bühler e H. Hetzer: Também este teste de desenvolvimento tem muitas vezes aplicação no âmbito clínico. O teste pode ser já administrado pouco depois do nascimento, contudo, já não devia ser utilizado depois dos 6 anos de idade. O mesmo foi concebido segundo o princípio, ainda não demonstrado cientificamente, de que haveria uma criança normal hipotética e, em conformidade com isso, um desenvolvimento quase normalizado em cada faixa etária. A ideia base parte de BINET. Não se chegou ainda a um reconhecimento científico genérico. Não existem dados padronizados suficientes.
Escala de LINCOLN-OSERETZKY (LOS KF 18): o teste examina o desenvolvimento motor de crianças entre os 5 e 13 anos. Permite fazer a distinção entre crianças afectadas mentalmente e crianças normais. O fundamento do teste baseia-se na suposição de que uma superação das anomalias do comportamento motor conduziria, também, a uma melhoria da interacção social e da actividade emocional. A maneira como o teste está articulado permite delimitar a motricidade perturbada, com referência à chamada norma.
2. Testes de inteligência
O Binetaricum - Avaliação de inteligência segundo BINET-BOBERTAG-NORDEN: Segundo BRICKENKAMP, o Binetarium permite,
por «meios simples e sempre fidedignos, obter uma visão geral da capacidade intelectual». Este teste é muito utilizado no âmbito clínico, porém, por uma questão de objectividade, deve insistir-se que, como de costume, não estão presentes os critérios de qualidade essenciais de um processo (confiança, validade, normas), de modo que a experiência do psicólogo clínico está, particularmente aqui, em primeiro plano.
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O teste baseia-se no conceito de inteligência de W. STERNS, a idade cronológica e a idade mental estão em relação uma com a outra.
Faremos agora referência a um protocolo semelhante a que submetemos um doente da nossa clínica (uma criança com a idade de seis anos e cinco meses com o diagnóstico de «lesão cerebral perinatal, microcefalia»).
R. M. nasc. 12.07.1958
Com a idade de 3 anos, foram obtidos os seguintes resultados:
1. Enumeração de imagens Positivo
2. Compreensão de palavras Positivo
3. Reconhecimento de objectos Positivo
4. Comparação de cores Positivo
5. Repetição de frases Positivo
6. Repetição de séries de números Negativo
Na idade de 4 anos foram atingidos os seguintes resultados:
1. Acrescentar uma figura de 3 pequenas barras Positivo
2. Construir Positivo
3. Comparar duas linhas Positivo
4. Comparar pesos Positivo
5. Palpar os objectos Negativo
6. Reconhecer ruídos Negativo
Na idade de 5 anos foi obtido o seguinte rendimento:
1. Montar um rectângulo Positivo
2. Executar três tarefas Positivo
3. Desenhar um quadrado Negativo
4. Explicar conceitos Negativo
5. Repetir frases II Negativo
6. Repetir números II Negativo
Na idade de 6 anos foi obtido o seguinte resultado:
1. Distinguir lado direito - lado esquerdo ainda um pouco inseguro
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2. Referir-se a partes que faltam numa gravura Negativo
3. Descrição de imagens Negativo
4. Fazer dobragem Negativo
5. Continuar séries de pequenas barras Positivo
6. Comparação estética Positivo
Na idade de 7 anos já não foi resolvido nenhum subteste.
O cálculo do quociente de inteligência faz-se aqui da maneira simples, que consiste em dividir a idade mental pela idade cronológica. Uma vez que há 6 subtestes em cada idade examinada, um subteste corresponde a dois meses de idade mental. Em 52 meses de idade mental e 77 meses de idade cronológica, o quociente de inteligência é
Há, portanto, um atraso de 25 meses, e o quociente de inteligência apontaria para uma elevada debilidade.
Teste das matrizes coloridas progressivas (CMP): Um teste de inteligência que tanto se pode utilizar no âmbito normal como no âmbito clínico. Em crianças, deveria ser aplicado somente entre os 5 e os 12 anos (precisamente 11,6 anos).
O processo foi concebido como teste designadamente independente de cultura e de linguagem e dirige-se simplesmente à capacidade de observação e clareza de raciocínio. Pelos factores analisados e por, de acordo com os critérios de qualidade essenciais da teoria dos testes, estar bem construído, cabe-lhe particular importância. Também se tem afirmado na administração em crianças com capacidade mental reduzida e com surdez severa. É importante também, e isto aponta para a moderna psicologia dos testes, que o autor, conscientemente, prescinda da avaliação do quociente de inteligência.
Teste de inteligência para crianças de Hamburg-Wechsler (HAWIK): O HAWIK começa na idade de 6 anos e termina nos 15 anos. O conceito base parte da definição variável de inteligência: «inteligência é a capacidade reunida, ou global, do indivíduo para
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agir com objectivos, pensar racionalmente e ajustar-se eficazmente ao seu meio»; uma definição ampla, dizem os defensores deste teste, uma definição insignificante, consideram aqueles que desaprovam o processo. O teste examinou-se cuidadosamente no aspecto estatístico e os resultados de análise factorial confirmam o carácter global deste teste de inteligência. É posta frequentemente a questão se hoje é de novo necessária uma validação. Seria desejável, talvez aqui, uma nova aferição.
O teste mede não apenas capacidades, como a capacidade de cálculo e o poder de abstracção, mas também a inteligência linguística e a velocidade psicomotora. O espectro da aplicação do processo é largo; o teste é aplicado, sobretudo, no âmbito clínico. Compõe-se de uma parte verbal e outra de realização.
PARTE VERBAL PARTE DE REALIZAÇÃO
- Conhecimentos gerais - Teste de símbolos numéricos
- Compreensão geral - Completar gravuras
- Raciocínio aritmético - Ordenação de imagens
- Encontrar semelhanças - Cubos
- Teste de vocabulário - Composição de objectos
- Repetição de números
Na interpretação dos testes, o perfil das curvas torna possível a compreensão do atraso da inteligência das crianças e dos jovens com lesão cerebral. Assim, o resultado do teste pode dar indicações sobre a possível estrutura do défice de função cerebral, onde podem figurar as perturbações no domínio da compreensão da forma, e o nível da capacidade de raciocínio abstracto. Parece-nos necessário referir que o confronto da parte verbal com a parte da realização é de grande importância para o diagnóstico clínico. Verificam-se grandes discrepâncias em crianças com deficiências motoras, mas, com muita frequência também em disléxicos e são indicação clara de insegurança motora. E. SCHMALOHR conseguiu, em 1968, perfis para candidatos, a escolas especiais, com dificuldades de aprendizagem;
em 1971, W. WINKELMANN e E. SCHMALOHR publicaram uma interpretação factorialista de um subteste e apresentaram importantes critérios de apreciação para candidatos, com dificuldades de aprendi-
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zagem, a escolas especiais; infelizmente estes trabalhos são muito pouco conhecidos. G. JANSEN e M. SCHMIDT mostraram, em 1971, em alunos da escola primária com deficiências físicas, uma parte de realização significativamente baixa e fraco desempenho no teste dos símbolos numéricos.
Segundo R. BRICKENKAMP, o teste devia ser novamente revisto, dado que alguns exercícios estão ultrapassados e, mesmo a sequência dos exercícios carece de um aperfeiçoamento.
Teste de Kramer: Este teste conta-se entre os projectos-Binet redigidos em alemão e foi conhecido antes por teste de Binet-SimonKramer (BKS). A sua avaliação deve contribuir para apreender a capacidade de desempenho intelectual. Sobretudo em alunos com dificuldades de aprendizagem, este processo pode ajudar a resolver a questão de saber se as dificuldades trazidas para a escola são, ou não, de atribuir a um atraso intelectual. Além disso, o teste de Kramer pode também afirmar-se no âmbito clínico. Existem experiências com epilépticos, deficientes físicos e mentais.
Bateria de testes para crianças deficientes mentais (TBCG): Segundo BRICKENKAMP, esta bateria de testes deve preencher uma lacuna importante no diagnóstico de orientação dado que a maior parte dos testes, para crianças no limite inferior de inteligência, só são suficientemente discriminativos, em relação às crianças normais.
O método foi apresentado, tendo em especial consideração as crianças deficientes mentais, e permite, além da apreciação da capacidade de rendimento intelectual, uma referência também ao desenvolvimento motor, dado que foi incluído um teste de desenvolvimento de N. J. OSERETZKY. O teste satisfaz as necessárias exigências teóricas e estatísticas. A aferição base foi feita em 1200 crianças deficientes motoras e é administrado dos 7 aos 12 anos.
3. Não são referidos, nesta descrição, exemplos de teste de rendimento geral, dado que têm pouca importância para este tipo de deficientes.
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4. Testes escolares
Bateria de testes de rendimento escolar para alunos de escola primária com dificuldades de aprendizagem e com fraco rendimento escolar (SBLI): O teste foi desenvolvido com vista a abranger as crianças de aprendizagem fraca nos primeiros dois anos de escolaridade. O método permite uma diferenciação útil no nível inferior de inteligência; numa capacidade de realização pouco abaixo da média, os resultados já não são úteis. Os valores padronizados foram obtidos em cerca de 3000 alunos da primeira classe da escola primária, na R.F.A.
Teste de rendimento escolar para alunos com dificuldades de aprendizagem (SIS): Este método também só faz a discriminação no nível de rendimento baixo, ou muito baixo. De acordo com dados de A. REINARTZ (1971), o resultado do teste deve constituir uma boa base de decisão para a forma ulterior da frequência escolar.
5. Um exemplo deteste especial de prova de função
Teste de dominância da mão (HDT): A. RETT chamou repetidas vezes a atenção para a particular importância do conhecimento da manipulação em crianças com desenvolvimento perturbado. No diagnóstico psicológico o teste de dominância da mão de
H. STEINGRÜBER e G. A. LIENERT é válido, como um recurso impor
tante. O processo consiste em três subtestes: assinalar rastos, pontear um círculo e um quadrado.
O teste permite reconhecer o grau de manifestação da lateralidade direita ou esquerda. A administração restringe-se a crianças entre 6 e 10 anos. Os critérios necessários como objectividade, confiança e validade, estão cumpridos. Na base da normalização gráfica está uma aferição suficiente.
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9.2 TESTES PSICOMÉTRICOS DA PERSONALIDADE
Dado que os testes de orientação e interesses não são essenciais para o problema que tratamos, limitamo-nos, aqui, a dar um exemplo dos testes de estrutura da personalidade e dos testes clínicos.
1. Estruturas da personalidade
Teste criança-medo (KAT): O KAT apreende sobretudo o «grau daquela disposição para o medo que é de atribuir, em primeira linha, à pressão de impulsos e carências e aos conflitos que daí resultam». (F. TURNER e U. TEWES). Existem valores padronizados e aplicam-se a crianças dos 9-12 anos.
2. Testes clínicos
Teste de Benton: Este teste tem aplicação sobretudo no âmbito clínico, para diagnosticar perturbações, no domínio da percepção visual, que apontem para patologias cerebrais, ou que permitam descrever as consequências de lesões cerebrais.
Além disso, com o auxílio do teste de BENTON, consegue fazer-se a diferenciação entre duas formas de perturbações do comportamento: as anomalias com origem organo-cerebral e as de origem psicológica. No entanto, R. BRICKENKAMP chama a atenção para o facto de o desempenho insuficiente do teste não ter que significar, imprescindivelmente, a existência de uma lesão cerebral.
A validade dos testes, respeitantes à apreciação de lesões cerebrais, está suficientemente confirmada por inúmeras observações científicas.
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9.3 TESTES DE PROJECÇÃO DA PERSONALIDADE
1. Processos de interpretação das formas
Teste de Rorschach: De todos os testes projectivos, a prova de RORSCHACH foi a que melhor se afirmou, na objectivação das lesões cerebrais do homem. Contudo, o resultado do teste depende da experiência e dos conhecimentos do psicólogo. Até agora, apareceram muito mais que 4000 publicações isoladas. E. BOHM dá uma visão geral excelente sobre a aplicação de um teste e a sua interpretação. Tentativas de tomar a exploração uniforme e metodicamente inatacável foram divulgadas por G. FISCHER e H. SPADA. Infelizmente, estas iniciativas não tiveram ainda, na prática, o efeito que mereceriam.
Os chamados sinais de Rorschach, que se verificaram em adultos com lesões cererais, não podem ser, contudo, convertidos, sem alterações, em resultados Rorschach de uma criança com lesão cerebral. Mas, R. BRICKENKAMP chama a atenção para o facto de o grupo dos críticos de RORSCHACH se tomar cada vez maior e censurar este teste por falta de objectividade científica. Em contrapartida, deve alegar-se que R. BRICKENKAMP não discutiu o modelo de Fischer. Contudo, ele tem certamente razão, quando, no seu manual dos testes psicológicos, alega que a concordância entre os resultados do teste de Rorschach e o diagnóstico clínico não tem aquele grau de homogeneidade como é defendido, muitas vezes acriticamente, por alguns psicólogos.
Outros processos de interpretação das formas baseadas no conceito Rorschach são: o teste de Behn-Rorschach, o teste de FuchsRorschach e o teste de Zulliger-Tafel.
2. Métodos verbais-temáticos
Teste de percepção para crianças (CAT): O teste consta de dez quadros com figuras de animais em determinadas situações. O teste deve dar referências acerca da estrutura da personalidade e
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aplica-se a crianças dos 3 aos 10 anos. Conseguem-se, através dele, possibilidades de diagnóstico particularmente boas.
O mesmo possibilita também um controlo objectivo da terapia. Tem vantagens pelo facto de ser relativamente independente das influências resultantes da origem e formação do probando. Actualmente, o teste pode somente servir de informação para o psicólogo, dado que não existem ainda suficientes investigações sobre a sua validade.
3. Processos gráficos e de configuração
Teste das pirâmides coloridas (FPT): O teste foi apresentado, na sua primeira versão, por M. PFtsTER e foi ampliado por R. HEiss e H. HILTMANN. São postas à disposição do probando 6 pirâmides compostas cada uma de 24 quadrados. De 24 tons mandam-se combinar 10 cores principais. Trata-se de um teste projectivo típico. De acordo com dados dos autores do teste, o mesmo somente pode ser administrado a partir da idade do jardim de infância.
Em primeiro lugar, deve ser examinada a capacidade cromática da criança a quem está a ser aplicado o teste. A valorização é relativamente multiforme. Numa primeira apreciação são fixadas, por meio de números, as cores principais dos quadrados coloridos. Na fase a seguir, são anotados síndromas cromáticos e características cromáticas, bem como a formação das pirâmides. O teste revelou-se útil para controlo da evolução, no âmbito de tratamentos psicoterapêuticos.
Diagnóstico psicológico miocinético (MKP): No decurso deste método, as pessoas a quem está a ser aplicado o teste devem fazer desenhos em condições definidas. É essencial que, entre as duas partes do teste, decorra um intervalo de uma semana. «As perturbações do equilíbrio psíquico e as perturbações do equilíbrio miocinético são duas manifestações extremas de um e do mesmo processo individual; por conseguinte, é possível, com base em observações do mesmo, tirar conclusões relativas a um estado, com referência às condições de equilíbrio do outro. As perturbações da tensão impulsiva psíquica podem manifestar-se ao nível do movimento muscular» (H. HILTMANN e K. HASEMANN citados por
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BRICKENKAMP). Com esta citação, fica bem descrito o conceito fundamental do processo. Faltam dados quanto à idade da criança a testar; também no que respeita à validação continuam por satisfazer os nossos desejos.
Teste de desenho de Wartegg (WZT): Uma vez que mal existem
elementos para a validação do teste e também não há dados sobre a sua confiança, embora seja aplicado, de bom grado, no âmbito clínico, vai ser feita uma breve referência às observações que lhe são particulares (TH. KOHLMANN, H. SEIDLER, A. Rm). A importância do teste de desenho de Wartegg como diagnóstico da psico-organicidade e da lesão cerebral foi verificada, de cada vez, em 30 crianças diagnosticadas em primeira linha ou como psiconeuróticas, ou com o diagnóstico preponderante de psicose orgânica. Os resultados do teste de Wartegg permitiram uma diferenciação diagnóstica suficiente, entre ambos os grupos. Há investigações feitas por W. SEHRINGER (1964) que possibilitam a aplicação do teste para diagnóstico diferencial de psicose, toxicomania e necessidade de ensino especial.
Teste de desenho da figura humana: Este teste constitui uma
configuração do teste «Draw-a-man» de GOODENOUGH, do ano de 1926. «Aquilo que este método pode contribuir para o teste de inteligência baseia-se na expressão gráfica da criança, como ela vê os homens e organiza o seu campo perceptivo» (R. BRICKENKAMP). A quantidade mensurável dos pormenores gráficos e de execução pode ser utilizada como parâmetro do desenvolvimento intelectual.
Tiveram êxito as experiências feitas por este processo não verbal, no âmbito das escolas especiais. Na extensa exposição de E. Koppitz: «A representação do homem nos desenhos infantis e a sua valorização psicológica», é feita também referência às experiências em crianças com lesão cerebral. As crianças saudáveis, quase sem excepções, a partir dos 6 anos de idade, desenham as mãos. Contudo, nos desenhos das crianças com lesão cerebral, as mãos aparecem significativamente com menor frequência. Também no que se refere à representação das outras extremidades, de peças de vestuário e outras características da configuração o resultado do teste aponta para diferenças nítidas, entre crianças saudáveis e com lesões cerebrais.
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O objectivo de todo o exame, com vista ao diagnóstico psicológico em crianças com lesão cerebral, é a representação, o mais ampla possível, da perturbação fundamental específica. Um tal psicograma possibilita um diagnóstico clínico-psicológico muito preciso, quando consegue levar à compreensão das perturbações do nível de inteligência, que muitas vezes se impõem de um modo excessivamente ligeiro, ou do desenvolvimento em geral.
O exame psicológico de uma criança com lesão cerebral deve, portanto, dar uma imagem complexa, a abranger várias dimensões, e que, por sua vez, é novamente uma parte daquilo que se entende por diagnóstico. Contudo, sem exame psicológico, não é hoje possível uma apreciação da criança com lesão cerebral. A psicologia tomouse uma parte integrante do nosso diagnóstico, que nos tem indicado o nível respectivo de desenvolvimento. Assim, e só assim, se deixam reconhecer e quantificar progressos mas também agravamentos. Só assim é possível fornecer aos- familiares uma interpretação, consideravelmente exacta, da perturbação do seu filho e avaliar os limites e possibilidades do desenvolvimento. Os resultados de todas as observações da criança com lesão cerebral dependem, em particular, da capacidade de contacto do examinador, que deve ter um grande poder de intuição e habilidade para lidar com crianças. Mesmo a criança com perturbações profundas possui ainda fortes capacidades de percepção afectiva, e a sua atitude e reacção para com o examinador são largamente determinadas por esses factores. Também a dependência do tempo, da disposição do dia, a atitude dos familiares, antes e durante a observação, determinam o rendimento obtido na observação. A objecção dos pais de que o seu filho, em casa, consegue realizar substancialmente mais do que ofereceu na situação de exame está muitas vezes de acordo, mas nem sempre. Contudo, não pode duvidar-se que a capacidade de contacto e a experiência do examinador são factores a incluir na apreciação dos resultados.
Capítulo 10
ENTREVISTA COM OS FAMILIARES
O resultado da observação deve terminar num diagnóstico, isto é, com base no exame clínico e psicológico deve ser apresentada aos familiares a situação do seu filho, uma tarefa cheia de dificuldades e responsabilidades. Afigura-se-nos necessário chamar a atenção para a importância dos primeiros contactos com os pais. É tão importante para os familiares esta primeira explicação da doença, sintomatologia e prognóstico que se nota, de um modo muito particular, quando ela é efectuada de uma maneira errada. Antes de falar do problema com os pais o médico deve imaginar-se perante a situação de, logo após o nascimento de um filho seu, lhe ser apresentado o facto de ele ser doente, deficiente e de assim ter de o carregar por toda a vida. A gravidez com todas as esperanças, cuidados e esforços, o parto como uma carga extrema, quer física, quer psicológica, e agora, mais ou menos rápida e flagrante, a confrontação com a deficiência do filho! Mas, mesmo quando a deficiência é diagnosticada mais tarde, ou muito mais tarde, a primeira explicação é um acontecimento de significado existencial.
Sabemos, com base na experiência, que, entre o silêncio absoluto sobre a perturbação e o realismo crasso, francamente brutal, existem múltiplas possibilidades, que dependem largamente dos conhecimentos do médico relativamente ao respectivo quadro clínico, ao seu prognóstico e às possibilidades de desenvolvimento e de terapia. A intuição psicológica e a consciência da responsabilidade do médico são os pressupostos para desempenhar suficientemente, tanto como médico como homem, esta tarefa que faz parte daquilo
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que, no trabalho do médico, é mais difícil. O médico que não se sente em situação de assim actuar devia abandonar esta profissão. Infelizmente, continua a haver hoje ainda médicos que não conseguem expor os problemas de modo a que sejam apresentados aos pais, com clareza e precisão, a certeza do diagnóstico, a sinceridade do prognóstico e o conhecimento sobre as possibilidades terapêuticas.
O método de calar e aceitar a doença de modo a que os pais, mais cedo ou mais tarde, a reconheçam espontaneamente, afigura-se primeiramente talvez confortável, no entanto, mais tarde, conduz forçosamente à censura proferida pelos pais: «Por que razão não nos esclareceram correctamente, talvez naquela altura fosse possível um tratamento?»
Abstraindo disso, está errado querer ultrapassar, com a autoridade médica, os cuidados da mãe, o pressentimento intuitivo de que «alguma coisa pode não estar certa», e com as palavras de consolação que ainda hoje se ouvem dizer: «Isto vai passar por si», ou «Na puberdade, depois fica tudo em ordem».
De acordo com as nossas experiências, poucas pessoas se deixam iludir acerca da realidade. Para a maior parte dos pais é essencialmente útil uma explicação clara e precisa, tanto mais que o desenvolvimento ulterior da criança com lesão cerebral confirma muito mais depressa o prognóstico realista. Arranjar desculpas, ou fazer esperar é, a maior parte das vezes, possível só por pouco tempo. O reconhecimento da realidade não aumenta, de modo nenhum, a confiança dos familiares em relação ao médico.
Contudo, deve ser feita referência àquele método que consiste em qualificar o futuro da criança como absolutamente sem esperança, cada esforço como um dispêndio de energia e apresentar-se, como a melhor solução, a entrega da mesma a uma instituição.
Quem está familiarizado com as dificuldades do desenvolvimento da criança com lesão cerebral sabe que educação e tratamento adequados podem produzir resultados assombrosos. Só depois de se terem investido energias se obtêm progressos. Muitas crianças às quais foi negada, sem rodeios, a possibilidade de andar livremente, de falar e de aprender conseguiram, contudo, aprender a fazer isso, muito embora com enorme mobilização de todas as forças. Infelizmente, aqueles que anteriormente apresentaram um prognóstico
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absolutamente negativo, só raramente chegam a saber o que é que de facto se conseguiu fazer das crianças por eles duramente apreciadas. Portanto, quem não tiver uma longa experiência neste campo, deveria ter cuidado com o seu prognóstico. No mesmo, deve ter-se em consideração que a relação mãe-filho liberta forças, que excedem largamente aquilo que se crê poder exigir-se ao ser humano.
Para o desenvolvimento da criança com lesão cerebral, é absolutamente mau e prejudicial o conselho que se ouve, com frequência, não esforçar a criança deficiente, se possível não a irritar e, sob o lema «Multo amor e ternura», acarinhá-la apenas muito. Qualquer pessoa com experiência sabe (a maior parte das vezes os familiares reconhecem demasiado tarde a importância disso) que acarinhar demasiado uma criança com lesão cerebral é funesto para o seu futuro. Para uma educação consequente e enérgica é necessária, na verdade, uma quantidade de energia muito grande, que, contudo, somente é depois libertada, se existir um amor autêntico para com a criança. O mimo não deve ser automaticamente equiparado ao amor. Ceder à vontade da criança e aos seus desejos, deixar-se tiranizar é resignação. Para a interpretação do diagnóstico, é necessário não somente a descrição da sintomatologia mas também o esclarecimento das relações entre sintomas e comportamento, comportamento e desempenho, desempenho e capacidade de desempenho, ou seja, o que é que resultou da lesão orgânica do cérebro da criança. Faz também parte disso uma exposição do modo como estas perturbações do desenvolvimento actuam sobre o seu intelecto, o seu comportamento e sobre o meio que a cerca, isto é, em primeiro lugar, sobre a família e, como é que o desenvolvimento se pode conduzir, naqueles aspectos que têm que ser observados, quando a posição da criança dentro da família e da sociedade tem possibilidades de se aproximar da norma.
A primeira pergunta, e mais frequente, dos pais é a que respeita às possibilidades de desenvolvimento mental do seu filho. E é inteiramente compreensível que esta questão deva ser de particular importância, para os familiares. Dentro do círculo das formas de lesões cerebrais infantis, há numerosas doenças relativamente às quais, logo na primeira consulta, deve expor-se honestamente, e com precisão, que os limites do desenvolvimento estão cravados de um modo muito estreito e que não é possível atingir-se a norma.
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Contudo, deve acentuar-se que a força com que estão cravados os limites depende não apenas da extensão da lesão do cérebro, mas também da qualidade e da intensidade dos esforços desenvolvidos para com a criança.
A segunda questão posta ao médico é, a maior parte das vezes, aquela que se prende com a forma como as manifestações irão aparecer mais tarde, se, e em que medida, se notará «alguma coisa» na criança. Também aqui nos parece indispensável pôr claramente a realidade, mas, chamar também a atenção para as possibilidades de desenvolvimento, que também são aqui dadas pelo acompanhamento e educação. Para mencionar apenas um exemplo, uma criança mongolóide bem educada, calma, socialmente ajustada dá menos nas vistas, em público, do que uma criança com perturbações pós-encefalíticas, mimada e irritada que, aparentemente, se pode tomar por «normal».
A experiência mostra que esta primeira entrevista com os pais determina largamente a sua atitude para com a criança e, com isso, o seu destino, mas também as suas possibilidades de desenvolvimento. Se são fomentadas, ou enterradas possibilidades positivas
isso depende, portanto, de o médico encontrar as palavras certas, um esclarecimento preciso e a necessária intuição.
Capítulo 11
SINTOMAS E SINDROMAS
Continua a não haver ainda acordos internacionais sobre os fundamentos, em princípio válidos e obrigatórios, para a classificação e constituição de sindromas e grupos de síndromas. Com demasiada frequência, é apresentado um novo «sindroma» na literatura médica da especialidade, cuja denominação tem as suas origens exclusivamente numa determinada característica, ou num complexo de características, que, até agora, era muito pouco conhecido do examinador. A multiplicidade enorme de variantes fez lembrar, em muitos exemplos extremos, uma rotulagem sem critério. No seu trabalho, Sindromas clínicos, B. LEIBER propôs-se pôr uma ordem na quase já ilimitada multiplicidade de variantes. De acordo com P. LEIBER, o fundamento da apresentação de qualquer sindroma é a definição e conhecimento dos sintomas, a descrição e associação dos mesmos.
Contudo, numa primeira fase, é necessário descrever os sintomas principais, ou de fundo, com base nos quais pode ser efectuada a distribuição, ou seja a classificação dos vários quadros clínicos, por diferentes aspectos: primeiramente, de acordo com o momento da actuação e a natureza das causas mas, depois, com os sintomas de fundo, ou principais, ordenados segundo a respectiva relevância.
São estes sinais característicos, primeiramente dominantes, que figuram no primeiro plano do desenvolvimento clínico e psicológico e, quer isoladamente, quer combinados, produzem a impressão geral de um tipo comum de doentes. De acordo com a
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nossa experiência clínica, confirmaram-se os sete sintomas de fundo que se seguem:
1. Perturbações intelectuais
2. Dificuldades específicas de aprendizagem
3. Perturbações da motricidade
4. Convulsões
5. Perturbações sensoriais
6. Perturbações da fala
7. Perturbações do comportamento
É evidente, neste caso, que também dentro de um grupo deste tipo são possíveis inúmeras variantes qualitativas e quantitativas. Contudo, conforme pode deduzir-se após alguma reflexão, os efeitos sobre as áreas funcionais respectivamente atingidas e sobre a criança como um todo são de uma homogeneidade assombrosa. Raramente, quase se pode dizer nunca, está presente apenas um dos sintomas de fundo mencionados; a prática ensina que tem que se proceder a um exame com bastante pormenor, somente com a finalidade de, pelo menos, em variantes de intensidade ligeira, descobrir também outros sintomas de fundo. O melhor é considerar a classificação dos sindromas como modelo de uma associação logística do grau de manifestação do grupo principal de sintomas.
Também, ao tentar constituir-se um esquema de quadros clínicos separados, reconhece-se, imediatamente, que poucos há que deixam distinguir isoladamente um único sindroma. A maior parte deles apresenta uma combinação de vários sintomas, na qual estes não têm de modo nenhum que apresentar já manifestações no início da doença podendo, contudo, ter o seu aparecimento somente no decurso do desenvolvimento.
Como exemplo disso, é mencionada a enorme quantidade de doentes que sofrem primeiramente apenas de convulsões mas que, depois, com o decorrer do tempo, apresentam défice intelectual e perturbações comportamentais. Através da terapia anticonvulsivante desaparecem as crises, mas o sintoma de fundo original abre, daqui em diante, um outro caminho.
Que a combinação de todos os sete grupos de sintomas é frequente, revelam-no quadros clínicos tão diferentes como por exem-
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plo o mongolismo (síndroma de Down), ou a paralisia cerebral, onde é possível observar, naturalmente com intensidades muito variáveis, todos os sete grupos de sintomas desde o estrabismo, passando pelo eretismo, o atraso mental, as perturbações motoras, tipos de comportamento neurótico, até epilepsia.
Capítulo 12
MULTIDEFICIÊNCIA
A chamada multideficiência é hoje uma noção irrefutável. Embora, a maior parte das vezes, seja aplicada para a associação de deficiência física e mental, devia ser usada logicamente para todas as variantes do chamado sintoma de fundo. Por conseguinte, qualquer combinação de perturbações do movimento, do intelecto, da recepção sensorial, da fala, do comportamento, assim como a associação com epilepsia, deve ser considerada como multideficiência. Que, se nós considerássemos esta hipótese como base para a nossa classificação, praticamente a grande maioria das lesões cerebrais infantis deveria ser considerada como uma multideficiência parece-nos simplesmente lógico, se pensarmos que, quase todo o defeito no cérebro produz justamente efeitos em muitas áreas funcionais do sistema nervoso central, e o nosso diagnóstico, terapia e educação deve ser precisamente orientado para todas as áreas do organismo e da personalidade da criança.
Que a multideficiência não está sempre presente, logo no início da vida, mas que também se pode desenvolver somente no decurso do crescimento, é inteiramente compreensível, se pensarmos que, a partir de uma doença com origem cerebral, se pode desenvolver, no decorrer do ano, uni sindroma psico-orgânico, cujo modelo de comportamento deve ser considerado não só deficiência evidente, mas também perturbação do comportamento.
Está fora de questão que a combinação de todos os sintomas de fundo é frequente, e há uma série de quadros clínicos em que é esse o caso. Aqui, é de referir que a gravidade da lesão depende tanto do
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momento da sua origem como da dimensão das noxas que a provocam. A deficiência isolada está cada vez mais posta em segundoplano, e instituições que, ainda há pouco tempo, com rigor cuidadosoe ambíguo, zelavam por receber só crianças com deficiências físicas,só crianças cegas, só crianças com deficiências de fala, ou da audição reconheceram tarde, demasiado tarde, a tendência para a deficiência múltipla. Quando, ainda há poucos anos, se chamou a atenção que se deveria e iria efectuar uma nova orientação, tanto metódicacomo mental, isso foi considerado, na altura, simplesmente impossível.Contudo, se se analisar hoje a estrutura das instituições e se secomparar com a anterior, esta alteração revela-se mais que evidente.A seguir, gostaríamos de referir, e tratar com pormenor, quadrosclínicos que são considerados, neste sentido, como multideficiências.
12.1 SINDROMA DE DOWN (MONGOLISMO)
É difícil responder à pergunta sobre a noção a colocar entre parênteses. Sabemos que LANGDON DOWN, em 1966, descreveu o quadro clínico como «mongolian type of idiocy*» e, por conseguinte, fez a enganadora referência à raça mongólica, que irá permanecer por longo tempo juntamente com as palavras mongolismo, mongolóide até se encontrar, para esta doença, uma designação clara, com substantivo e adjectivo.
É pouco conhecido o facto de este quadro clínico ter sido já descrito em 1846, por E. SEQUIN.
Somos de opinião que não devia censurar-se ninguém pelo uso da palavra «mongolóide». Deviam muito antes ser criticados aqueles que, a maior parte das vezes irreflectida e indelicadamente, chegam ao grotesco ao tratarem a criança de «Mongi**», «Mongel» ou «Mongõlchen».
Foi já referido que, actualmente, as experiências da moderna investigação etiológica aumentam rapidamente. É referido aqui, só
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* Nota do Tradutor: Idiotia de tipo mongólico.
** Nota do Tradutor: Trata-se de diminutivos que foram mantidos conforme o original alemão.
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de uma maneira breve, que o efeito patogénico do cromossoma supra-numerário, devido à chamada não disjunção na 1. e 11. divisão meiótíca, se mantém. Aquilo que nós não sabemos ainda exactamente é aquilo que deve considerar-se como causa desta não disjunção.
Quanto à importância da idade do parto e da idade de concepção, temos dados como o esgotamento hormonal e perturbações hormonais. Relações entre concepção e gravidezes anteriores, ou interrupções de gravidez, podem ser tidas em conta, bem como certas predisposições genéticas fixas, que se podem herdar, no caso de existirem muitos sintomas parciais do sindroma de Down nos pais.
A anomalia cromossómica mais frequente, no sindroma de Down, é a chamada trissomia 21, na qual o cromossoma supra-numerário pertence ao grupo 21.
De acordo com as nossas experiências, é isso que se verifica em 94,2 por cento dos casos. 5,8 por cento pertencem à trissomia por transiocação. Neste caso, o cromossoma supranumerário patogénico está ligado a um outro cromossoma. Este tipo é de uma natureza particular na medida em que um portador fisicamente normal pode transmitir este cromossoma ao seu filho, o que conduz já ao sindroma de Down manifesto.
Observado muito raramente é o mongolismo-mosaico, em que, juntamente com associações de células com 47 cromossomas, se observam também outras com 46 cromossomas. Estes casos são relativamente favoráveis, sobretudo intelectualmente, ou seja, são de inteligência normal ou subnormal.
12.1.1 Sintomas
Distinguimos dois grupos de sintomas:
Sintomas obrigatórios:
1. Inclinação dos eixos palpebrais para fora e para cima
2. Língua grande e irregular
3. Mão pesada com dedos curtos e dedos mínimos arqueados
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4. Dedo do pé típico do mongolóide
5. Hipotonia da musculatura
6. Nariz curto
7. Atraso mental
Sintomas facultativos:
1. Braquicefalia
2. Epicanto
3. Prega palmar única
4. Deficiência cardíaca congénita
5. Musculatura do ouvido reduzida, pouco modelada
12.1.2 Graus de gravidade
A classificação por graus de gravidade faz-se de acordo com o QI eventualmente atingível, o desenvolvimento motor-estático, a motricidade grosseira e a motricidade fina, a recepção sensorial, a capacidade linguística, as condições circulatórias. A capacidade física e intelectual e, com isso também, o desenvolvimento pedagógico e social apresentam uma curva ampla. Conhecemos mongolóides que não vão além do nível de uma criança de dois anos, contudo, também outros que, no seu ano escolar, conseguem atingir um nível de 70. É sabido que, à medida que a idade avança, a discrepância entre a idade cronológica e a idade mental aumenta.
12.1.3 Prognóstico
O desenvolvimento da criança mongolóide prende-se com três condicionalismos:
1. Grau de gravidade da perturbação
2. Possibilidade de apoio pedagógico-terapêutico precoce e contínuo
3. Educação consequente na família
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Sabe-se que a criança pequena revela um carácter «engraçado». Isso leva francamente a um excesso de carinho que, depois, se torna, a maior parte das vezes, permanente. Por isso, a criança torna-se sistematicamente a tirana da família. Qualquer pessoa experiente no assunto sabe que o exercitar prematuro da motricidade, com o objectivo da aprendizagem da marcha livre, é uma condição importante para o desenvolvimento do comportamento e da fala. Quanto melhor a criança mongolóide conseguir falar, tanto mais ajustado e normal se tornará o seu comportamento social. Sabemos, também, que crianças mongolóides conseguem aprender a ler e a escrever, certamente sob condições de treino pedagógico-terapêutico persistente e individual.
As dificuldades maiores encontram-se na aritmética. Se há alguma coisa para contar (por exemplo os dedos), a operação faz-se sem problemas. Muitas crianças aprendem também a multiplicar e a dividir em pequenas operações.
De acordo com os dados por nós recolhidos só muito poucas aprendem regras de três.
Enquanto que os ditados foram relativamente bem executados por muitos, é para eles quase impossível fazer redacções. Ambas as deficiências apontam os limites do desenvolvimento pedagógico e profissional.
O facto de o número de crianças nascidas com mongolismo, mesmo com a introdução da amniocentese, não ter diminuído nas proporções com que se esperava revela que o problema não está ainda resolvido. Actualmente, a amniocentese de todas as grávidas, independentemente da idade e dos factores de risco, afigura-se ainda como uma utopia.
12.2 SINDROMA DA ESTEREOTIPIA (SINDROMA DA HIPERAMONIÉMIA) SEGUNDO A. RETT
No ano de 1967, A. RErr descreveu um sindroma que é muito fácil de reconhecer para aqueles que o vêem pela primeira vez, dado que, no estado vígil, são característicos padrões motores estereotipa-
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dos que decorrem sem intervalo, e o sindroma quadro é caracterizado por amimia ou hipomimia, alalia, hipertonia da musculatura, tremor da cabeça, marcha rígida «apráxica» que, de uma maneira típica, muda o peso total do corpo, no sentido da marcha do primata, de um pé para o outro.
Somente durante alguns meses se verifica um desenvolvimento geral. A partir dos 9 meses de vida, já é possível diagnosticar o sindroma.
Na Áustria, e em outros países como a Holanda, Alemanha e Japão foi comprovado que surge só em raparigas. Esta grave enfermidade acompanha-se geralmente de epilepsia e, provavelmente em segundo plano, com hiperamoniémia. A esperança de vida ultrapassa só raramente a puberdade. O modelo motor estereotipado é sempre determinado pelas mãos; o roçar, o meter uma na outra, passar sobre, até movimentos relativamente complicados e difíceis de imitar estão em primeiro plano. Os exames histológicos deram como resultado um processo inespecífico que não possibilita qualquer coordenação com um sindroma conhecido. Este quadro é de considerar como protótipo de uma multideficiência.
12.3 A CHAMADA ENCEFALOPATIA
Constituem um grande problema diagnóstico aquelas crianças em que, além do sintoma de fundo de atraso mental, nenhumas alterações características, de outra natureza, permitem um enquadramento dentro de um sindroma padrão conhecido. O atraso intelectual manifesta-se com maior ou menor intensidade, as dificuldades escolares situam-se sobretudo ao nível do pensamento abstracto, da incapacidade para cálculo mental, para exercícios livres, para pensamento lógico. O comportamento é dominado por uma surpreendente dose de subtileza, por uma incrível persistência nos próprios desejos, agressividade variável e, a maior partes das vezes, manifesta agitação psicomotora.
São de referir, como estando a maior parte das vezes na sua origem, cadeias causais de factores pré e perinatais agravantes.
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O estudo cromossómico é normal, o metabolismo é normal, o EEG a maior parte das vezes só é anormal de uma maneira moderada e difusa, o QI situa-se entre 50 e 80 (HAwix).
Este quadro representa cerca de 30 por cento das crianças que são examinadas e acompanhadas por nós. Pode também surgir numa família, sem que seja possível admitir qualquer factor hereditário.
À pergunta «O que é que tem esta criança» é, portanto, de responder, apenas, que não temos à nossa disposição qualquer conceito fixo e claramente definido quanto à sintomatologia. A palavra «encefalopatia» é manifestamente uma solução resultante do embaraço perante a necessidade de classificação nosológica.
Para concluir, vai ser ainda referida, com brevidade, uma série de sindromas em que estão em primeiro plano sintomas físicos visíveis, mas em que a debilidade mental é, sem dúvida, um sintoma obrigatório.
12.4 ANOMALIAS DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL
- Anencefalia
- Agenesia do corpo caloso
- Disrafia
- Porencefalia
12.4.1 Afecções degenerativas do sistema nervoso central
- Esclerose cerebral difusa
- Degenerescências cerebro-retinianas
- Esclerose tuberosa (M. Pringle)
- Neurofibromatose (V. Recklinghausen)
- Angiomatosis retinae et cerebelli (Hippel-Lindau)
- Sindroma de Sturge-Weber
- Sindroma de Louis-Bar
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- Doença de Hallevorden-Spatz
- Epilepsia mioclónica progressiva
12.4.2 Sindromas malformativos
- Sindroma de Apert
- Sindroma de Bonnevie-Ullrich
- Sindroma de Franceschetti
- Sindroma de Freeman-Scheldon
- Sindroma de Greig
- Sindroma de HMC
- Sindroma de Lange
- Sindroma de Marfan
- Sindroma de Moebius
- Sindroma de Prader-Willi
- Sindroma de Rubinstein
- Nanismo de Russel-Silver
- Sindroma trico-rino-falângico
- Sindroma de Wiedemann
- Sindroma de Williams-Beuren
12.4.3 Fetopatias
- Fetopatia rubeólica
- Fetopatia diabética
- Incompatibilidade de grupos sanguíneos
- Toxoplasmose congénita
- Infecção congénita por vírus citomegálico
- Fetopatias alcoólicas
12.4.4 Perturbações hereditárias do metabolismo
- Albinismo
- Alcaptonúria
- Arginino-succinúria
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- Histidinémia
- Hiperamoníémia (Rett)
- Galactosémía
- Mucopolissacaridose
- Mucoviscidose
- Fenilcetonúria
12.4.5 Aberrações cromossómicas
Aberrações numéricas:
- Trissomia 23 (Sindroma de Down)
- Trissomia 13 (Sindroma de Patau)
- Trissomia 18 (Sindroma de Edwards)
- XXY (Sindroma de Klinefelter)
- XXX (Sindroma do triplo X)
- XO (Sindroma de Turner)
- Mosaicismo
Aberrações estruturais:
- Delecção 4p (Sindroma de Wolf-Hirschhorn)
- Delecção 5p (Sindroma do grito do gato)
- Transiocações (Trissomias parciais e monossomias)
- Cromossomas anelares
Capítulo 13
O INTELECTO PERTURBADO
Não é tão fácil definir o conceito de «débil mental» como pode parecer à primeira vista. Deve ter-se em conta, sobretudo, que, ao lado dos estados de debilidade mental evidentes e diagnosticáveis logo na observação rudimentar, há uma multiplicidade de casos cuja apreciação é difícil, por se situarem nas zonas limite.
E. KRAEPELIN escreveu em 1915: «Sempre que se tenta fazer a caracterização de estados de debilidade mental congénita e adquirida, na primeira infância, fica-se sempre na posição pouco cómoda de não se poder partir de um critério uniforme. Afigura-se impossível um agrupamento inequívoco dos estados de debilidade mental; não é praticável uma classificação fundamentada simultaneamente na etiologia, no quadro clínico e, finalmente, numa base anatomopatológica adequada.»
Até hoje, praticamente nada se alterou nesta afirmação. É possível, ainda, admitirmos a oligofrenia (debilidade mental) em primeiro lugar como sintoma e não como quadro clínico.
Pondo o assunto com rigor científico, as dificuldades começam logo na forma habitual da definição de quociente de inteligência, como relação entre a idade cronológica e a idade mental. Esta relação é plausível em crianças mas, como considerá-la se se tratar de jovens, ou mesmo de adultos?
O mais tardar nessa altura põem-se problemas de metodologia. Nos adultos, em vez da idade cronológica real deve apresentar-se um valor fictício convencionado, isto é, o termo teórico postulado do desenvolvimento intelectual.. Contudo, o momento desse termo não seria, de modo nenhum, estabelecido empiricamente, se houvesse
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igualdade de opiniões. L. S. PENROSE admite 14,5 anos, G. EWALD 18 a 21 anos.
Contudo, como é que se compreende a noção de «inteligência» se se definir a mesma como a definiu um americano desconhecido, que entendia que «inteligência é aquilo de que o teste de inteligência carece».
Justamente na questão sobre as deficiências intelectuais afigura-se, oportuna a definição de K. JASPERS: «Chamamos inteligência ao conjunto de todas as vocações, de todos os talentos, de todos os instrumentos que podem servir para quaisquer realizações, na adaptação às tarefas da vida. Ao conjunto das relações inteligíveis, particularmente dos valores e aspirações, da vontade chamamos personalidade. Inteligência e personalidade continuam a ser, para nós, conceitos com elevado grau de obscuridade.»
O atraso mental, independentemente da sua causalidade, deve ser entendido, em primeiro lugar, como perturbação da inteligência muito embora nós estejamos, naturalmente, conscientes das dificuldades em definir a inteligência de um modo suficiente e válido.
Contudo, agora temos necessidade de definições, precisamos de uma escala de medidas, para podermos fazer uma distinção gradual dentro das deficiências intelectuais. Isto é imprescindível, dado que os dois grupos «normal» versus «intelectualmente atrasado» não existem já nesta forma peremptória. As transições são suaves. Torna-se necessária a construção de uma escala diferenciada porque a questão da etiologia, em muitos quadros, continuará sem resposta.
De acordo com L. S. PENROSE, pelo menos, até 3 por cento de todas as crianças na escolaridade obrigatória são débeis mentais; contudo, apenas em pouco mais de metade (57 por cento) se conseguem esclarecer as causas de um modo plausível, a parte restante consiste em formas de debilidade mental de génese desconhecida.
A classificação tradicional das formas de debilidade mental com referência à sua origem faz-se em três grupos:
Fornias primárias, hereditárias endógenas: Pertencem a este gripo as doenças com hereditariedade conhecida; mutações cromossómicas como, por exemplo, no mongolismo.
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Formas secundárias, exógenas, condicionadas pelo meio ambiente: Incluem-se aqui perturbações do desenvolvimento intra-uterino, doenças específicas, infecções, lesões cerebrais na primeira infância, entre outras.
Formas com génese desconhecida, com influências desconhecidas quer do genótipo quer do meio ambiente. Perante esta classificação, naturalmente, põe-se de novo a questão da incidência. Os dados referentes à incidência não são, de modo nenhum, uniformes na literatura, pelo contrário, variam muito.
AutoresPrimáriaSecundáriaDesconhecidaTredgold, 192980%20%Larsen, 193176%24%-Penrose, 193329%9%62%Penrose, 196637%20%43%(Causas da debilidade mental: classificação tradicional segundo L. S. PENROSE, 1970).
E. ZERBIN-RUDIN define assim as formas de debilidade idiopática: «Se não for perceptível nenhuma lesão exógena, nenhuma doença de fundo determinada e nenhum resultado de exame com caracteres morfológicos, bioquímicos, metabólicos ou cromossómicos o caso em questão inclui-se no grupo idiopático.»
Classificação segundo o grau de gravidade do atraso mental: Os olígofrénicos são subdivididos, de acordo com o nível do quociente de inteligência, em débeis (pouco dotados), imbecis, idiotas; contudo, deve a esse respeito ser chamada a atenção para o facto de, na literatura internacional, poderem surgir equívocos na terminologia. Assim, nas obras inglesas, a expressão «high-grade mental deficiency*» não significa, de modo nenhum, uma redução acentuada da capacidade, antes corresponde à debilidade mental ligeira.
-------------------
* Nota do tradutor: Deficiência mental de grau elevado.
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Segundo L. S. PENROSE, baseado em E. ZERBIN-RÜDIN, a tabela
que se segue traduz os termini dos níveis de debilidade mental específicos:
Grau
debilidade
mentalAlemanhaInglaterraU.S.A.FrançaQILigeiraDebilitdtHigh-gradeMoronDébile50-70MédiaImbezillitatfeeble-minded
or simpleton
Medium orImbecileImbécile20-49GraveIdiotielow-grade
Imbecile
Low-gradeIdiotIdiot0-19Todos osIdiotFeeble-Arriéré,0-70Schwaschsinn, Mental sub-grausOligophrenie normalitymindedOligophrénie
Uma outra classificação, que se tem mostrado útil na prática, consiste na subdivisão em dois grupos: debilidade mental ligeira e profunda; a linha fictícia de demarcação situa-se num quociente de inteligência de 50.
E. ZERBIN-RUDIN, de acordo com L. S. PENROSE, faz o esquema
simplificado que se segue:
Grau de debilidade mentalLigeiro (Grupo I)Profundo (Grupo 2)Nível de inteligênciaQI à volta de 57, débilQI à volta de 17Caracterização de acordoPouco dotado, ligeiraImbecil, idiotacom o grau de gravidadedebilidade mentalgrave debilidadementalCaracterização clínicaFisiológico, aclínico,Patológico, clíniconão complicado, idiopático, outrosFrequência médiaFrequentemente: 2%Raramente: 0,25%Frequência entreRaramente: 3%Frequentemente: 25%internados
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Como raramente acontece noutro tipo de problemas, na questão da deficiência intelectual, está sempre em primeiro plano a relação de factores genéticos e ambienciais. A influência sem dúvida exercida pelo genótipo é bem confirmada pela investigação gemelar. Gémeos idênticos (uniovulares), que crescem em meios separados, apresentam muito mais analogias mútuas da sua inteligência do que se observa em bivitelinos que cresceram no mesmo meio ambiente. Contudo, em cada caso isoladamente, é difícil especificar a proporção de participação genética e ambiencial. Mais adiante, no exemplo das crianças deficientes auditivas, é referido em que medida o meio ambiente pode ter um efeito adverso, mesmo extremamente prejudicial.
Capítulo 14
DISFUNÇÕES NAS CAPACIDADES DE APRENDIZAGEM
Este conceito, como sinónimo de fraquezas ou perturbações circunscritas a unidades funcionais isoladas, combinadas dentro de uma área funcional complexa (R. LEMPP), tem hoje já numerosas aplicações e permite compreender que alterações e fraquezas isoladas, na apreensão e assimilação cognitivas do meio ambiente, possam conduzir a disfunções e, em segunda linha também, a perturbações da relação com o meio ambiente.
A disfunção, justamente como perturbação parcial da capacidade cognitiva, ou mesmo o desvio por excesso, como aumentos de algumas capacidades, pode ir da superdotação à subdotação ainda dentro do normal e manifestar-se como deficiência em várias áreas tais como: a apraxia, a agnosia, a acalculia e a afasia. Estes desvios estruturais fazem com que o meio ambiente seja sentido de outra maneira e que, também por isso, tanto a apreensão da realidade, tais como do meio ambiente em geral, numa criança em desenvolvimento, se tenha que distinguir, de um modo específico, da experiência dos adultos que a rodeiam.
Assim, as disfunções em várias áreas são uma chave para a compreensão não só de alterações do rendimento escolar, mas também de alterações comportamentais e neuroses, até mesmo de psicoses, em determinadas circunstâncias.
Esta explicação de uma concepção moderna de causa e efeito das disfunções nas capacidades cognitivas, como as refere R. LEMPP,
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leva-nos à constatação de que a perturbação numa área torna possível a perturbação de outras capacidades, e que simplesmente não pode e não deve ser já possível, sob o ponto de vista pedagógico e médico, designar de um modo global e total uma criança de «tola, preguiçosa, má, perversa, mal educada», etc.
A relevância do «núcleo de perturbação» e a determinação da disfunção primária e área predominantemente atingida devem ser consideradas como objectivo de diagnóstico precoce e da instituição de uma terapia precoce.
É compreensível que isto deva fazer parte de uma alteração do esquema, segundo o qual as crianças eram consideradas difíceis, lentas e perturbadas.
O desenvolvimento da investigação neste campo revela nitidamente quão incrivelmente foi descurado, até agora, um campo tão importante mas ao qual não foi dada atenção, quase se poderia dizer, foi desprezado pela psiquiatria, pediatria, neurologia e psicologia.
É indiscutível que na análise diagnóstica do caso particular, o significado das disfunções nas capacidades cognitivas, como estando na origem de perturbações do comportamento, ganha cada vez mais importância, e que quadros clínicos até agora definidos de uma maneira aparentemente clara devem ser considerados sob estes aspectos conforme é o caso do autismo da primeira infância, cuja classificação se sugere no âmbito das perturbações parciais da capacidade cognitiva bem como a dislexia, nas suas múltiplas variantes.
O conceito de disfunção das capacidades cognitivas é, antes de tudo, um esboço de trabalho na base do qual é necessária uma investigação ampla e pormenorizada e do qual, certamente, irá resultar o reconhecimento de que o homem é mais do que a soma das suas partes.
A classificação das dificuldades de aprendizagem por categorias não é simples; antes de tudo poder-se-iam admitir dois grandes grupos:
l. Perturbações da actividade lúdica e da aprendizagem
2. Todas as espécies de perturbações da socialização e perturbações do comportamento
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Se se fizer uma análise mais aprofundada, o conceito estreita-se e deixa sobressair quatro espécies de dificuldades específicas da aprendizagem, com referência à área funcional:
Disfunções na área auditiva e perturbações da capacidade com predominância auditiva, da linguagem e fala;
Disfunções na percepção visual, frequentemente relacionadas com perturbações da motricidade fina e da motricidade global;
Perturbações das funções espaciais e disfunções na área táctill-quinestésica
Perturbação do comando automático ou perturbação da evolução.
Consideremos que, neste esquema, também podem ser incluídas as múltiplas formas de dislexia, pelo que é de admitir também que é possível a coincidência de duas ou mais disfunções ou dificuldades específicas de aprendizagem.
É de salientar que as dificuldades específicas de aprendizagem não são, de modo nenhum, de admitir apenas em relação aos normalmente dotados, mas que têm também a sua expressão no âmbito da chamada debilidade mental, como é certamente o caso da dislexia e ainda do autismo.
Se, hoje, crianças com deficiência mental ainda não são observadas com pormenor, exactidão e «dedicação», é provavelmente com o fundamento de que com a observação dos normalmente dotados já se tem suficientemente que fazer e, nestes, também, as hipóteses de êxito com o diagnóstico e terapia precoces são maiores.
Contudo, e só para dar mais um exemplo, se se pensar na incidência das perturbações auditivas nas crianças mongolóides e nas consequências disso, para o seu desenvolvimento linguístico, então ver-se-á, aqui, um longo campo de esforços médico-psicológicos.
Naturalmente, para nos determos no exemplo do sindroma de Down, a debilidade mental condicionada por factores genéticos é um campo diferente; contudo, o número de mongolóides disléxicos não é pequeno e, dado que também há muitos mongolóides não disléxicos. o problema das dificuldades específicas da aprendizagem parece ser para considerar no sentido de Nestroys «no rés-do-chão e no primeiro andar», mesmo na cave da hierarquia social. É de supor que a base
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etiológica de muitos défices específicos de aprendizagem é, ou pode ser, de natureza complexa.
Que o sindroma psíquico com origem cerebral, no sentido de G. GOLLNrrZ, pode ser considerado como lesão cerebral é uma ideia que tem de se partilhar. Contudo, do mesmo modo, deve saber-se e reconhecer-se que factores ambienciais desfavoráveis acentuam negativamente a sintomatologia; um ambiente cheio de compreensão e harmonia pode, pelo contrário, melhorar muito. Os factores ambienciais podem contribuir, portanto, para a descompensação, mas também para a compensação.
Negar ou menosprezar a lesão cerebral pode não ser importante, desde que se exija dos familiares a máxima colaboração na educação, formação e tratamento dos seus filhos. Só quando são reconhecidas e compreendidas a excessiva exigência, ou a falta de exigência, portanto, quando os familiares conhecem as possibilidades e os limites, se tomam parceiros no apoio à criança e parceiros também na superação das suas dificuldades de aprendizagem.
14.1 DISLEXIA
Dentro do grupo lato das dificuldades específicas de aprendizagem, queremos salientar particularmente o quadro da dislexia. A noção de «dislexia» é definida por um complexo de sintomas relativamente homogéneo. No seu estudo «Há um sindroma da dislexia», A. RErr, em 1976, alarga a definição de MARIA LINDER: «Entende-se por dislexia uma fraqueza especial e fora do quadro das restantes funções, na aprendizagem da leitura (e, indirectamente também, na ortografia autónoma) juntamente com uma inteligência intacta, ou relativamente boa, em relação à capacidade de leitura».
A. RErr: «Esta definição já não é válida, em parte, dado que nós conseguimos demonstrar, num grande número de doentes, que a dislexia, no sentido de MARIA LINDER, não está ligada apenas ao quociente de inteligência dentro da inteligência normal, mas também pode ocorrer em crianças com défice intelectual, contanto que consigam ler e escrever, ainda que da maneira mais simples!»
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Os sintomas fundamentais da dislexia são dados pelas dificuldades que surgem na leitura, pela troca e deturpação na ortografia e ainda pela omissão de letras e números.
Não existe certamente «a» dislexia, provavelmente existem já várias dislexias, conforme é acentuado por LoTrE-SCHENK-DANZINGER. E, com toda a certeza, há também várias causas, ou complexos de causas. Temos que admitir que a deficiente percepção acústica verbal pode ter como causas possíveis perturbações auditivas mínimas (dislexia acústica). É este o caso das crianças cuja dislexia não é diagnosticável na cópia. Pensamos também numa dislexia condicionada por problemas visuais, que conduz a perturbações na percepção visual das letras, ou dos números. Frequentemente, são também prescritos, erradamente, óculos nestas formas de dislexia. Particularmente grave é, naturalmente, a combinação de vários factores, sobretudo a combinação com dificuldades no pequeno filme e no grafismo. Chamámos já a atenção para as graves
consequêncías que pode haver, para o desenvolvimento da criança, quando esquerdinos são treinados no uso da mão direita «violando», assim, o seu canhotísmo. O quadro que se segue revela a percentagem, acentuadamente elevada, de esquerdinos em crianças que foram apresentadas com dificuldades escolares.
DoentesPaismãesGrupo de
ReferênciaProfessoresDextros20,19%33,66%41,15%40,5%78%Esquerdinos71,97%47,08%32,26%23,00%2%Esquerdinos a escrever c/ a mão esquerda 14,02%26,11%6,38%17,15%Esquerdinos a escrever com a mão direita57,95%20,97%25,88%5,85%2%Ambidextros5,22%14,71%12,88%26,41%17%Sem classificação2,61%4,55%13,72%10,09%3%
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Agora, seria sem dúvida muito fácil equiparar dislexia e canhotismo, porém, os resultados das observações, bem como as próprias experiências, apontam numa outra direcção: precisamente que a causa da dislexia pode estar relacionada com o treino da manipulação. «Se se partir da ideia de que o esquerdino, na sua adaptação ao nosso mundo orientado para a dextralidade, tem que apagar, sem querer, o seu esquema físico espontâneo e tem que aceitar um contrário a esse, então a dislexia, vista dessa maneira, é justamente uma consequência da adptação perturbada, com todos os sinais disso, isto é erros, insegurança, medo, elevado consumo de energia com cansaço precoce. Os cadernos escolares dos disléxicos deixam reconhecer claramente este processo de cansaço.» (A. RErr, 1978).
Se admitíssemos um sindroma da dislexia, o que devia ser permitido, pelo menos como hipótese de trabalho, seria possível observar os seguintes sintomas, muitas vezes combinados uns com os outros:
Âmbito pedagógico:
Dificuldades na leitura e na ortografia, tanto no que se refere às letras como aos números, dependentes de:
Deficiente estruturação espacial, dificuldades de articulação, dificuldades de diferenciação
Disgrafia e disortografia
Oscilações acentuadas no rendimento escolar
Elevada dispersão de atenção
Perturbações da concentração
Cansaço rápido
Dificuldade de aprendizagem
Âmbito psicológico:
Discrepância, acima da média, entre a parte verbal e a parte de realização no HAWIK;
Pré-disposição para a reacção neurótica;
Ansiedade nos trabalhos de leitura e de ortografia;
Compensação do comportamento escolar através de:
Tendência para agressividade e para a depressão;
Tendência para exibição («Fazer de bobo»);
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Aversão à escola;
Fuga no âmbito das próprias possibilidades de realização.
Âmbito fisiológico:
1. Agitação psicomotora
2. Hípercinésia
3. Adiadococínésia ou diadococinésia
4. Sudação acentuada
5. EEG patológico, ligeiramente difuso
6. Tiques
É de notar em que medida os sintomas de natureza física, psicológica e pedagógica aqui enumerados, estão de acordo com os sintomas apresentados no âmbito da disfunção cerebral mínima. É natural concluir-se que a dislexia pode fazer parte do quadro de uma disfunção cerebral mínima.
O disléxico intelectualmente bem dotado, com grandes dificuldades e no quadro quase inseparável de uma pré-disposição, mais ou menos acentuada, para a reacção neurótica, irá manifestar-se, mais cedo ou mais tarde, com as dificuldades de aprendizagem. Mas, quanto menor for a capacidade intelectual de fundo, e também quanto menor for o apoio social e pedagógico, tanto mais rapidamente a dislexia se converterá num factor social, isto é, se tomará depois uma possível causa de desapontamento social. Por esse motivo, a dislexia, ao lado da importância pedagógica e psicológica, tem merecido grande destaque político-social.
14.2 A DISLEXIA NAS CRIANÇAS COM ATRASO MENTAL
É do conhecimento geral que a capacidade de aprendizagem das crianças com lesão cerebral é determinada por uma quantidade de factores. Nos últimos anos tem-se demonstrado, de unia maneira crescente, que a tão «moderna» dislexia (dificuldade na leitura e na ortografia) que, inicialmente se pensava existir somente em crianças
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normalmente dotadas, pode desempenhar também o seu papel em crianças mentalmente afectadas; mas, e isto deve ser dito, é um papel nocivo, uma vez que o atraso intelectual juntamente com a dislexia reduzem enormemente a motivação para a aprendizagem e, desse modo, a capacidade de aprendizagem. Devido à existência de uma dificuldade específica de aprendizagem, o nível intelectual teoricamente atingível é consideravelmente reduzido logo de princípio. Surge, assim, uma carga adicional, cujas consequências futuras podem apresentar efeito desfavorável.
Naturalmente, aqui, é de apresentar em primeiro lugar dislexia e capacidade de leitura: se uma criança com atraso mental conseguir ler e escrever apenas de uma maneira rudimentar, podem apresentar-se sintomas disléxicos que são de considerar, no sentido de MARIA UNDER, como défice específico que fica fora do quadro das restantes disfunções.
Se na criança intelectualmente normal a dislexia parece quase acrescentada, como um défice específico, também isso se aplica à criança com atraso mental. É de esclarecer, aliás, que na observação que efectuámos em crianças da escola especial geral (escolas na R.F.A. para crianças com dificuldades de aprendizagem) e, em escolas para deficientes profundos (escolas na R.F.A. para crianças com perturbações mentais), encontrámos uma percentagem relativamente constante de crianças com sintomas disléxicos, face a face com uma percentagem, do mesmo modo constante, de crianças que não apresentam estes sintomas.
Número totalI
N=111II
N=128Não verificável631Verificável10597Sem dificuldades5631Na leitura e na ortografia2619Apenas na leitura819Apenas na ortografia71 1Não esclarecidos817I. Refere-se a alunos da escola especial geral
II. Refere-se a alunos da escola especial para deficientes profundos
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As crianças observadas em ambos os grupos pertencem a escolas da freguesia de Viena e têm idades compreendidas entre os 7-16 anos; 1.'-7.' anos de escolaridade.
O «acrescentado» na essência da dislexia nas crianças deficientes só difere, em termos de percentagem, das crianças intelectualmente normais.
Chegados a este ponto, tem que obrigatoriamente ser posta a questão daquilo que, sob o ponto de vista pedagógico, são de considerar sintomas disléxicos. Na resposta a esta questão não temos naturalmente dúvidas em aplicar uma fórmula muito simples, talvez demasiado simples. Contudo, somos obrigados a responder com uma pergunta: o que é que faz com que uma criança com atraso mental possa soletrar uma palavra com perfeição, rapidez e com certa satisfação, mas que não esteja em condições de ler uma palavra, enquanto que o seu companheiro de carteira, com um quociente de inteligência comparavelmente semelhante e com a mesma deficiência, não tem qualquer dificuldade nisso?
O que é que se passa quando uma criança, com uma certa sequência, troca ei com ie, b com d, b com p bem como 23 com 32, enquanto que o seu companheiro comete estes erros talvez apenas no início da actividade da leitura e depois os perde rapidamente? Não resultarão eles talvez da lesão organo-encefálica e da diminuição da capacidade mental daí resultante? Contudo, como é que crianças, com atraso mental disléxicas através dos métodos de treino, adaptados a crianças intelectualmente normais, experimentam uma melhoria nítida da sua sintomatologia disléxica? Será portanto a dislexia uma prerrogativa da inteligência? Será ela no atraso intelectual, pelo contrário, simples lentidão? Onde estão os limites do normal? Com que quociente de inteligência já não se pode portanto ser disléxico? Quem fixa estes limites?
Não conseguimos aceitar esta opinião dado que, no contacto com milhares de crianças com atraso intelectual, no âmbito de um acompanhamento regular fundamentalmente físico, e que foram examinadas no aspecto pediátrico e neuropsiquiátrico, testes psicológicos de controlo, EEG, há muitos anos que, por princípio, observamos também os seus cadernos escolares, desenhos e trabalhos práticos. Foram tomados em consideração, por princípio, todos os trabalhos feitos, desde o último controlo.
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A informação colhida através destes trabalhos abriu essencialmente perspectivas não só quanto ao estado e ao desenvolvimento da criança, mas também quanto à sua posição na escola e à sua relação com o professor. Não deixa de ser interessante, nesse aspecto, a possibilidade de, desse modo, se verificar se o professor reconhece a especificidade da deficiência, como é que ele a aprecia, como é que ele, enfim, compreende e avalia os problemas disléxicos dos seus alunos.
Em princípio, o contacto que procurámos com o professor, ou com o educador, leva ou à colaboração construtiva no sentido da autêntica pedagogia terapêutica, ou ao receio da ingerência injustificada na área pedagógica. Contudo, verifica-se que a grande maioria dos professores e educadores procura a colaboração. Não se trata de uma colaboração que se procura como último recurso uma vez que, no contacto com o médico, portanto num trabalho em equipa com crianças deficientes, é mais eficaz a informação dos pais, e as medidas a serem tomadas pelos pais tornam-se também mais evidentes, em consequência de uma apreciação mais completa do seu filho.
Num processo desta natureza o termo «pedagogia terapêutica» é portanto amplo e abrange, sem estabelecer prioridades, tarefas do âmbito médico, pedagógico e psicológico.
Se se admitir que a dislexia é um fenómeno adicional que ocorre, portanto, quer em crianças intelectualmente normais, quer em crianças atrasadas, deveria ser encontrado, para isso, logicamente um denominador comum, isto é, um factor independente da inteligência. Seria insensato pensar que se poderia tratar de um factor universalmente válido, aplicável portanto de um modo generalizado.
Contudo, se pensarmos em todos os factores causais que foram postos em relevo pela investigação da dislexia héctica, verificaremos que, à semelhança da idade avançada da mãe (ou também da idade avançada do pai) no que se refere à etiologia do sindroma de Down, o canhotismo da criança disléxica continua a ser um fenómeno com uma frequência digna de nota, facto para o qual foi, desde muito cedo, chamada a atenção.
A ideia da relação entre dislexia e lateralidade esquerda é fortemente combatida com o argumento de que também existem dextros disléxicos.
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Também aqui se põem várias questões; uma deveria ser formulada da seguinte maneira: conhecemos hoje já critérios, indiscutivelmente seguros, para as provas da lateralidade ou não terá cada um o seu próprio método, que aplica e interpreta? Não é possível que as diferenças, também grandes nos processos de verificação, resultem em diferenças demasiado grandes de apreciação dos próprios resultados a que se chegou? O humano, o demasiado humano desempenha aqui sem dúvida o seu papel. Porém, as referências da literatura parecem-nos de peso suficiente para se estudar esta questão.
A segunda questão é a seguinte: Se se tratar de uma criança disléxica inequivocamente dextra - que razões estão então na base da dislexia? A este respeito há certamente muitas respostas das quais, contudo, em nossa opinião, nenhuma seria tão conveniente que pudesse invalidar a relação da lateralidade esquerda e das dificuldades dos esquerdinos com o mundo orientado para o dextro, no que se refere à leitura, escrita, condução automóvel, etc.
Uma outra questão é a da génese políetiológica, e aqui põe-se francamente um espectro de pergunta que aponta, como causas possíveis, desde a hereditariedade da dislexia (porque não também da lateralidade esquerda), até à leitura natural da criança em idade pré-escolar.
Perguntas em suspenso, portanto, para as quais se dirige o nosso pensamento. Que resposta podemos dar quanto à relação entre dislexia e lateralidade esquerda? Estamos de acordo com os investigadores no campo da lateralidade esquerda e dislexia que têm identificado, empiricamente, um desvio comum entre a lateralidade esquerda e a dislexia, na prática clínico-psicológica.
Contudo, esta relação entre ambos os fenómenos torna-se tanto mais perceptível quanto mais a idade avança. Na idade escolar, dos seis até aos dez anos, estatisticamente, esta relação só dificilmente se consegue demonstrar. Isto é motivado pelo facto de a criança com lesão cerebral, esquerdina, vir a sofrer de uma perturbação da dominância uma vez que, quase sempre, foi treinada para escrever com a mão direita. Nestas etapas do desenvolvimento não é fácil. muitas vezes, na criança com perturbação do desenvolvimento, distinguira verdadeira dificuldade na leitura da perturbação, na leitura condicionada pela subdotação intelectual. Verifica-se uma fusão da dislexia
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com a capacidade intelectual perturbada, na sequência do processo de aprendizagem da leitura.
Só mais tarde, por volta dos onze anos, a dislexia se manifesta com nitidez. Contudo, nas crianças com atraso mental e nos jovens com baixo quociente de inteligência, encontramos muitos casos que, apesar de tudo, aprendem a ler e a escrever com uma ortografia relativamente aceitável. O esquerdino com lesão cerebral, treinado no uso da mão direita, consegue isso com bastante mais dificuldade; aprende a ler apenas de um modo muito restrito. Em consequência disso, a relação demonstrável estatisticamente entre o grau de lateralidade esquerdo e o grau de dislexia é um pouco mais nítida.
Ao considerarem-se os resultados da análise das relações entre o canhotismo e a dificuldade na leitura, torna-se também evidente que a dislexia está relacionada mais claramente com os graus ligeiros do que com os graus extremos de canhotismo. Neste ponto, vemos nitidamente o efeito da perturbação da dominância na origem da dislexia.
Uma vez que, não só com base nas confirmações anamnésicas, como nos longos estudos sobre a hereditariedade, somos levados a pensar que o canhotismo pode ser hereditário e, dado que muitos autores afirmam o mesmo relativamente à dislexia, vemos, na ocorrência simultânea de canhotismo e de dislexia, também uma possibilidade de desvio de carácter hereditário.
Embora o esquerdino, treinado no sentido de escrever com a mão direita, tenha grandes problemas na escrita, devidos a problemas na motricidade fina da mão, o que escreve com a mão esquerda tem também dificuldades pois tem que escrever e ler "contra o traçado".
De acordo com as nossas experiências é possível fazer duas afirmações:
1. A dislexia ocorre, com mais frequência, em crianças com lesões cerebrais na primeira infância, ou seja com perturbações funcionais (em prematuros e crianças após anóxia durante o parto) do que em crianças com anamnese normal.
Será um acaso o facto de a percentagem de esquerdinos, de acordo com tais anamneses, ser também mais elevada?
2. Uma dislexia profunda pode conduzir a perturbações neuróticas e neurovegetativas profundas. Perturbações comportamen-
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tais de natureza extrema levam a pensar no quadro de um sindroma psíquico exógeno na primeira infância.
Seria insensato relacionar a dislexia apenas com o canhotismo. Do mesmo modo, seria também insensato considerar apenas os sintomas mais frequentes e mais conhecidos da dificuldade na leitura, da reversão e da inversão. A dislexia contém uma quantidade de fenómenos ópticos, acústicos e gráficos cujas manifestações são susceptíveis de oscilações temporárias de intensidade. Muitas vezes, basta apenas o poder de concentração para combater os erros, quer dizer, enquanto a criança ainda está descansada, vive num clima calmo de aprendizagem, ou seja, está no início do trabalho diário de leitura e escrita. Quanto maior é o consumo de energia, tanto maior é o número de erros. As oscilações espectaculares do rendimento dos disléxicos são típicas. A nós parece-nos que o comportamento das crianças disléxicos, assim como das crianças com atraso mental, é um problema particularmente importante. É provocado pelo fracasso na mais importante área de aprendizagem, pela sensação de incompreensão, de resignação e pelas inúmeras tentativas de obter sucesso noutros domínios, prestígio pessoal, mesmo pela negativa, se necessário for.
Todos os problemas aqui referidos podem atingir tanto as crianças normalmente dotadas, como as menos dotadas, e alunos com atraso intelectual. Não pode, por isso, nunca afirmar-se que a dislexia não tem qualquer papel nas nossas escolas especiais. O seu papel é muito mais considerável do que pensam muitos pedagogos; contudo, conforme já foi referido, é muito mais difícil de diagnosticar pedagogicamente, uma vez que está muitas vezes demasiado encoberta, nos seus componentes ópticos e acústicos, pelo sintoma fundamental. O professor experiente, no entanto, reconhecerá a discrepância entre o potencial pedagógico ainda existente, mesmo em crianças atrasadas, e o seu rendimento na leitura e na escrita, e tentará vencê-la.
Capítulo 15
A DISFUNÇÃO CEREBRAL MÍNIMA
Nunca, como hoje, foi tão evidente a importância da conclusão de estudos, reconhecidos oficialmente, para a vida futura, para a integração social e profissional. Numa altura em que é dado tanto relevo ao princípio do rendimento, em que o posto de trabalho seguro está ligado, a maior parte das vezes, essencialmente à formação profissional e, por conseguinte, depende de provas, não há muitas possibilidades para alunos especiais que, sem provas finais profissionalmente relevantes, saíram da escola já demasiado tarde. Não é necessário ser profeta para fazer um prognóstico da sua vida futura: operário com ou sem preparação - operário auxiliar - operário de ocasião que salta de emprego em emprego, desempregado - decadência social - marginalização - criminalidade.
Será excedida, com estes exemplos extremos, uma cadeia causal fixada pelo destino?
Mesmo no actual sistema de ensino as crianças são demasiadas vezes empurradas da escola normal para a escola especial, sem que, antes disso, tenham sido empreendidas todas as tentativas possíveis de fazer uma análise das causas das anomalias da criança, para se poder dar um apoio eficaz. A necessidade, e também a eficácia de uma colaboração intensa entre pedagogos, psicólogos e neuropediatras devia ser indiscutível. O pedagogo experiente, interessado não fará hoje já uso de conceitos como «tolice», «preguiça», «má educação», «maldade», no mesmo sentido em que eram visados anteriormente, mesmo como formas de comportamento da própria responsabilidade da criança. O professor formula a sintomatologia do comportamento escolar e social de uma criança, a Fim de dar referências
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para observações profundas. Contudo, numa curva de descrição do aluno, na apreciação do aluno perante o círculo de pessoas em que a criança passa a sua vida diária, conceitos como tolo, preguiçoso, malicioso e mau geram discriminação, antipatia, preconceitos e podem, assim, acentuar consideravelmente as perturbações do comportamento observadas.
Os conhecimentos recentes acerca da função, modo de agir, e possibilidades de alteração do nosso sistema nervoso central permitem ao médico, com o auxilio dos dados fornecidos, obter pontos de referência sobre as perturbações orgânicas possíveis.
Os processos de realimentação psicossomática, problemas familiares e de educação graves, consequências de crises epilépticas, estados pós-encefalíticos e ainda dificuldades específicas de aprendizagem, podem desencadear reacções psíquicas típicas, que fornececem elementos sobre a génese das anomalias comportamentais. Más notas, mau rendimento escolar, má adaptação à escola não devem ser resolvidos em primeiro lugar com o «não passar de classe», ou com a «mudança de escola». A aplicação irreflectida de tais medidas é apenas indicadora de ignorância e de comodismo, desde que não tenha sido dada resposta à questão do «porquê». Será que uma criança é somente hipercinética porque é «má», «irrequieta» e «travessa» ou «mal educada», ou tratar-se-á de uma agitação psicomotora de origem orgânica. Será que a criança se distrai por ser muito preguiçosa para acompanhar o ensino, ou será isso já a sintomatologia mínima manifesta de uma crise? Será que a criança gagueja apenas porque se lhe dá muito pouco tempo para falar, ou terá isso causas orgânicas ou psíquicas profundas? A designação de «disfunção cerebral mínima», como noção sumária na nomenclatura dos sindromas clínicos, não está, de modo nenhum, definida com a clareza que se poderia esperar da sua aplicação actualmente tão frequente. Há cerca de vinte anos que se parte do princípio de que crianças com dificuldades comportamentais e de aprendizagem são, em geral, qualificadas de crianças com lesão cerebral ligeira. Este postulado mereceu de H. F. PRECHTL uma análise crítica onde ele primeiramente censura a leviandade com que é estabelecida a relação entre alterações do comportamento (ligeiras perturbações da coordenação motora, dificuldades de aprendizagem, hipercinésias, entre outras) e o diagnóstico da «lesão cerebral ligeira». É interessante, no aspecto
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da história da ciência, que esta interacção causal foi demasiadas vezes aceite, no campo da ciência, dum modo pouco crítico com base em modelos metódicos deficientes dos autores publicados.
PRECHTL acentua, além disso, que uma tal relação só pode mais tarde ser de facto demonstrada se o exame neurológico corresponder às exigências, se portanto existirem novas técnicas de observação na neurologia do desenvolvimento.
Na Áustria, temos conduzido os nossos esforços de aperfeiçoamento profissional, particularmente no âmbito do ensino, com vista a uma melhor compreensão deste grupo de crianças-problema. Contudo, na prática, a questão da causalidade não está em primeiro plano, quando não se está interessado em descobrir possibilidades e vias para poder ajudar eficazmente crianças com anomalias do comportamento. Se bem que nós estejamos conscientes do facto de que o conceito de «disfunção cerebral mínima» nesta forma generalizada não seja sustentável, ele será, contudo, utilizado na nossa exposição. É do conhecimento geral e todos sabem o que é que se quer dizer com isso. Não pode também ser tarefa desta obra apresentar novas definições e noções. Para um breve resumo de cada uma das perturbações que são abrangidas pelo conceito de «disfunção cerebral mínima» gostaria de me servir da exposição que fizemos, no ano de 1973:
15.1 PERTURBAÇÕES MOTORAS
15.1.1 Agitação psicomotora
As crianças com este sintoma são, a maior parte das vezes, aquelas que dificultam ou tornam quase impossível ao professor o ensino numa classe ordenada e o conduzem, muitas vezes, até ao limite do domínio e da calma que, no aspecto pedagógico, lhe são exigidos. Como causas disso há várias possibilidades: perturbações durante o parto (por exemplo, anóxia) podem ser responsáveis pela agitação motora tardia. Também em crianças prematuras se verifica mais tarde este sintoma, com extrema frequência. Após meningite ou
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encefalite, esta forma de agitação psicomotora é quase sempre obrigatória.
Contudo, é estranho que o sintoma da agitação psicomotora surja com muita frequência isolado, que esta agitação represente a única, se bem que agravante, anomalia em crianças que, de resto, são inteligentes. Naturalmente que a agitação psicomotora pode e irá influenciar desfavoravelmente a carreira escolar ulterior da criança, enquanto ninguém exigir um acompanhamento e terapia adequados.
«Não é verdade que um aluno de um modo geral mais calmo, mas menos dotado, é mais bem aceite do que uma criança muito dotada, com agitação psicomotora?» (A. RErr, 1973).
15.1.2 Movimentos coreiforme-atetóides
Esta forma de perturbação do movimento não é rara, e pode ser interpretada como uma forma muito acentuada de agitação psicomotora, com movimentos intermitentes descontrolados, frequentemente combinados com trejeitos incontroláveis; verifica-se quase sempre uma caligrafia «horrível». Esta forma de alteração psicomotora aponta claramente para uma perturbação do sistema nervoso central, isto é, para uma perturbação do sistema de controlo da motricidade involuntária (sistema extrapiramidal).
15.2 PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO
As perturbações do comportamento só são, intencionalmente, tratadas agora, dado que, para a sua compreensão, é importante tudo aquilo que até agora foi dito. É óbvio que, sob a designação de «comportamento», tenhamos que abranger uma quantidade de acções e reacções que derivam da interdependência praticamente de todas as funções do organismo. Porém, no essencial, entendamos por isso a totalidade das reacções da criança a estímulos internos e externos, desarmonias no sistema nervoso central, à dor, ao reconhecimento da
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incapacidade de obter determinados resultados bem como à atitude e reacção do meio ambiente.
O resumo que a seguir se apresenta revela que o comportamento está no centro destas influências; contudo, por seu lado, repercute-se de novo naquelas áreas que, em primeiro lugar, o controlam.
Desta complexa predisposição para a reacção depreende-se que, nesta área, existem muitos pontos comuns que, independentemente do quadro clínico respectivo e das suas causas, se encontram, na maior parte das crianças com lesão cerebral, quase como sintomas principais
1 . Tendência para agitação psicomotora
2. Acentuada dispersão, ou perturbação da concentração da atenção
3. Tendência para perturbações afectivas
4. Manifestação acentuada de modos de comportamento liga dos ao instinto
5. Teimosia acentuada
6. Consequências de um mimo extremo
7. Elevada sensibilidade ao estado do tempo
8. Tendência para rotinas estereotipadas
9. Tendência para autoflagelação
10. Memória afectiva notável
11. Elevada sensibilidade à música e ao ritmo
12. Tendência para comportamento autista
Os sintomas comportamentais aqui referidos podem encontrar-se isolados, em combinação, ou todos juntos. Contudo, eles estão amplamente ligados a um atraso mental com manifestações mais ou menos acentuadas, embora haja crianças com inteligência normal cujo comportamento revela os sintomas atrás mencionados.
ad 1. Um dos sintomas principais mais importantes e ao mesmo tempo mais desagradável no aspecto do comportamento é a agitação psicomotora que, na sua manifestação extrema. é classificada de híperquinésia. Esta agitação quase ininterrupta, a incapacidade de ficar sentado calmamente durante muito tempo, o «estar em
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agitação» permanente, sem que seja possível a concentração numa determinada actividade, num brinquedo ou num trabalho, é um sintoma que impede qualquer ocupação construtiva. São essas crianças que se dedicam a cada nova fonte de estímulo e que nunca, ou muito raramente, conseguem uma realização na aprendizagem ou no trabalho, no jogo, ou na sua dedicação a uma pessoa.
ad 2. A incapacidade de se dedicar a uma ocupação durante muito tempo, de prestar atenção, de escutar é de atribuir a uma acentuada dispersão. Os estímulos ópticos e acústicos desviam-se prontamente da ocupação momentânea. Tem-se mesmo a impressão que a criança espera ser distraída imediatamente a seguir. É compreensível que este modo de comportamento obrigue a determinadas estratégias de aprendizagem e que tenha que ser considerado na pedagogia terapêutica.
ad 3. A criança saudável, no decurso do seu crescimento, aprende a dominar e a conduzir o seu afecto e a integrá-lo no seu comportamento social. Aprende a manifestar simpatia e antipatia, a articular os seus desejos e emoções, a organizar-se.
A criança com disfunção, pelo contrário, alterna entre a extrema necessidade de carinho, o carinho activo e a agressividade súbita. Ela bate muitas vezes, de repente e de um modo inesperado, justamente naqueles que ela acariciou ou por quem foi acariciada. Leva muitas vezes tempo antes que os adultos deixem de sentir que não se trata de maldade ou de falta de respeito e, por seu lado, comecem a não rejeitar a criança, a não a castigar ou a não a recear. Estes saltos de afecto traduzem muito mais a incapacidade de organizar e regular as emoções. Também aqui é essencial para o futuro comportamento da criança a capacidade dos familiares e educadores de não explodirem em afecto descontrolado, isto é, reagirem com autodomínio.
ad 4. Fazem parte dos sintomas principais de natureza psicológica, sobretudo modos de comportamento relacionados com o instinto. As crianças com lesão cerebral têm, na sua maioria, deficiência de um modo mais ou menos acentuado na sua capacidade intelectual, notando-se, contudo, com nitidez, que o seu comportamento instintivo está desenvolvido de um modo muito acentuado.
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Quanto maior é o défice intelectual, mais se reconhece o comportamento instintivo muitas vezes como relação única e exclusiva com o meio ambiente!
A importância desses modos de comportamento comandados pelo instinto é demonstrada, de um modo impressionante, pela investigação comparativa de comportamentos. Está presente aqui a ideia de distância individual. Quer isto dizer que, nas interacções sociais da vida diária, as pessoas procuram manter uma certa distância umas das outras. Pense-se apenas nas agressões provocadas nos autocarros ou comboios a abarrotar. R. J. PALLUCK e A. H. ESSER citados segundo I. EIBL-EIBESFELOT, 1973, observaram o comportamento territorial de crianças com debilidade mental e, por conseguinte, com dificuldades de aprendizagem. Os investigadores punham à disposição um espaço repartido e observavam depois o comportamento (comportamento territorial) da criança. Cada criança ocupava um determinado espaço, guardava-o invejosamente e defendia-o dos outros. Enquanto que de início surgiram formas de comportamento agressivo, mais tarde eram apenas necessários gestos ameaçadores, para manter o lugar conquistado. Era interessante que o comportamento territoríal manifestava-se tanto mais quanto menor era o quociente de inteligência. Esta forma de comportamento espontâneo, instintiva manifestou-se de um modo mais acentuado em crianças deficientes mentais do que em crianças normais. Isto significa que as formas primitivas de comportamento, que aliás são. ou deviam ser, conduzidas pelo intelecto, se manifestam com tanta mais intensidade quanto menos se impõe o comando cortical, isto é, quanto mais baixo é o nível de capacidade intelectual geral.
ad 5. As crianças com lesão cerebral conseguem impor os seus desejos perante os pais, com uma firmeza dificilmente compreensível. Desenvolvem, além disso, uma tal «astúcia» na mobilização dos meios de que dispõem e uma tal persistência com vista a conseguir os seus objectivos, que os familiares consideram este comportamento como capacidade mental. Logo quando lactente, que cospe ou vomita a comida que não lhe agrada, para forçar uma ementa de que goste, começa esta teimosa persistência peculiar e, a princípio, nunca entendida correctamente. É admirável a energia, a persistência e a astúcia que a criança utiliza para continuar a ser vencedora nesta luta
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permanente com o meio ambiente que, lentamente, se alarga, contudo, certamente a todos os domínios da vida diária e que, a maior parte das vezes, se prolonga do acordar ao adormecer. A firmeza com que crianças com lesão cerebral exploram os «pontos fracos» do seu sistema de educação, descobrem as pessoas e a sua acessibilidade, os que lhes satisfazem mais depressa os seus desejos, a maior parte das vezes, só é sentida pelos seus familiares, quando, pela primeira vez, lhes são explicados os problemas comportamentais da criança.
A criança com lesão cerebral tira, desse modo, partido do receio que os pais têm pelo seu futuro e pelo seu desenvolvimento futuro, da compaixão para com ele. Com o lamento «a pobre criança não entende nada», começa aquele processo sistemático de desmoralização que conduz a um estado que termina, a maior parte das vezes, com o desespero total dos familiares.
ad 6. 0 mimo, esse comportamento específico das pessoas para com a criança deficiente e indefesa, transforma-se quase no piano onde a criança toca a música dos seus desejos e exigências. O mimo é, antes de tudo, uma reacção natural das pessoas saudáveis para com os deficientes. A criança com lesão cerebral, que é permanentemente mimada porque precisa também de auxílio permanente, fará a partir de cada carícia uma exigência. O conseguir uma vez que sejam satisfeitas as suas exigências evoluiu, com o decorrer do tempo, para hábitos ditatoriais. Desta maneira criar-se-á, num curto espaço, um tirano.
G. LAST, 1978, descreve este cuidado afectuoso com a criança deficiente com a expressão hiperpedofilia. Da literatura inglesa da especialidade tornou-se conhecido também o termo «overprotection». De acordo com LAST, uma das causas da hiperpedofilia reside no permanente sentimento de culpa que os pais experimentam perante o seu filho deficiente. Como é pois importante a entrevista dos pais com o médico com preparação psicológica!
G. LAST chama veementemente a atenção para a importância do acompanhamento dos pais das crianças deficientes. Os pais que revelam unia atitude de superprotecção não estão, a maior parte das vezes, em condições de apreciar correctamente a capacidade dos seus filhos. Cerca de metade exige demasiado pouco aos filhos; à volta de um quinto é demasiado exigente e, simultaneamente, acarinha-o muito.
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Dado que os pais superprotectores revelam demasiado pouco ou muito pouco conhecimento, na sua atitude errada, é particularmente importante o seu acompanhamento psicoterapêutico, a fim de não serem provocados danos adicionais ao deficiente.
ad 7. Um sintoma comportamental característico das crianças com lesão cerebral é a sua elevada sensibilidade ao estado do tempo. Mesmo a pessoa saudável é sensível às mudanças de tempo, embora em proporções diferentes. Com base num estudo clínico-biometereológico de V. FAUST, 1980, que foi feito durante um período de treze anos, deduz-se que os lactentes e as crianças pequenas reagem já nitidamente às influências do estado do tempo.
Em cerca de 25 por cento de todos os jovens pode ser demonstrada claramente a sensibilidade ao estado do tempo. É interessante serem as raparigas mais fortemente atingidas que os rapazes. Com os sintomas típicos da sensibilidade ao estado do tempo salientamos: cansaço, depressões, desinteresse pelo trabalho, dores de cabeça, insónia, dores nas cicatrizes, falta de concentração e acentuada tendência para lapsos.
No ano de 1969, foi descrita por J. E. GREEN e F. DUNN uma forma especial da sensibilidade ao tempo: alterações comportamentais devidas a infra-sons. As ondas infra-sonoras podem produzir-se devido a manifestações acentuadas do estado do tempo e ter efeitos por largas distâncias (dois mil e três mil quilómetros!). Uma análise de dados referentes ao estado do tempo, em Chicago, demonstrou que possivelmente as anomalias comportamentais, em crianças em idade escolar, foram provocadas por acentuada influência de ondas infra-sonoras produzidas por uma tempestade a uma distância de mais de 2400 quilómetros.
A dependência do comportamento das crianças, com lesão cerebral, do estado do tempo é particularmente nítida e determinante. Admitimos que, neste caso, são provocadas reacções bioeléctricas acentuadas que devem estar relacionadas com as áreas perturbadas do sistema nervoso central. É característica, nesta ocasião, a dor de cabeça patente que, contudo, devia ser sentida não como dor localizada num determinado ponto, mas como «dor devida a pressão».
É nítida a relação com a alteração das condições meteorológicas no caso de baixa pressão, chuva, neve, trovoada e vento quente das
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montanhas. A maior parte das vezes, consegue notar-se já a reacção, um a dois dias antes da mudança efectiva do estado do tempo, o que pode ser previsto, com precisão, por mães, professores e educadores muito experientes. Alterações do estado do tempo desta natureza influenciam sempre o sintoma de fundo de um quadro clínico, no sentido de aumento da agitação, espasticidade intensa, aumento de crises convulsivas com origem cerebral, etc.
Actualmente, não é ainda possível responder, com segurança, à questão sobre quais os elementos do estado do tempo que aqui são determinantes. O chamado «biotempo» está ainda muito pouco estudado. Observações como as levadas a cabo por A. MACHALEK, 1980, irão trazer-nos certamente melhores conhecimentos sobre o assunto.
ad 8. Rotinas estereotipadas são actividades que evoluem sempre da mesma forma, das quais nós conhecemos já as oscilações, a respiração ofegante, os estalos com a língua e ainda movimentos da cabeça, dos braços e mãos e dos dedos e pés.
Todas as pessoas têm tendência, em determinadas fases, por ocasião de uma comoção particular, de uma concentração intensa, de um extremo aborrecimento, para rotinas semelhantes. Incluímos também, nos estereótipos, o hábito de fumar.
Enquanto que uma pessoa saudável tem estes tipos de comportamento apenas por pouco tempo e sob determinados condicionalismos, sobretudo na criança com deficiência mental profunda esses modos de comportamento dominam, muitas vezes, toda a sua existência, enquanto está acordada.
Conhecemos também a evasão em rotinas estereotipadas, com o objectivo de se esquivar a uma exigência do meio-ambiente, de fugir a dificuldades. A oscilação rítmica da cabeça produz uma sensação de vertigem que corresponde à êxtase de embriaguez e, dessa maneira, dispensa a confrontação com o meio-ambiente.
É inteiramente compreensível que os estereótipos, em forma de oscilação, ocorram sobretudo no estádio de transição entre a vigília e o sono, se pensarmos que muitas crianças só conseguem adormecer quando caem no sono a oscilar. Também ao despertar, se não forem imediatamente «mobilizadas» pela mãe, deixam-se cair de novo no estado para elas sem dúvida agradável. É de referir, dentro deste conceito, que estereótipos desta natureza em forma de oscilação tam-
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bém podem aparecer em crianças e adultos mentalmente saudáveis, apontando também nestes para profundas perturbações comportamentais. As rotinas motoras estereotipadas podem ser, ao mesmo tempo, de uma tal complexidade, que uma pessoa saudável não consegue de modo nenhum imitá-las. Muitas vezes decorrem, ao mesmo tempo, várias rotinas. O sindroma da atrofia cerebral na híperamoniémia, descrito por A. RErr, é caracterizado por um roçar ininterrupto das mãos uma na outra, um quadro clínico em que a rotina estereotipada é um sintoma de fundo para o diagnóstico.
É difícil dar uma resposta à questão do que é possível fazer-se contra estas actividades, que são consideradas caricaturas de autênticas acções motoras. R. SPtrz descreveu-as, já nos últimos vinte anos, como marcas de hospitalização. Temos conhecimento de que somente as conseguimos impedir no início, e isto significa que temos que nos ocupar intensamente da criança. Não se pode, de modo nenhum, chegar à situação de cair na monotonia da rotina. Sabe-se, porém, o que é que isto significa em investimentos de carácter terapêutico.
ad 9. 0 sintoma da auto-flagelação é frequentemente observado já em crianças pequenas, com estereótipos mínimos, porque apenas incipientes e, por isso, observados no início com dificuldade. As rotinas motoras típicas são o bater com a cabeça na cama, nas paredes, ou o bater na cabeça com as mãos, etc. São conhecidas da linguagem popular frases como «de tanto desespero bate com a cabeça nas paredes» e «de irado morde em si próprio». Está no mesmo plano o comportamento da criança com lesão cerebral, que morde nas mãos, quando está agitada, podendo a agitação ser de natureza agradável ou desagradável, sendo, porém, em qualquer dos casos, de atribuir a articulação linguística deficiente. O «bater em si próprio», ou «bater» pode chegar a uma intensidade tal que alarme os estranhos.
Temos que admitir que, aqui, sob o fundo de uma lesão orgânica cerebral, evolui uma perturbação emocional. Temos visto, em casos extremos, fracturas dos ossos do crânio, fleimão e chagas na face e couro cabeludo, até mesmo descolamentos da retina. Porém, não se trata apenas da tentativa de abafar uma dor, ou um mal-estar com outra dor auto-determinada e doseada, a auto-flagelação, a autoagressão pode servir também para chamar a atenção para si, ou para
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desviar a atenção do adulto para qualquer outra coisa. A terapia pode servir apenas para distrair, ser de carácter ocupacional. Porém, qualquer pessoa experiente sabe como é difícil conseguir isso, durante todo o dia.
ad 10. Um sintoma que dá particularmente nas vistas e que sempre desconcerta os familiares é a memória das crianças com lesão cerebral que, com frequência, consegue ir muitos anos atrás, mas que está sempre relacionada com vivências, com impressões de carácter emocional. Sítios, lugares, pessoas, brincadeiras, comida, bebidas, experiências, quer agradáveis quer dolorosas, ficam presas à memória, ao que parece, de modo muito forte. As crianças com lesão cerebral sabem muitas vezes melhor do que os seus familiares, onde encontrar determinadas coisas dentro de casa que eles não vêem maneira de descobrir.
É do mesmo modo notável que, pelo contrário, quase não esteja desenvolvida a memória em relação a conceitos abstractos, por exemplo em relação aos números, que os fenómenos abstractos mal sejam compreendidos, ou não sejam de todo compreendidos.
ad 11. A sensibilidade rítmica e musical das crianças com lesão cerebral é outro sintoma axial, que logo se torna notado pelos familiares. Esta capacidade de reconhecer, compreender e notar ritmos e melodias torna-se, conforme é referido no capítulo «Terapia musical», o meio que nós utilizamos para conseguir o contacto com a criança, para apoiar capacidades de aprendizagem, para estimular a linguagem e o movimento. A aprendizagem das notas musicais é, pelo contrário, quase impossível, dado as mesmas serem algo de abstracto.
ad 12. A tendência para o autismo em crianças com lesão cerebral aumenta a maior parte das vezes com a idade, sendo frequente na idade adulta.
Por autismo queremos significar a Limitação crescente da relação da criança com o meio ambiente, a supressão da linguagem, o ocupar-se com o próprio corpo, o permanecer em rotinas estercoiipadas, o brincar horas com rodas, torneiras, cordas, pedaços de papel, etc. Os estímulos exteriores têm que ser muito fortes para
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obter reacções. O olhar da criança autista está, a maior parte das vezes, dirigido para o longe. O raio da relação com o mundo exterior é extremamente estreito e a resistência a um alargamento parece simplesmente intransponível.
Um tal comportamento, em crianças com lesão cerebral, é, portanto, um sintoma que revela com que intensidade a criança restringiu as suas relações sociais, ou já as destruiu.
O sindroma da psicopatia autista, descrito por H. ASPERGER, está em relação com este aspecto. Mas aqui trata-se, de acordo com uma opinião mais recente, de uma perturbação parcial da capacidade em que o intelecto está bem desenvolvido. Somente a relação social está, ao que parece, alterada.
15.2.1 Autismo infantil
O tipo de autismo infantil descrito por L. KANNER (1943), nas últimas décadas, sofreu mudanças nítidas. O trabalho intensivo com estas crianças revelou que, no pressuposto de um diagnóstico verdadeiro e medidas especiais e intensivas de treino, se conseguem, decididamente, alterações extraordinárias do comportamento e da capacidade. Também, relativamente à opinião sobre as causas do autismo, houve uma mudança drástica. Finalmente, foi tirada dos ombros da mãe a «culpa». Pensava-se que o autismo era de atribuir ao facto de a mãe não amar o seu filho, não o desejar, de o rejeitar e, assim, o comportamento da criança seria a reacção a essa rejeição.
de salientar, a este respeito, que, de acordo com a nossa experiência, o comportamento muitas vezes peculiar e aparentemente distante da mãe para com o seu filho autista é antes consequência da perturbação comportamental da criança e da sua incapacidade de encontrar uma relação social com o meio circundante. A resignação social da mãe é quase uma consequência da falta de ressonância por parte do seu filho.
Se o autismo é hoje considerado, de preferência, uma perturbação parcial da capacidade, em nossa opinião, isso deve ser entendido no sentido de que uma ou mais áreas da totalidade das funções do sistema nervoso central estão afectadas, o que por sua vez, constitui
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novamente a base e condição para outras funções importantes de tal modo que a partir da deficiência de uma área se forma um leque de várias funções perturbadas.
A lista de sintomas que se segue foi retirada de um sistema de HELEN CLANY, D. F. DUGOALE e JOHN RENDLE-SHORT e conduz, na opinião dos autores, ao diagnóstico do «autismo infantil», desde que sejam comprovados, pelo menos, sete destes catorze pontos:
1. tem dificuldades no contacto com outras crianças;
2. comporta-se como surda, mas revela ecolalia;
3. resiste a toda a solicitação para aprender qualquer coisa nova;
4. nenhum receio de perigos reais;
5. resistência a mudança de hábitos;
6. exprime os desejos através de gestos;
7. ri e solta gargalhadas sem motivo;
8. rejeita a ternura e as carícias;
9. excesso acentuado de actividade física;
10. nenhum contacto com o olhar;
11. excessiva ligação a objectos individuais;
12. desloca objectos em movimento giratório;
13. hábitos de brincadeira estereotipados;
14. isolamento.
Portanto, se esta sintomatologia leva ao diagnóstico do «autismo infantil», então deve ser acentuado, neste ponto, que uma quantidade destes sintomas são observados também em crianças com elevado atraso intelectual. Ao lado do sindroma «autismo» devia evidentemente haver também um sintoma «autismo».
Enquanto que no sindroma «autismo», aparentemente, uma perturbação parcial da capacidade no âmbito da socialização leva a uma restrição da relação social e, desse modo, a uma perturbação do desenvolvimento intelectual e psíquico, no sintoma «autismo» a lesão cerebral acentuada conduz ao estreitamento do raio de acção e, assim, à ocupação consigo própria como única forma possível de auto-representação.
Relativamente às crianças com lesões cerebrais profundas, nós sabemos que são temporariamente arrancadas ao seu círculo fechado;
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contudo, à medida que vão crescendo, tendem cada vez mais para o isolamento.
Pelo contrário, no sindroma do «autismo infantil», através de treino especial intenso, consegue descobrir-se, à semelhança da casca de cebola, uma camada após outra, levando as funções a desenvolver-se. A distinção clínica de ambas as formas do comportamento autista nem sempre é simples e carece sempre de grande experiência no âmbito pedagógico, psicológico e médico.
Pedagogia terapêutica da criança autista: O nosso sistema escolar considera a criança autista como especial e procura integrá-la na escola para crianças com deficiências profundas. Este processo quase nunca resulta, dado que estas classes carecem simplesmente de instituições de fundo e de orientações pedagógico-terapêuticas específicas, que são necessárias à criança autista, isto é, possibilidades de treino específico da diferenciação interna, da percepção, da fala mas, sobretudo, da socialização. Isto requer, portanto, pedagogia terapêutica extremamente individual e especificamente orientada que, contudo, não tem que ser necessariamente efectuada em classes de autistas próprias, desde que, dentro de uma escola de deficientes profundos, sejam garantidos os métodos de ensino e de aprendizagem necessários, quer como terapia isolada, quer em grupo. O treino por imitação e o treino dos órgãos dos sentidos, entre outros, são aqui indispensáveis. Para isso, é evidentemente necessário pessoal com a formação adequada, que irá trabalhar depois com êxito, desde que entenda onde estão as capacidades da criança autista e como é que elas podem ser desenvolvidas.
A H. ASPERGER cabe o mérito de ter descrito o sindroma da psicopatia autista. Dado que, nestas crianças, existe, a maior parte das vezes, um equipamento intelectuál de fundo excelente (muitas vezes com nítidos talentos especiais, ou interesses especiais) os problemas situam-se, sem excepção, ao nível do comportamento. Aqui, as causas residem mais no âmbito inter-pessoal, embora não possam ser excluídas alterações no desenvolvimento do sistema nervoso central.
Relativamente a ambos os tipos, foi anteriormente admitida a proximidade com a esquizofrenia, opinião que levou frequentemente a uma certa padronização, que não pode ser hoje admitida nesta forma simplista.
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Na idade adulta, é pois um perigo, em ambos os tipos de autismo, o resvalar em psicose, ou estados próximos da psicose, se a vida habitual for alterada, com mais ou menos rapidez, devido a acontecimentos graves, e a falta de capacidade de adaptação levar à descompensação de um equilíbrio psíquico mantido, frequentemente, só à custa de muito esforço do doente e dos que o rodeiam.
Capítulo 16
A MOTRICIDADE PERTURBADA
16.1 FISIOLOGIA DO MOVIMENTO
O movimento, como expressão das funções motoras do corpo humano, é um elemento essencial da nossa natureza, e as formas de movimento que surgem, no decurso do desenvolvimento fisiológico, imprimem a sua marca às diferentes fases da vida.
Os movimentos do lactente distinguem-se, no seu modo característico, dos de uma criança pequena; estes são também diferentes dos de uma criança em idade escolar, e assim assistimos desde o nascimento até à morte a um desenvolvimento contínuo de formas de movimento, que permitem uma divisão em determinadas fases, verificando-se, contudo, entre cada um dos períodos, transições fluentes.
O corte mais significativo situa-se na puberdade, quando ocorre a transição para as alterações da idade adulta, que deixam atrás de si toda a infância. Na verdade, nas suas fases reconhecem-se certas diferenças na forma e conteúdo do movimento; contudo, apresenta uma «dinâmica jovem», como característica comum. Os movimentos da criança são inseguros e não orientados, falta-lhes a referência firme a um fim, que é aquilo que faz decorrer o movimento do adulto, como linha recta desde o ponto de partida ao ponto final. Esta linha pensada, na criança, evolui serpenteadá, sem definição clara do princípio e do fim, desordenada, antes, caótica (F. J. BUYTENDIJK). Isso não é, de modo HYPERLINK http://nenhum.de nenhum. de atribuir a incapacidade do cérebro; parece fundamentar-se, HYPERLINK http://antes.no antes no ajustamento da criança
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àquilo que a rodeia e ao meio ambiente. Falta-lhe simplesmente ainda a sensibilidade do adulto para a necessária proporção do movimento, portanto, o sentido económico e, com isso, a característica essencial
do trabalho. Por esse motivo, apresenta-se um excesso de movimento típico que, juntamente com a necessidade de movimento, faz
o lactente ter movimentos rítmicos sem um objectivo definido.
No lactente recém-nascido notamos primeiramente movimentos globais característicos, a maior parte das vezes de ambos os braços e pernas, que procedem sobretudo das grandes articulações (articulação coxo-femural, articulação do joelho, articulação do cotovelo), acções para as quais se introduziu a expressão «movimentos em massa». Sabemos que movimentos desta natureza podem ser desencadeados através de uma quantidade de estímulos exteriores; contudo, sabemos também que os centros do movimento, bem como o centro da respiração, ou de sucção, podem ser estimulados não apenas através de um reflexo, mas também entrar em acção por si mesmos. A. PEIPER compara isto com a electrotecnia e considera que os centros se carregam durante a inactividade, para depois fazerem a descarga. Dado que falta a acção dos centros corticais e da via piramidal, falta também ao lactente o movimento isolado orientado. Os seus movimentos em massa são aos solavancos e desajeitados e não parecem ser, de modo algum, úteis. O seu comando efectua-se em determinados centros do cérebro extrapiramidais, através do pallidum, ao qual, nesta fase do desenvolvimento, um outro órgão, o corpus striatum ainda não põe qualquer obstáculo. Observamos nos recém-nascidos «movimentos de extensão, flexão e abdução» e sabemos que eles podem manifestar-se permanentemente em crianças com lesão cerebral. Se tentarmos flectir as pernas e os braços de um lactente, faz-se logo notar uma nítida hipertonia da musculatura, que deve ser considerada como rigidez extrapiramidal.
No decurso do desenvolvimento do lactente, os movimentos em massa passam cada vez mais para segundo plano, até que ocorre a primeira preensão. Esta é, inicialmente, ainda um agarrar desordenado; a seguir, são utilizados o polegar e o indicador.
Com a aquisição do equilíbrio e da locomoção, desaparece a rigidez subcortical anteriormente observada e passa por tema fase de hipotonia muscular. Primeiramente, as pernas, só com esforço, suportam a criança e, lentamente, desenvolve-se um novo tónus, que dá
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origem ao quadro motor classificado por A. HAMBURGER de hipotonia, o qual é caracterizado pela colaboração de todas as dimensões do corpo em cada movimento. Por isso, dá a sensação de deselegância. Esta fase passa, pouco a pouco, à motricidade «solta, fácil» ágil, que está totalmente manifesta por volta dos 4 anos de idade e é inerente a uma certa graciosidade infantil (F. J. BUYTENDUK). Contudo, nesta fase, é possível observar também movimentos associados, particularmente no campo tenso que, a par de uma certa falta de habilidade e timidez, são de considerar como expressão de pouca inteligência e controlo gestual, ainda não completamente desenvolvido, no domínio social.
Aos sete anos de idade, a passagem de criança pequena a criança em idade escolar, no período da primeira transformação, ocorrem alterações significativas, tanto somáticas como psíquicas: as extremidades tomam-se mais longas e forma-se a cintura; no aspecto psíquico e mental há uma redução dos momentos afectivos para passar a observar, de um modo já mais crítico, a vida e o ambiente em que se insere. Simultaneamente, desenvolvem-se também novas formas de movimento.
O próximo salto consuma-se na puberdade. A consciência do seu próprio valor que desperta, juntamente com a experiência subjectiva de uma adaptação, em si, insuficiente às pessoas e coisas revela-se em todas as relações sociais e conduz a reacções que podem ser designadas, da melhor maneira, pela palavra rotura, devendo, naturalmente, ser consideradas as diferenças entre a puberdade nas raparigas e nos rapazes.
Na motricidade é anormal, segundo A. HAMBURGER, a hipermimia (movimentos bruscos na face), que faz o papel da mímica pouco diferenciada da criança. Todas as reacções psíquicas decorrem de um modo «excessivo» e passam rapidamente de um extremo ao outro e, a este «altíssimo júbilo-triste de morrer», corresponde também o quadro motor que pode ir da tensão a extrema hipotonia. O crescimento físico leva também à escassez de movimentos no quadro de todas as alterações somáticas. F. J. BUYTENDUK escreve a propósito: «Que esforço custa aos adolescentes entrar em movimento. Mesmo em actividades ligeiras, ele espreguiça-se, boceja, como alguém que se levanta cansado e continua o seu caminho a suspirar».
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16.2 PATOLOGIA DO MOVIMENTO
A patologia da motricidade da criança distingue-se da dos adultos, não só pela diversidade das doenças cuja formação está ligada a uma certa idade, mas também pelo quadro clínico respectivo que é, antes de tudo, oposto ao tipo de movimento normal da criança. O conceito de discinésia (perturbação do movimento) abrange um amplo leque e é impossível apresentar todas as possibilidades patológicas pelas quais se pode tentar agrupar as perturbações mais importantes.
Na classificação das perturbações do movimento deve ser tomada em consideração uma série de aspectos, podendo a ordem ser apresentada por factores anatómicos, neurofisiológicos, ou clínicos. Para não complicar mais a questão, apresenta-se uma classificação muito rudimentar em dois grandes grupos:
Perturbações no âmbito da via da motricidade voluntária
Perturbações do sistema extrapiramidal
16.2.1 Perturbações da via da motricidade voluntária
A noção de paralisia cerebral infantil - «cerebral palsy» - está hoje universalmente divulgada, tornou-se um conceito que comporta uma quantidade de quadros clínicos que, tanto na sintomatologia clínica como psicológica, podem ser extraordinariamente diferentes. É compreensível que a variedade dos diagnósticos careça da diferenciação respectiva.
São de referir primeiramente os casos em que, sem causas patológico-anatómicas comuns, a maturidade motora está afectada devido a debilidade mental, quer dizer a via da motricidade voluntária bem como o sistema extrapiramidal não estão directamente afectados; contudo, o sistema nervoso central está limitado na sua capacidade funcional, na medida em que as funções motoras possíveis não podem ser executadas.
As crianças com este tipo de perturbações não têm portanto a possibilidade de utilizar a sua musculatura, de modo adequado à função (aprazia). Na debilidade mental, um estado em que a capaci-
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dade psíquica e mental está diminuída, ou perturbada, o órgão superior da motricidade que deve fornecer o impulso para o movimento está, portanto, «desligado». A falta de actividade leva depois inevitavelmente ao subdesenvolvimento dos órgãos periféricos, isto é, a perturbações da função muscular, na motricidade fina e global.
Nos lactentes e nas crianças pequenas mongolóides reconhece-se ainda com mais nitidez esta tendência, que é também favorecida por uma indolência primária do aparelho locomotor.
É de salientar, nesta forma de perturbação motora, que no decurso do desenvolvimento da motricidade em geral, sobretudo a motricidade grosseira não atinge, na sua função, a maturidade completa. Contudo, em contrapartida, poucos movimentos isolados, muitas vezes só um único movimento, a maior parte das vezes só um pormenor da motricidade fina são desenvolvidos com uma perfeição que mesmo os saudáveis não conseguem igualar em velocidade, perícia e persistência. Referimo-nos, aqui, aos padrões motores estereotipados, que sobressaem no atraso intelectual maciço.
Um outro fenómeno é, juntamente com uma motricidade de resto extremamente pobre, existir uma preensão frequente e francamente rápida e incrivelmente certeira em relação a um alvo (é muito frequente aqui o tirar rapidamente os óculos). Os pormenores mencionados revelam que, evidentemente, está perturbado o uso do sistema motor, contudo, não tanto o músculo do braço, mão ou pé. Trata-se muito antes de uma ordem de entrada em acção dada pelo cérebro aos órgãos periféricos que é conduzida de um modo diferente.
O grupo mais significativo, em termos quantitativos, das perturbações motoras, com origem cerebral, é o das paresias espásticas cerebrais. As causas neurofisiológicas da espasticidade estão, hoje, largamente esclarecidas. A espasticidade é um fenómeno extraordinariamente universal que, nos últimos anos, graças à investigação de R. GRANIT, H. HASSLER, entre outros, pode ser definido. A investigação do sistema de fibras alfa e gama revelou que não só são aumentados os impulsos correntes da via piramidal para os neurónios motores alfa e, assim, conduzem directamente à espasticidade sobre as células motoras do corno anterior, mas também originara a chamada espasticidade gama sobre o fuso do circuito gama. A estimulação das fibras gama leva a acentuada sensibilidade do fuso dos músculos
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a estímulo de extensão; origina-se a excitabilidade dos reflexos de extensão que, por seu lado - portanto por via aferente - excita as células alfa e, assim, contribui com a sua quota-parte para a espasticidade total.
Agora, se nós, a partir do fisiológico, procurarmos esclarecer o efeito da nossa terapia, chegamos à hipótese de que isto somente devia ser possível sobre o sistema reticular, isto é, sobre aquele substrato morfológico que, com mecanismos de retroalimentação, procura trazer cada uma das áreas funcionais ao mesmo nível, ou seja, permite uma adaptação geral a uma situação de estímulo
(W. BIRKMAYER, G. MORUZZI e G. MAGOUN).
O espástico vive portanto em estado de vigia, como que numa constante e geral «reaction arousal» (excitação central), não sendo esta condicionada apenas por um estímulo, mas por excitabilidade acentuada, e o mais pequeno estímulo endógeno e exógeno é suficiente para a reforçar. Do ponto de vista clínico nota-se, sem dificuldade, que no espástico também se trata de uma «arousal reaction» geral, como que persistente.
No essencial, há três grupos principais de formas de paralisia que aqui se manifestam. Distinguem-se uns dos outros na medida em que os seus pontos de partida se situam em áreas diferentes da região motora central e, de acordo com a localização, as lesões atingem ou as quatro extremidades, ou ambas as extremidades inferiores, ou braço e perna de um lado.
No modelo de distribuição da espasticidade há grandes diferenças. Se a zona das extremidades inferiores for particularmente atingida, a aquisição da marcha livre é naturalmente difícil. O pé equino é aqui, em geral, a «dificuldade»*. O tono frequentemente muito aumentado da musculatura adutora, portanto dos músculos que unem as pernas às ancas, conduz à chamada posição em tesoura das pernas e à marcha em tesoura. No problema do equilíbrio e da marcha interessa sobretudo o tamanho e segurança das superfícies de apoio a partir das quais se deve desenvolver a capacidade de estar de pé e de andar. Para a criança é também, muitas vezes, terrivelmente difícil conjugar a parte superior do tronco, ancas e pernas. Observam-se, com frequência, situações em que a posição defeituosa da anca acen-
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* Nota do Tradutor: Trata-se da tradução do termo inglês «handicap».
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tua a espasticidade e, por seu lado, a espasticidade deteriora a posição da cabeça do fémur na articulação coxo-femural.
Em termos numéricos as tetraparesias espásticas, portanto a paralisia das quatro extremidades, estão em primeiro plano. Contudo, é de acentuar, a esse respeito, que seria errado se, conforme aconteceu durante muito tempo, fosse considerada exclusivamente a paralisia espástica dos braços e pernas. O que acontece antes é que, em forma diferente, são atingidos praticamente todos os músculos voluntários do corpo, isto é, todos aqueles que nós conseguimos accionar com a nossa vontade e de acordo com a nossa vontade.
Juntamente com a musculatura das extremidades, do tronco, da anca, da face, há, entre outras, a musculatura dos olhos, a musculatura da boca, da faringe, da traqueia e dos brônquíos, portanto do aparelho respiratório mas também o esfíncter da bexiga e anal. Assim, e só assim, se pode entender a variada sintomatologia deste síndroma.
O tão frequente estrabismo, as dificuldades em morder, mastigar e deglutir, a respiração espástica com tendência para bronquite espástica, mas também a tendência para obstipação são sintomas essenciais dos quais resultam, por outro lado, efeitos no âmbito fisiológico, psíquico e mental. É evidente que o grau do atraso intelectual também influencia, de um modo decisivo, a motricidade. Quanto mais elevado for o grau de inteligência do doente. mais cedo este estará em condições de mobilizar as energias que são necessárias para superar a restrição motora.
À espasticidade aumentada em proporções extremas damos o nome de rigidez. Sobretudo na microcefalia, encontramos esta manifestação combinada com debilidade mental em grau acentuado.
A hemiplegia espástica, portanto paralisia de uma metade do corpo, apresenta o braço e a perna de um lado com perturbação espástica. A participação de outros grupos de músculos é aqui rara, o nível de inteligência é diminuto ou de grau médio.
É de salientar que, para o observador, praticamente «toda» a espasticidade está localizada num lado, no exame neurofisiológico pormenorizado não é raro, contudo, verificar que mesmo o lado aparentemente saudável deixa reconhecer sintomas espásticos. A observação. durante dezenas de anos, de vários doentes com hemiplegia espástica revelou-nos que a questão se esta paralisia de me-
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tade do corpo surge do lado esquerdo, ou do lado direito, é de uma certa importância para o desenvolvimento da criança. Temos a impressão de que a hemiplegia direita tende com mais frequência para a dislexia e, desse modo, tem maiores dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita, o que vai afectar as suas oportunidades pedagógico-sociais. Temos também a ideia de que a hemiplegia esquerda, no fundo, dá menos nas vistas dado que, por exemplo quando cumprimenta, dá a mão «saudável» e pode esconder a mão paralisada.
É de acentuar também a diferença no desenvolvimento entre as extremidades superiores e inferiores com afecção espástica. Revelase, quase sempre, uma tendência nítida para melhorar a capacidade funcional das extremidades inferiores, dado que, devido à necessidade de andar, a perna afectada está simplesmente sempre em exercício. A motricidade grosseira é dominada, naturalmente, com mais facilidade e com muito menos exigência. No entanto, o uso das extremidades superiores, sobretudo das mãos, desenvolve-se quase sempre em separado, dado que a criança usa naturalmente a mão «saudável» sempre mais rapidamente, com mais perícia e êxito do que a mão afectada que se torna, mais ou menos, apenas a «mão auxiliar» utilizável só de um modo muito restrito.
Entende-se por diplegia espástica a paralisia de ambas as pernas. Esta doença foi descrita, pela primeira vez, por W. J. LITTLE e é conhecida como doença de Little. Nota-se claramente que o número destes casos, no decurso dos 30 anos do nosso trabalho com este tipo de doentes, diminuiu.
Este sindroma apresenta quase sempre uma inteligência normal. Todas as formas de paralisia espástica revelam uma série de pontos comuns que não podem ser menosprezados. A forma exterior do sindroma é determinada pela localização da lesão na área motora central. Contudo, estas lesões, que podem surgir de várias maneiras e determinar a situação motora, estão na origem da tendência geral de todas as crianças com paralisia espástica para convulsões. Muitas crianças não chegam a passar por esta situação dramática, contudo, no electroencefalograma é diagnosticada, quase sempre, esta tendência. Muitas vezes, as crises só ocorrem mais tarde, mas há muitos doentes que, observados durante muitos anos, se mantêm sem crises. Assim, é compreensível que uma situação de crise com todos os seus
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efeitos possa influenciar e perturbar consideravelmente o défice intelectual e motor.
A acentuada susceptibilidade da musculatura com paralisia espástica, portanto a susceptibilidade da criança em si, aumenta a sua ansiedade e insegurança. Um estímulo óptico ou acústico, insignificante para uma criança saudável, pode levar a criança com paralisia espástica a uma reacção de sobressalto, durante a qual ela se torna subitamente rígida e perde o equilíbrio, muitas vezes, só com esforço conseguido. É também uma das principais dificuldades de toda a terapia o facto de a ansiedade, excessivamente acentuada, inibir a capacidade de se sentar, de estar de pé e de andar livremente. Mesmo quando a criança teoricamente já consegue estar de pé, ou sentar-se livremente, ainda precisa de apoio, muitas vezes apenas um apoio psíquico, quer dizer psicológico. Este, por assim dizer, «cálamo moral» é exigido e reclamado por todos os meios, até a criança descobrir, pela primeira vez, que domina de facto as suas funções motoras. Este processo de desenvolvimento dura frequentemente muitos anos durante os quais se podem desenvolver várias perturbações comportamentais de tipo neurótico.
O grau de espasticidade depende de vários factores de natureza interna e externa. A influência do tempo e das mudanças de tempo é evidente. Cada depressão atmosférica aumenta a espasticidade; a situação de alta pressão é, para o espástico, a situação de tempo mais favorável. A importância do tempo revela-se já, frequentemente, ao vestir a criança, ao dar-lhe de comer, ao falar-lhe, resumindo, em quase todos os sectores da vida, e toda a mãe de uma criança com paralisia espástica consegue logo aperceber-se de uma mudança de tempo, por o seu filho perto dessa ocasião se tornar «mais rígido». «mais resmungão», mais difícil.
Deve também insistir-se que o sintoma central da espasticidade desaparece no momento em que a criança adormece profundamente e o córtex cerebral fica desligado e, com ele, portanto, também a lesão. Ao acordar, a espasticidade «instala-se», por assim dizer, de novo. A obstipação, um sintoma obrigatório de todas as crianças cone paralisia espástica, bem como a febre, a tosse, as contrariedades, a defesa e sobretudo o medo de qualquer natureza acentuam a espasticidade.
Um outro sintoma e que nem sempre é de menosprezar é a hipersalivação (salivação exagerada) de muitas crianças com paralisia
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espástica. Na base disso está não o facto de ser produzida mais saliva do que o normal, mas de simplesmente a saliva produzida não ser deglutida rápida e muitas vezes suficientemente. Este sintoma dá particularmente nas vistas dado que a saliva tem um cheiro desagradável, molha a roupa, mesa, cadernos, brinquedos, exercendo assim uma forte influência no aspecto da criança.
No quadro clínico das paralisias cerebrais espásticas e, sobretudo, da tetraplegia, observa-se com particular nitidez como, a partir de uma lesão isolada na área do sistema nervoso central, resultam múltiplas consequências para o organismo e para personalidade, de tal modo que, neste caso, pode falar-se com legitimidade de um quadro clínico complexo.
Pode demonstrar-se, aqui, com particular nitidez, como são estreitas e francamente fatais estas numerosas ligações transversais dentro de vários circuitos de funções. A espasticidade da musculatura da boca e faringe impede a criança de morder, mastigar e deglutir de um modo normalmente rápido e suficiente. Mastigar e morder insuficientemente influenciam fortemente o desenvolvimento dos dentes e da dentina, aumentando a tendência para cárie e. levando às dores de dentes. Como pode muitas vezes uma criança pequena explicar que tem dores de dentes e muito menos indicar qual é o dente que lhe dói! Logo o receio das dores, enquanto come, aumenta a espasticidade, de tal modo que se produz um autêntico círculo vicioso. A obstipação espástica leva ao endurecimento das fezes no recto, quando se dá a defecação tem dores, o que leva automaticamente a aumento da espasticidade e a aumento da excitação psíquica. Mas, a obstipação como factor primário deste círculo vicioso resulta, por sua vez, da consistência dos alimentos que são predominantemente de natureza líquida pastosa, isto é, falta-lhes o lastro de tecidos de que o intestino carece para um peristaltismo normal.
16.2.2 Perturbações do sistema extrapiramidal
Estas perturbações têm um papel importante nas lesões cerebrais infantis, papel que, sem dúvida, nos últimos anos, diminuiu claramente.
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A palavra «extrapiramidal» significa que se trata de centros que não estão na via da motricidade voluntária (via piramidal), mas que, como centros funcionais próprios, influenciam o movimento e, assim, também a via piramidal. O sistema extrapiramidal não conduz portanto directamente o impulso para o movimento, quer dizer, cada fluxo que começa, como excitação, na área motora principal, no encéfalo e se dirige à conexão da medula espinhal com o músculo, modela antes estes movimentos, regulando o tonais muscular, coordena os diferentes grupos de músculos no sentido de que os movimentos tenham um fim próprio, homogéneo e harmónico.
Enquanto que o pallidum causa a hipercinésia e a hipertonia, o centro ontogénico extrapíramidal mais primitivo,o striatum, controla a actividade do pallidum e transforma os movimentos em massa, não orientados em movimentos individuais economicamente orientados.
Da estreita associação de ambos os centros resultam sem dificuldade as possíveis perturbações. As afecções do striatum levam ao excesso da actividade do pallidum que é caracterizada por hipercinésia e hipotonia, conforme é o caso da coreia. Da afecção do pallidum resulta um quadro clínico hípocinético-hipertónico que é designado, de um modo geral, por parkinsonísmo (paralisia agitante).
No caso da atetose, ocorrem movimentos involuntários, vermiformes e com evolução lenta. Juntamente com a coreia, é a perturbação mais importante do sistema extrapiramidal. São relativamente raros estados puramente coreicos e puramente atetósícos, sendo frequente a combinação de ambas as formas. Em colaboração com a espasticidade, encontramos movimentos sobretudo coreiformes, raramente atetóides.
O quadro da coreia é caracterizado pelos movimentos intermitentes da cabeça e das extremidades, que depois arrastam consigo os restantes segmentos do corpo. A musculatura da mímica está em permanente agitação e produz caretas bizarras. Os movimentos desaparecem (como acontece com a espasticidade) durante o sono, do mesmo modo que a sintomatologia se acentua, sobretudo quando a agitação aumenta.
Uma perturbação que atinge predominantemente o sistema extrapiramidal é atribuída à icterícia nuclear. Esta é uma consequência da perturbação que pode resultar da incompatibilidade entre grupos sanguíneos, ou factores sanguíneos da niãe e do filho. Ao dar-se
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a destruição dos glóbulos vermelhos da criança, liberta-se uma substância amarela, a bilirrubina, que pode ter efeitos lesivos nos centros superiores do sistema motor extrapiramidal - sobre o paliidum, raramente sobre o striatum. A incompatibilidade dos grupos sanguíneos (incompatibilidade Rhesus e ABO) foi já tratada no capítulo «Causas».
Sindroma da descerebração: É, sem dúvida, mérito de F. GERSTENBRANDS ter agrupado sob a designação de um síndroma a abundância de afinidades que, em caso de trauma grave do cérebro, de situações de intensa falta de oxigénio, por exemplo estrangulamentos, conduzem a um estado que é marcado por perda de consciência durante dias, semanas, mesmo meses -pessoas que praticamente só por alimentação artificial e ventilação assistida permanecem vivas, isto é, substituindo a função orgânica natural. Está fora de dúvida que aqui os limites da vida são atingidos, por assim dizer uma vida em segunda mão. Frequentemente, após um longo período, as funções motoras são restabelecidas, ocorre também unia melhoria do estado de consciência, em muitos casos uma recuperação surpreendente e, muito raramente, uma restitutio ad integram*. As experiências da nossa clínica revelam que a cura incompleta, com persistência da paralisia, perturbações da fala e défice cognitivo, é muito frequente. São naturais medidas de reabilitação durante anos, muitas vezes por toda a vida.
Um outro sindroma com sintomas predominantemente extrapiramidais é a atetose dupla que é caracterizada, sobretudo, por movimentos automáticos atetósicos constantes, muitas vezes mesmo durante o sono, bem como por movimentos contínuos e incontrolados da musculatura da mímica e da língua.
É pouco frequente o complexo de sintomas atónico-astático, segundo H. FOERSTER, que, devido à acentuada atonia muscular, quase conduz à total incapacidade para qualquer função estática.
Um síndroma com sintomas predominantemente cerebelosos é a ataxia cerebelosa congénita, que surge logo nos primeiros meses de vida e que é caracterizada por tremor dos braços e das pernas e por oscilação permanente do tronco e da cabeça.
As formas hipertónico-hipocinéticas das perturbações extrapiramidais, de que o parkinsonismo é uma forma característica, represen-
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*Tradução: um restabelecimento completo.
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tam um papel secundário na infância. Sintomas semelhantes ao parkinsonismo encontram-se apenas como estados subsequentes a encefalites graves.
As perturbações devidas a lesões no feixe posterior da via piramidal diminuem em pediatria. Só são aqui mencionadas para completar a questão. A dependência do seu quadro clínico do local da lesão é particularmente evidente.
As perturbações na área da cápsula interna levam à paralisia contralateral da musculatura dos braços, pernas, língua e face, designada de hemiplegia do tipo de Wernicke-Mann. Na zona da «crus cerebri» e da protuberância, encontramos a hemiplegia alterna oculomotora ou facial. Se as lesões se situarem no bulbo raquidiano revela-se, juntamente com deficiência simultânea de certos nervos cranianos, a paralisia espástica das extremidades contralaterais em articulação com paralisias moles dos homolaterais, da musculatura inervada pelo hipoglosso.
Caso a lesão atinja o ponto de cruzamento da via piramidal, a paralisia pode apresentar-se de diferentes maneiras, dado que o cruzamento das extremidades superiores e inferiores não tem lugar exactamente à mesma altura.
Na zona da espinhal medula encontramos, conforme a natureza, lesões transversais parciais ou totais. Além dos raros tumores nesta zona e da possibilidade de lesões traumáticas, devem ser referidos aqui os casos observados, com relativa frequência, no nosso tipo de doentes nos quais, devido a mielomeningocelo (que são formações de fendas na região do canal raquidiano), se produzem lesões transversais. Estas crianças apresentam, muitas vezes imediatamente após o parto, defeitos muito extensos na coluna vertebral, frequentemente quistos bolhosos, cone frequência feridas abertas. Mesmo quando, logo após o parto, se procede ao tratamento do defeito por operação pode evoluir-se muito rapidamente para uma meningite ascendente que muitas vezes, mas nené sempre, provoca deficiências intelectuais. A paralisia das extremidades inferiores e também, com frequência, dos músculos da coxa, quase sempre também da musculatura da bexiga e do esfíncter externo do ânus é, a maior parte das vezes, irreparável. O êxito de aparelhos corno uni apoio para estar de pé ou andar pode ser grande, desde que haja colaboração do doente.
Entre os processos degenerativos na área da via piramidal deve
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ser referida, pela sua importância em pediatria, a paralisia espinhal espástica, um quadro clínico com transmissão dominante, que é determinado pela afecção da via piramidal lateral mas também da via piramidal ventral. Graves perturbações da locomoção e paresias espásticas nas extremidades superiores, aumento de reflexos, perturbações mentais, da fala, crises epileptiformes são os sintomas mais marcantes.
Semelhante na sintomatologia é a leucodistrofia metacromática e o síndroma de Louis-Bar. A esclerose lateral amiotrófica e a paraplegia familiar progressiva, a esclerose tuberosa e a idiotia amaurótica são igualmente referidas. Como último grupo, as ataxias hereditárias que, no aspecto anatomopatológico, apresentam uma hipoplasia do cerebelo, da espinhal medula, do feixe posterior e feixe cerebeloso e das quais nós distinguimos duas formas, a ataxia de Friedreích e heredo-ataxia cerebelosa de Marie.
A observação e apreciação de perturbações motoras na infância podem efectuar-se a partir de diferentes aspectos. Conhecemos as provas habituais da função motora, como a prova dedo-nariz, a prova calcanhar joelho, o sinal de Romberg e uma série de métodos mais ou menos «rudimentares».
A diversidade dos tipos de doentes que se nos apresentam faz-nos sentir a necessidade de esquematizar as provas da função motora, o que toma possível o controlo e seguimento periódico.
Também o desenvolvimento psíquico e mental deve ser registado em perfis representados graficamente, a fim de poder ser apreciado durante anos. Estes perfis resultam de uma série de observações isoladas de determinadas dimensões. Uma delas é o «domínio do corpo». Dado que, contudo, este círculo estático de funções motoras nos parece abranger muito pouco, aproveitámo-nos das experiências de N. J. OSERETZKYS e procurámos converter a sua pretensa escala motora num perfil motométrico. As observações de OSERET-ZKYS dirigiam-se à estática de todo o corpo, à velocidade do movimento, à coordenação de dois movimentos simultâneos e à precisão de movimentos isolados.
A representação cinematográfica do movimento, desenvolvida por O. FLEil3, com pontos fixos no aparelho locomotor registados electronicamente, parece-nos particularmente adequada para a análise e controlo do movimento, dado que é relativamente fácil de executar e garante unia especificação precisa da evolução do movimento.
Capítulo 17
PARESIA CEREBRAL MÍNIMA
Tal como a noção de disfunção cerebral mínima resulta da observação e de exames minuciosos, o mesmo acontece relativamente à paresia cerebral mínima que se revela ao perito somente através de uma técnica de exame muito diferenciada. Neste caso verifica-se naturalmente o perigo do «hiper-diagnóstico», isto é, vêse mais do que na realidade existe. Assim, por exemplo, os problemas da sínistralidade revelados num estádio muito precoce de desenvolvimento já podem fazer crer eventualmente a existência de sintomas paréticos. De igual modo, o atraso na maturação motora dos prematuros deve ser considerada, neste caso, para o diagnóstico e para a apreciação. Não se pode negar que uma parte das crianças diagnosticadas com tais problemas poderiam crescer também sem terapia, e está fora de questão que uma parte do sucesso das fisioterapias modernas se obtém em crianças que estão inseridas neste estádio clínico pouco definido.
No entanto, seria demasiado simplista uma tal interpretação e contraria o raciocínio profiláctico necessário, pois unia parte dos casos suspeitos ou confirmados como paresia cerebral mínima serão de considerar, de facto, como lesão mínima. Mas na altura em que se levanta a primeira suspeita e se inicia a terapia, só com muita dificuldade se pode emitir um diagnóstico definitivo. O tratamento fisioterapêutico precoce, e aqui está o campo ideal para a chamada técnica de tratamento Bohath, em qualquer dos casos é favorável. pois, muitas vezes, o que anteriormente fora posto de parte e considerado como desajustamento poderá declarar-se depois como paresia
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cerebral mínima. O acompanhamento de crianças em risco, actualmente, parece-nos até certo ponto insuficiente, pois o diagnóstico «paresia cerebral mínima» nem sempre é apoiado em exames psicológicos e clínicos periódicos.
Se considerarmos o problema da criança canhota no nosso sistema escolar e social, devemos lamentar que se dê tão pouca atenção ao significado da lateralidade nos métodos actuais do diagnóstico chamado evolutivo.
Capítulo 18
AS CRISES CONVULSIVAS (EPILEPSIAS)
No espaço de 30 anos evoluiu de forma inacreditável o nosso conhecimento sobre a origem, os sintomas, consequências e possibilidades de tratamento das crises convulsivas. Da fase do desespero à fase hoje proclamada «a epilepsia é curável», estende-se uma longa caminhada que foi marcada, sobretudo, pelas possibilidades de diagnóstico obtido por EEG e pela descoberta de uma série de anticonvulsivantes, isto é, de substâncias iníbidoras das convulsões. Se a esperança que a epilepsia é curável não pode e não deve ser generalizada, deve verificar-se, no entanto, que há muita gente a viver sem crises durante anos e mesmo durante dezenas de anos, e que há muitos casos que, após terem sofrido de crises, conseguiram melhorar no essencial no que se refere à frequência e à violência dessas crises. Mas temos de dizer também que conhecemos ainda doentes resistentes à terapia, cujo acompanhamento nos coloca, tanto no aspecto terapêutico como nos aspectos psicossocial e pedagógico, perante problemas aparentemente insolúveis.
Apesar disso, os progressos são imensos mas as oportunidades do doente isolado são determinadas sempre pelo tipo de crise, pelo arsenal de medicamentos especiais à nossa disposição mas principalmente por outros factores, difíceis de ponderar como o ambiente social, pelo acompanhamento terapêutico-pedagógico e pela reacção do meio ambiente. Não existe qualquer dúvida que o tipo de reacção farmacooenética do organismo tem também a sua importãncia.
A crise convulsiva actualmente causa ainda unta sensação dramática com consequências imensas. A palavra «Epilepsia» conti-
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nua ainda como um estigma de desespero, está ainda associada a mordedura da língua e a perda do conhecimento bem como a função intelectual diminuida. Isto é falso e seria importante e oportuna a difusão de informação que contrariasse esta ideia. A criança epiléptica pode seguir também, sob determinadas condições, um desenvolvimento linear, isto é, normal. É de realçar que isto só será possível se todas as condições essenciais forem favoráveis, se existirem e forem aproveitados todos os pressupostos humanos, psicológicos, sociais, terapêuticos e de diagnóstico mais importantes. As palavras «Epilepsia» e «Epiléptico» ainda nos nossos dias são ouvidas pelos familiares com um profundo horror. A pergunta «O meu filho tem epilepsia, é epiléptico?» necessita, pois, de uma resposta cuidadosa, até por vezes de uma introdução lenta no problema da crise e, a par disso, baseando-nos na nossa experiência, parece-nos necessário que, para cada caso, se dê uma orientação individual do diálogo, para o qual deve ser pesada a personalidade dos familiares, a sua resistência actual e futura.
A primeira crise é para os familiares um acontecimento de tal modo chocante que exige, em certa medida, a intuição médica para o seu esclarecimento.
Aqui começa um caminho a percorrer em comum pela criança, pelo médico e pelos familiares, que exige incondicionalmente confiança mútua. Deve responder-se também à pergunta porquê, isto é, qual a sua origem, mesmo quando isto por vezes é difícil ou impossível. Para isso é necessário o esclarecimento do diagnóstico, isto é, a obtenção de uma classificação do diagnóstico na categoria clínica respectiva da crise. O esquema obtido por A. MATHES e R. KRUSE, a seguir apresentado, revela que foi detectado antes um grande número de tipos de crise. Trata-se da classificação das epilepsias e é expressivo no que se refere à quantidade. É fácil de entender pelo especialista que estas categorias somente podem ser lineares e evidentes em casos raros. O aspecto exterior da crise toma alterações muito frequentes que vão influenciar tanto a forma como a intensidade e a frequência da crise.
1. Epilepsia com crises graves (Epilepsia de grande mal) Crise tónica
Crise clónica
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Crise abortiva
Crise atónica
Com componentes focais
Convulsões unilaterais alternantes Convulsões amorfas do recém-nascido
2. Epilepsias com crises focais
Crises Jacksonianas
Variantes da crise Jacksoniana
Convulsões adversivas
Convulsões unilaterais (crises de grande mal unilaterais)
Mioclonias focais
Auras e crises sensoriais (visuais, auditivas, vestibulares, olfactivas, gustativas).
3. Epilepsias com crises psicomotoras
Crise psicomotora tónica
Crise psicomotora atónica
4. Epilepsias com crises propulsivas (sindroma de West)
Convulsão relâmpago
Convulsão de aceno
5. Epilepsias com crises tónicas
6. Epilepsias com crises mioclónicas-astáticas (Síndroma de Lennox)
Crise com queda de cabeça aos joelhos
Crise com anteropulsão
7. Epilepsias com ausências
Ausência simples
Ausência com mioclonias
Ausência impulsiva
Ausência - pestanejar
Ausência retropulsiva
Ausência propulsiva
Ausência adversiva
Ausência rotativa
Ausência com automatismos
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8. Epilepsias com crises mioclónico-impulsivas
9. Epilepsias com crises desencadeadas pelos órgãos dos sentidos (Epilepsias de reflexo) Provocação pela luz, olfacto, ouvido, ao contacto e ao movimento (táctil)
10. Epilepsias com crises não definidas
11. Epilepsias latentes e imperceptíveis
12. Convulsões ocasionais
Tais crises parecem epileptiformes, mas não são de origem
epiléptica, ocorrem relacionadas com certas ocasiões, cir
cunstâncias e acontecimentos: Convulsões febris
Convulsões respiratórias
Crises de hipocalcémia, hipoglicémia, cetonémia Crises com perda da consciência Narcolepsia
Crises histéricas
Em seguida, na nossa descrição, restringimo-nos aos tipos de crises aqui enumerados, às formas mais frequentes e mais conhecidas.
1. Epilepsias com crises graves (Epilepsia de grande mal)
A crise grave é precedida com frequência por uma fase na qual podem verificar-se vários pródromos como palidez, dores de cabeça, inquietação ou adinamia psicomotora, irritação ou apatia, falta de apetite, dores abdominais e outras semelhantes, mas não têm que verificar-se de forma imprescindível. É muito importante quando os pais pressentem, isto é, conseguem prever a ocorrência de uma crise, porque compreender-se-á melhor o comportamento da criança e poder-se-ão adoptar medidas profilácticas.
Mesmo a criança pode ocasionalmente aperceber-se da crise através de uma das auras referidas, isto é, de uma determinada sensação, de uma manifestação ou de unia impressão.
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A própria crise inicia-se com uma rigidez tónica que dura até 30 segundos. A mímica contraída, os olhos revirados, as pupilas ficam primeiro estreitas e em seguida muito dilatadas e já não reagem à luz. Este estado evolui gradualmente da fase tónica para a fase clónica. Nesta fase aparecem com frequência tremores na face que logo atingem todo o corpo. As crises duram, mais ou menos, de I a 5 minutos. A clonicidade desaparece, a maior partes das vezes esta fase termina com uma respiração profunda, e a transição para a fase de esgotamento pós-convulsiva, que conforme a intensidade e a duração da crise, leva a um sono que pode durar segundos mas também horas.
Mordedura da língua e urinar e defecar involuntário estão dependentes, a maior parte das vezes, da intensidade e da duração da crise. Estes fenómenos não surgem sempre nas crianças, são mais frequentes sobretudo nas crianças mais pequenas.
A criança com crises não se recorda da ocorrência de crise nem do período imediatamente anterior à crise (amnésia retrógrada).
Grande mal: Verifica-se uma série de ataques interrompidos apenas por pequenos intervalos, durante os quais o doente não recupera totalmente a consciência. Este estado não é só uma carga excessiva do cérebro e de todo o corpo, pode ser uma ameaça para a vida devido à formação de edema cerebral difuso. As suas consequências são visíveis no agravamento do psicossindroma orgânico. o qual provoca sobretudo y lentidão na fala, na motricidade, no pensamento, e, por outro lado, após um ataque aumenta a irritabilidade, e a tendência para a teimosia acentua-se.
2. Epilepsias com crises focais: A crise focal manifesta-se numa parte do corpo que corresponde a uma área determinada do córtex cerebral. Também neste tipo de crise encontramos pródromos com frequência. Trata-se, sobretudo, de descargas clónicas na região da musculatura facial. dos ombros, dos braços, das pernas e pés. Podem localizar-se em áreas isoladas mas também num lado do corpo. Em princípio mantém-se a consciência bem como a recordação da crise. Quando atinge a musculatura facial e bucal, as crianças não conseguem falar. Caso contrário elas exprimem as suas sensações, procuram agarrar as partes que tremem. A crise focal de início unilateral pode também evoluir para crise de grande vial. Normalmente a duração da crise varia de segundos a um quarto de hora.
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Na chamada convulsão adversiva, a cabeça e os olhos reviram-se para o lado contrário da parte em que se verificam as descargas.
3. Epilepsias com crises psicomotoras: Este tipo de crise geralmente é reconhecido mais tarde como crise epiléptica. Acontece que a sua evolução pode apresentar vários tipos de comportamento, que são definidos pelos familiares precisamente como simples perturbação do comportamento, como brincadeira, timidez ou embaraço. Também nestes casos verificam-se com frequência auras de natureza vegetativa, sobretudo abdominais mas também de natureza sensorial. É conhecida uma aura chamada «Dreamy State»*, durante a qual se verificam fenómenos de ilusão e alucinação.
A própria crise oferece uma quantidade de sintomas e automatismos orais como ofegar, soprar, mascar, mastigar, acções motoras como estereotipias - andar às voltas, saltitar, dançar, rodar, agarrar-se desorientado, apalpar, mexer no vestuário. A consciência fica perturbada, mas o doente não fica inconsciente.
A crise psicomotora é facilmente confundida com a ausência, mas são referidos como diagnóstico diferencial também fenómenos autistas.
A crise psicomotora origina uma variedade de acções «pedagógicas» cuja falta de sentido é logo evidente. Após a tentativa frustrada de dissuadir a criança dos seus maus hábitos e também de a castigar por isso, o diagnóstico clínico constitui a maior parte das vezes uma grande revelação.
4. Epilepsias com crises propulsivas: A palavra «propulsão» significa «arremessar para a frente» e caracteriza de forma significativa as formas de crise a incluir sob esta designação. Habitualmente são qualificadas de convulsões BNS (convulsões relâmpago - e de aceno). Há alguns anos foi também conhecida como Sindroma de West (em 1351, W. J. WEST descreveu o quadro patológico do seu próprio filho).
A convulsão relâmpago apresenta-se com convulsões simétricas, simultâneas que levam a levantar e dar separadamente os braços
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* Tradução: «Estado sonhador».
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e antebraços e levantar ao mesmo tempo a cabeça e a puxar as pernas. Dada a velocidade fulminante em que decorre a crise - por vezes parece mais um violento susto - estas sensações são interpretadas com frequência erradamente.
As convulsões de aceno inicíam-se de forma semelhante, no entanto são no essencial mais prolongadas; prevalece a forma tónica e são acompanhadas de uma coloração do rosto, chegando até ao aspecto cianótico.
Também se verificam outras variantes das quais deve ser referida sobretudo a convulsão de aceno, durante a qual os braços se levantam e a cabeça se inclina para a frente.
5. Epilepsias com crises tónicas: A designação inglesa «trunk fits*» torna claro que se trata de crises na região do tronco cerebral. De facto a crise tem início com contracções da musculatura do pescoço e da nuca, a cabeça ergue-se, boca e olhos muito abertos; as contracções podem atingir em seguida as musculaturas torácica e abdominal. As crises tónicas seguem-se em série, verificam-se sobretudo durante o sono mas por vezes são tão rápidas e sem manifestações exteriores que passam despercebidas.
6. Epilepsias com crises mioclónico-astáticas: Esta forma de crise bem característica, designada mesmo como crise acinética, está ligada há alguns anos ao nome do conhecido epileptólogo LENNOX, por isso é designada também como sindroma de Lennox.
O quadro exterior fica também bem claro com a palavra crise de mergulho. Evolui para mioclonias sincrónicas bilaterais e para perda repentina do todo, para abatimento ou «recolha em si próprio». No entanto as crianças, após a crise, recuperam logo imediatamente.
7. Epilepsias com ausências: De igual modo existem várias designações para este tipo de crise, como «Pequeno mal clássico», «Picnolepsia», etc.
A característica deste tipo de crise é o início e o fim repentinos de uma perturbação da consciência, começa sem aura e pode durar cerca de 5 a 20 segundos. A acção a decorrer é interrompida como
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* Tradução: «Convulsões do tronco».
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num filme, a fala interrompe-se. A marcha e acção bem como o pensamento recomeçam na altura em que ficaram suspensos. Muitas vezes, ainda agora, se confunde este quadro clínico com falha de atenção, quebra do raciocínio. A designação «Está na lua» é utilizada por vezes nestes casos.
Sobretudo na escola, tais interpretações erradas são frequentes, tendo como consequência medidas pedagógicas erradas.
A ausência tem um conjunto de variantes, sinais de deslize e encenações. É de realçar a ausência designada retropulsiva, durante a qual o tronco e cabeça são inclinados para trás. Mas conhecem-se ausências que ocorrem com automatismos orais e motores de modo que pode ser difícil o diagnóstico diferencial com a crise psicomotora.
8. Epilepsias com crises mioclónico-impulsivas: A. MATHES e R. KRUSE falam neste tipo de crise, de descargas de convulsões, estremeções repentinos e querem dizer com isso mioclonias simétricas bilaterais, isto é, contracções musculares de intensidade variada na região da cabeça, da cara, dos braços, sem perda do controlo da postura e do tónus. Uma vez que estas crises, a maior parte das vezes, duram somente segundos, mal se nota a perda de consciência. Estas crises são detectadas, sobretudo na escrita, o que pode levar, de vez em quando, a um grande número de erros pedagógicos.
9. Epilepsias com crises desencadeadas pelos órgãos dos sentidos (Epilepsias reflexas): Nestes casos está em primeiro plano, de forma significativa, a foto-estimulação. Pode ser detectada no EEG muito facilmente se se tentar, corn a ajuda de estimulação luminosa intermitente, provocar o cérebro, isto é, fazer aparecer fenómenos patológicos que, sem irritação especial, não seriam registáveis. Há crianças que, mesmo ao sairem de casa, têm crises em contacto com a luz do dia. É muito importante a provocação fotogénica através da televisão. Acontece com mais frequência do que refere a maioria dos pais. Nem sempre é provocada uma crise mas podem surgir dores de cabeça fortes e piscar dos olhos. A irritação à luz, a milhares de pontos isolados que correm ao mesmo tempo no écran mas que são vistos numa única imagem perante os olhos, provoca unia irritação da retina e, por isso, cio cérebro. A frequência da imagem, pelo contrário, não actua em geral como factor desencadeante.
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O estímulo acústico é comprovado também através do EEG. Nota-se uma disposição acentuada que se torna um factor de desencadeamento.
10. Epilepsias com crises não identificadas: Nem sempre a crise tem a sua sequência, aliás existem formas mistas, variadas, em que um tipo de crise, no seu decurso, passa para outro tipo de crise. E durante o crescimento verifica-se transição fluente para vários tipos de crise em simultâneo. A terapia exerce nestes casos um papel quando, por exemplo, através de um medicamento típico eficaz se ataca um determinado tipo de crise e entretanto com isso ocorre um outro tipo de crise. Podem desaparecer ausências, mas podem ocorrer graves crises com intervalos maiores.
11. Epilepsias latentes e subclínicas: A frequência cada vez maior de crianças com disposição para crises do tipo de epilepsias subclínicas esclarece-se através da realização de exames electroencefalográficos. O EEG tornou-se já rotina de um exame de pediatria pormenorizado. Se estiverem encobertas ondas hipersincrónicas, perturbações do ritmo, descargas generalizadas ou focos, então põe-se a questão da necessidade de uma terapia mesmo quando ainda não foi registada qualquer crise.
Queremos dizer com isto que a decisão, se deve ser tratada ou não, depende da extensão das alterações patológicas determinadas no EEG, as quais continuam a ser registadas após várias repetições do exame. Não é raro melhorarem perturbações do comportamento com o tratamento com anticonvulsivantes. Mas nestes casos é necessário a decisão individual e principalmente exames de controlo consequentes.
As epilepsias latentes são raras vezes diagnosticadas; como referimos, a causa disto está no diagnóstico perfeccionista emitido, entretanto, sobre padrões de comportamento, no âmbito do esquema do diagnóstico emitido. Pesquisas mais pormenorizadas em cada caso isolado levam finalmente à sua delimitação mais clara.
12. Convulsões ocasionais: Parece indicada, nestes casos, a designação «crises epileptiformes», pois a palavra «epiléptico» já
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significaria uma outra consequência final. No entanto, de facto, muitas crianças começam a sua «vida de crises» com convulsões designadas ocasionais. Principalmente as chamadas convulsões febris são geralmente as primeiras manifestações, aparecendo com febre alta com a erupção dos dentes, com doenças infecciosas ou antes e após a papeira. Poderia querer dizer que certos factores de desencadeamento encontraram um cérebro com tendência para convulsões e para crises. Felizmente, o EEG nestes casos dá geralmente conclusões rápidas, regista-se também uma evolução inofensiva que é referida pelo povo como «convulsões». Depois dos 3 anos de idade esta tendência reactiva, específica da criança, varia. Uma criança que aos 4 anos de idade reage à febre ainda de forma dramática deve ser incluída no círculo de tipos de epilepsia.
Um outro tipo de crise especialmente interessante é o chamado «Espasmo do soluço». Um susto repentino leva também à retenção da respiração bem como gritar ou chorar e a criança, sob a falta aguda de oxigénio, fica cianótica e inconsciente. Repete-se com relativa frequência e compreende-se que os familiares evitem cuidadosamente que grite ou chore. Os problemas de educação daí resultantes são por vezes muito complicados e levam com frequência a superprotecção. Também este tipo de crise já não se verifica em geral a partir dos 4 anos.
Nem sempre é fácil a caracterização das crises histéricas. Reconhecem-se pelo EEG normal mas também na acção a decorrer, na interrupção e pelo facto de decorrerem conforme a situação, isto é, poderem provocar uma alteração da visão do meio ambiente.
Considerações finais: A crise convulsiva é em princípio um sintoma semelhante à espasticidade ou à oligofrenia. Pode verificar-se devido a qualquer lesão orgânica do sistema nervoso central. Mas a crise pode tornar-se também apenas num sintoma condutor e a epilepsia, por isso, tornar-se uma doença. Principalmente nos últimos anos, a definição de epilepsia idiopática que ocorre espontaneamente ou por influência hereditária está cada vez mais afastada. Falamos cada vez mais da epilepsia sintomática, mesmo como um sintoma de um processo que, como sabemos, pode ser de génese e natureza extraordinariamente variadas. A moderna terapia tem de melhorar muito e abre perspectivas que pareciam ainda impensáveis há 20
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anos. Apesar disso, o sintoma «Crise convulsiva» deve ser reconhecido e controlado em cada caso como um problema para toda a vida.
Somente o conhecimento exacto do doente, da sua origem, da sua família, da situação e posição específicas, pode dar indicações por exemplo no que se refere à formação profissional, às ligações de amizade. Isto mostra como deve existir, nestes casos, uma base de confiança. entre doente, família e médico. A crise convulsiva é um sintoma que pode ocorrer devido a perturbações orgânicas e bioeléctricas do cérebro, e é possível em quase todas as lesões cerebrais infantis. É o sintoma condutor para muitos quadros patológicos.
A designação «Epilepsia sintomática» é válida quase exclusivamente para a infância. Aquele quadro patológico que se designa como Epilepsia idiopática e que evolui, ao que parece, sem fundamento orgânico, já quase que não se encontra. Pelo contrário, registamos com frequência predisposição familiar, isto é, tendência para crises convulsivas. A ocorrência da crise não se pode separar da evolução física e mental da criança. Sem dúvida influencia a actividade física, a motricidade, a inteligência, bem como o comportamento, a fala, as capacidades de aprendizagem e de concentração e a capacidade mental. A vida das crianças é bastante influenciada pelo sintoma «Crise convulsiva», um facto que nunca se devia esquecer.
Devido a estes problemas, visíveis numa boa consulta, deve proporcionar-se à criança com crises uma posição especial, isto é, principalmente porque a criança doente vive sob condições especiais. «A ocorrência da crise marca a vida da família pelo seu dramatismo e estabelece nesta o medo que por sua vez oferece condições de vida cujas bases são a incerteza, preocupação, o isolamento em si mesma» (A. RErr).
A experiência clínica revela sempre que a primeira confrontação dos pais com a crise significa um choque profundo.
É bastante importante, em tais doenças, saber até que ponto o médico é capaz de esclarecer de forma realista o desencadear do ataque, tirar à crise a sua barbaridade inexorável, mística. A tarefa do médico no diálogo com os pais é revelar todos os factores que a rodeiam e possivelmente mesmo os factores que podem ser considerados como elementos que vão desencadear a crise. Mas é também sua tarefa indicar determinados modelos de educação indispensáveis que constituem a base para a vida futura da criança com crises.
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O futuro da criança está ligado forçosamente ao futuro social da sua família. Mesmo a designação «futuro social:>, no caso da epilepsia, não é chavão mas pelo contrário pode significar uma realidade bastante mais amarga. Um certo tipo de epilepsia foi designado durante muito tempo como «doença de gente pobre». Encontrámos estas convulsões sobretudo em famílias de estratos sociais baixos, em trabalhadores analfabetos. K. CONRAD considerava estes sintomas, entre outras coisas, como um fenómeno de isolamento. As convulsões levam a descida social, não é o facto de se pertencer a um determinado estrato social que leva à doença, pelo contrário é a falta de vontade da sociedade em misturar-se com doentes com crises, em integrá-los social e humanamente que provoca o isolamento, e por isso a percentagem mais elevada de tais doenças está nos grupos menos privilegiados da sociedade.
Nada se ganha de imediato com a designação exacta e científica da crise pelo médico, sobre o diagnóstico «Epilepsia». O caminho mais longo e extenuante no aspecto pedagógico para levar os familiares ao conhecimento, a penetrarem na problemática da doença, começa logo após este diagnóstico.
Não se pode dar linhas de orientação genéricas, regras para o comportamento e para a educação. A responsabilidade própria do médico, a sua sensibilidade, estão neste caso em primeiro plano. Devia afastar-se a designação, por vezes errada, dos cuidados médicos, da sua forma mais primitiva.
A. RETT chama aqui a atenção para o triângulo terapêutico - Pais - Médico assistente - Médico especialista. A questão está em saber se o nosso sistema de Saúde moderno dá ainda um papel de relevo ao médico assistente, o qual conhece a estrutura intrafamiliar, pode apreciar a carga dos membros isolados da família, através da experiência e observação ao longo dos anos, e se de futuro atribuirá ainda aquela importância que ele sempre tem tido. No caso ideal, a criança com crises está no centro do campo de acção - Médico assistente - Pais - Médico especialista. A acção conjugada, harmoniosa destas três forças oferece segurança e êxito.
Nada chama mais a atenção para a necessidade do trabalho conjunto, da confiança mútua, como base geral para melhoria da criança, do que os problemas de educação que, entretanto, surgem. O medo perante a crise diária está tão em evidência que a designação
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surgida «Menino mimado» é bem característica. A criança aprende facilmente a servir-se da sua doença para explorar os pais, traduzir desejos que são logo satisfeitos para não provocar uma crise. Por isso, há necessidade urgente de um conselho de educação para que não surjam dificuldades no enquadramento profissional, social e futuro.
A criança com crises deve ser considerada sempre como parte integrante da sua família e simultaneamente como sujeito e objecto. Quanto melhor se conseguir controlar a criança, mais depressa ela se tornará para o seu meio, o que nós entendemos como «suportável» no sentido mais exacto e mais lato desta palavra. Sem dúvida tudo isto vai depender de uma quantidade de factores que, por vezes, influenciam demasiado, como imponderáveis, a vida da família e da criança.
18.1 ORIGEM DAS CRISES CONVULSIVAS
A pergunta «porquê» também continua aqui em primeiro plano. Não é fácil responder e necessita, tal como qualquer diagnóstico na área da perturbação do desenvolvimento infantil, da anamnese pormenorizada e de uma observação conjunta de resultados clínicos, electrofisiológicos, psicológicos e sociais.
De imediato, deve afirmar-se que qualquer cérebro que tenha sofrido uma vez uma lesão orgânica tem tendência latente para convulsões, isto é, tende para crises sob certas condições que um cérebro saudável pode ainda assimilar. É, sem dúvida, a perturbação do equilíbrio isoeléctrico que dá a possibilidade aos factores internos e externos de dar impulso a oscilação do vegetativo na área patológica e com isso forçar o ataque. H. SALnAcu descreveu a chamada reacção de «reviravolta» para o sistema nervoso central. Adaptamos este modelo à convulsão e comparamos com uma oscilação que cada vez é maior e de repente dá uma reviravolta. Então sabemos que o pêndulo do vegetativo normalmente oscila na posição média fisiológica. isto é, mais na direcção simpaticotónica ou vagotónica mas sempre
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sob a influência de ambos os factores. Então este pêndulo pode ser impulsionado por forças e por condições internas na região patológica de extrema vagotonia da qual, então, no vértice do pêndulo surge a reviravolta para extrema simpaticotonía, para a fase tónico-clónica da crise como resultado de descargas simpaticotónicas excessivas. Quando o pêndulo deixa de oscilar, este oscila ainda uma vez na região patológica da vagotonia, a «fase de esgotamento pós-convulsiva». O estado epiléptico corresponderia então às várias reviravoltas do pêndulo.
Sabemos que o cérebro saudável é levado também a crises por sobrecargas excessivas. No caso da criança com crises, já são suficientes para provocar uma crise cargas que geralmente não são localizáveis ou ocorrem com certos indícios, como dores de cabeça, cansaço, mal-estar, etc.
Quando se diz que qualquer lesão cerebral verificada nos períodos pré-natal, perinatal e pós-natal contém em si uma elevada disposição para a crise, isto de facto é comprovado através de exames de controlo prolongados a muitos dos nossos doentes; mais cedo ou mais tarde acabamos por presenciar várias vezes ou apenas uma vez a ocorrência de crises. Em consequência disso, nas primeiras conversas com os familiares das crianças com lesão cerebral, mencionamos a predisposição latente e esclarecemos a necessidade de EEG's de controlo regulares. A crise convulsiva é, à partida, um sintoma que pode ocorrer, tal como o atraso mental, no âmbito de uma alteração organo-encefálica. Fala-se também, como se sabe, de «epilepsia sintomática». Se a crise tem a ver com uma lesão cerebral da 1.' infância, então diz-se que a deficiência surgiu antes da conclusão da maturação do cérebro. Aqui pode falar-se de uma epilepsia residual.
Mas uma epilepsia sintomática pode surgir também devido a um surto processual no interior do cérebro, e neste caso estão incluídos processos expansivos como tumores, aumento da pressão cerebral e de igual modo processos inflamatórios crónicos. Também estão incluídos processos degenerativos como processos neuro-metabólicos e escierosantes. Neste caso aplica-se a designação de epilepsia processual. As epilepsias que não devem ser incluídas no grupo das epilepsias sintomáticas, isto é, que não são resultantes de uma epilepsia processual ou de uma epilepsia residual, podem ser
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consideradas, sob determinadas condições, como genéticas. Nestes casos as epilepsias deviam ser consideradas como um síndroma.
É altura de chamar a atenção que existe, ao que parece, uma tendência genética fixa para crises convulsivas de origem e nestes casos é de destacar a designação de predisposição convulsiva genética e hereditária que, segundo A. MnrrHES e R. KkusE, já se devia manifestar porque 4 a 5% de todas as pessoas sofrem convulsões ocasionais na infância.
Existem certas formas de evolução epiléptica que podem ser classificadas nesta categoria pelo que, para além da criança que sofre de crises, devem poder encontrar-se, pelo menos no EEG de algum dos familiares, sinais de predisposição para crises.
Se a anamnese tiver carga pouco significativa, então pode ser possível que, tanto a ocorrência aparentemente espontânea da epilepsia como uma lesão cerebral exógena com tendência convulsiva familiar, tome manifesta a ocorrência da crise. Seria de interpretar neste sentido, por exemplo, o efeito de uma encefalite da vacinação da papeira devido a tendência convulsiva genética latente.
Nas epilepsias de origem genética devem ser incluídas, entre outras, as convulsões infecciosas, as crises de grande mal, as convulsões ocasionais, a picnolepsia, a epilepsia de grande mal sem perda da consciência.
A questão da carga familiar e da hereditariedade é extraordinariamente importante para o acompanhamento de uma família. Também tem grande importância que uma pessoa, que em criança sofreu de crises convulsivas de origem cerebral e que ficou livre em adulto, conte os seus problemas de infância ao companheiro e diga até que ponto a vida profissional pode e tem de ser influenciada pela anamnese; tudo isto são questões que só têm resposta partindo de um conhecimento global do doente, da sua situação clínica e psicológica, da sua família.
Não é necessário acentuar que é indispensável o conhecimento da situação ao longo dos anos.
Importância do EEG para o diagnóstico e para a evolução da Epilepsia: Uma base essencial para a apreciação dos casos isoladamente é o EEG que hoje em dia já se tomou um exame de rotina e é indispensável para diagnóstico, controlo da evolução e prognóstico.
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O EEG revela, na maior parte dos casos, certos padrões-base que nem sempre são constantes mas deixam ver uma certa constância. O EEG padrão isolado podia ser, de certo modo, insuficiente para classificação da Epilepsia, mas sem dúvida é o meio auxiliar de diagnóstico mais importante. EEG com traçado difuso é o mais frequente no caso da criança com lesão cerebral. Falamos de traçado difuso quando a actividade base está sempre alterada com nitidez significativa: disritmias e lentidão. Temos de referir também como traçado difuso, as hipsarritmias e o número de paroxismas variantes de Pontas-onda. No caso das epilepsias chamadas genéticas, é típico um EEG padrão primário generalizado mas não apresenta vestígios da hereditariedade do acesso da crise.
A designação «EEG padrão encefálico central», que é habitual também neste tipo, vem chamar a atenção para o facto de as descargas virem da profundidade de estruturas subcorticais e serem levadas para o córtex. O EEG padrão focal unilateral indica um foco que se vê sempre num lado do cérebro.
Esboços multifocais deixam antever duas possibilidades:
1. a existência de muitos focos, ou
2. a existência de um foco que actua sobretudo do lado oposto e leva este a descargas.
Finalmente conhecemos ainda o EEG padrão hemilateral unilateral. Tal EEG pode surgir quando metade do cérebro está lesionada gravemente como, por exemplo, na hemiatrofia, não tão rara como se pensa, que não é assinalada no EEG e somente é detectada na metade do cérebro menos lesionada. De igual modo, pode surgir este EEG padrão no caso de um foco subcortical e cortical localizado em toda uma metade do cérebro.
Alterações psíquicas: Nestes casos há que distinguir as perturbações ocasionais e as permanentes. Relativamente às primeiras incluem sobretudo os estados encobertos que podem durar minutos ou horas após unia crise. Estados encobertos podem permanecer também durante dias, semanas ou mesmo meses e por isso são assinalados devido a perturbação da consciência, isto é, consciência
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limitada; a vida decorre normalmente mas as capacidades intelectuais não são totais. Verificam-se estados de irritação isolados, agitação sem sentido, ou agressão aos familiares que não conseguem compreender a razão disso.
Por vezes, verifica-se estado de pequeno mal (no EEG notam-se paroxísmas variantes de pontas-onda) que se impõe como estado encoberto. As crianças não são participativas, ao que parece, são muito caladas e apáticas. Este quadro clínico pode durar também dias, semanas e meses. Reconhece-se facilmente no EEG, e em geral é interrompido rapidamente com uma injecção de Clonazepam.
A noção estigmatizada e transitória em períodos anteriores da alteração epiléptica já não se mantém actualmente por muitas razões. Primeiro pelo facto de os anticonvulsivantes modernos, em certa medida, dificultarem as crises, mas, em comparação com os preparados de ácidos barbitúricos e de bromo, também pelo facto de conterem no essencial menos substâncias sedativas.
Sabe-se sobretudo que o psicossindroma orgânico, como agora se designa o conjunto das perturbações do comportamento e do ser, pode surgir também em lesões cerebrais sem epilepsia. Também está fora de questão que certas epilepsias, e estão em destaque neste grupo as formas de evolução genética, tendem para psicossindroma orgânico.
A este quadro clínico correspondem os seguintes sintomas:
1. Lentidão do pensamento
2. Diminuição da capacidade intelectual
3. Diminuição da capacidade de concentração, elevada irritabilidade
4. Lentidão das acções motoras
5. Lentidão e empobrecimento da linguagem
6. Perseveração na fala e motricidade
7. Tendência para estereotipias
8. Tendência para agressão
9. Inquietação psicomotora
Deduz-se dos sintomas, aqui enumerados, como a vida da criança é alterada devido à epilepsia e como estão interligadas as áreas pedagógica, social e familiar.
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A origem de uma tal alteração é com certeza de diversa natureza, isto é, resulta da actuação de muitos factores dos quais queremos referir quatro:
A lesão orgânica no sistema nervoso central influencia um grande número de funções, dificultando-as e restringindo-as.
As descargas paroxísticas, com o edema cerebral que as acompanha, levam naturalmente com variável intensidade à subalternização das células nervosas.
De igual modo, os anticonvulsivantes modernos, em doses elevadas e tomados ao longo de anos, provocam efeitos secundários que nós não conseguimos ainda agora medir com parâmetros quantitativos e qualitativos.
A educação torna-se difícil, devido à protecção excessiva perante situações de crise e pelo isolamento social.
É condição «sine qua non» que os problemas psíquicos têm de ser acompanhados de perto, no sentido de um processo de informação permanente aos familiares, e que o conselho em relação à educação tem de revelar os riscos inerentes à situação.
Capítulo 19
PERTURBAÇÕES DOS ÓRGÃOS DOS SENTIDOS
No âmbito das lesões cerebrais infantis as perturbações concentram-se na área dos órgãos dos sentidos, na visão e na audição. Verifica-se também nestes casos que só muito raramente se observa que afectem exclusivamente o órgão periférico, isto é. apenas o ouvido externo, médio e interno, ou apenas a córnea, o cristalino, a íris, o corpo vítreo ou os músculos oculares.
No século 19, quando se fundaram institutos para cegos e surdos-mudos como primeiras instituições terapêutico-pedagógicas, estas tinham sido planeadas somente para cegos e surdos-mudos. Agora excedem em muito o número daqueles doentes nos quais aparecem em primeiro plano perturbações da visão e da audição resultantes de lesões cerebrais, como dados de deficiência complementar.
Também deve acentuar-se com ênfase que os efeitos de deficiências visuais e auditivas são muito violentos no intelecto, na motricidade e no comportamento mas que, vice-versa, também a visão e a audição recebem fortes impulsos da motricidade, do intelecto e do comportamento.
É interessante, sem dúvida, que as consequências imediatas das perturbações visuais e auditivas, bem como as consequências terapêutico-pedagógicas que surgem de unia tal observação, embora de diferentes órgãos e funções, tenham tantas ligações fundamentais.
Que as perturbações visuais e auditivas podem aparecer associadas, toda a gente sabe, e não é raro aparecerem em muitas crianças
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com várias deficiências; que esta associação exige um «mais», é fácil de entender.
19.1 PERTURBAÇÕES DA VISÃO
Em primeiro lugar devem ser referidas as lesões mesmo na região do olho: a ausência total do globo ocular (anoftalmia), o seu deficiente desenvolvimento (mícroftalmia), formação defeituosa de partes isoladas do olho, da córnea, da íris e do cristalino. A retina, como parte colocada mais à frente do sistema nervoso central, é um dos locais favoritos para vários quadros patológicos. Assim, por ex., a toxoplasmose é diagnosticada pelas alterações da retina (coriorretinite); de facto, outros sintomas raros de natureza degenerativa revelam-se também através de alterações características na região da retina.
O nervo óptico (Nervos opticus), corno órgão de ligação entre o olho e o encéfalo, é uma parte do sistema nervoso que revela uma sensibilidade muito especial perante pertubações da irrigação sanguínea e de falta de oxigénio. Fases perinatais de irrigação sanguínea diminuída do sistema nervoso central podem levar a um defeito (atrofia) do nervo óptico que pode ser pouco significativa, ligeira, parcial ou total. Estas alterações são diagnosticadas com um oftalmoscópio por um oftalmologista experiente no exame do fundo do olho. Encontramos turvação congénita do cristalino (catarata-cinzenta) sobretudo em crianças devido a embriopatia da rubéola, em prematuros devido a asfixia na altura do parto e ainda em crianças que no decurso do desenvolvimento se tornam espástico-paréticas.
Uma perturbação de natureza especial é a fibroplasia retrolental. Neste caso, existe, atrás do cristalino, um espessamento tissular amarelo-acinzentado de fibroplasto que, ao contrário da catarata cinzenta, devido à sua localização não permite tuna intervenção cirúrgica. Nota-se esta turvação com relativa frequência nos prematuros com pouco
peso e, até agora, pensava-se que seria causada por um excesso de oxigénio na incubadora. No entanto, parece que deve ser atribuída a esta perturbação especial uma certa predisposição e que devem ter também um papel importante as cargas pré-natais.
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Perturbações visuais existentes mesmo no encéfalo são de atribuir à destruição bilateral da região óptica; chama-se a isto cegueira cortical. Entende-se por cegueira cortical um estado que resulta ou é causado por lesões na região dos campos da memória óptica, isto é, das fases que levam a esta; o mundo em redor é abrangido opticamente mas não é reconhecido no seu significado.
Para uma grande parte do tipo de crianças com lesão de origem cerebral, com graves perturbações do desenvolvimento, as dificuldades da visão devem ser definidas como cegueira perceptiva. Por isso, faltam simplesmente as capacidades de compreensão mental mais necessárias: as impressões ópticas não são assimiladas devido à oligofrenia em elevado grau. Em particular neste tipo de doentes e, de igual modo, em doentes com uma das várias formas de perturbação visual, nota-se um fenómeno interessante: enquanto oftalmologistas consideram uma criança cega, os familiares comprovam com frequência que a criança de vez em quando vê e reconhece. Em exames de controlo de evolução nota-se com frequência que ambos podem ter razão. Por um lado existe, sem dúvida, uma restrição acentuada da acuidade visual, por outro lado a criança consegue. sobretudo quando está interessada num dado processo, aproveitar melhor ou pior certos resíduos da acuidade visual. Por isso, o diagnóstico de cegueira devia ser emitido com cuidado e reserva.
Tomam uma grande proporção as perturbações da capacidade de mover os olhos, em crianças com lesão de origem central. Podem referir-se 2 tipos: o estrabismo (vesgo) e o nistagmo (movimentos involuntários bruscos do globo ocular). Num total de 1570 doentes com paralisia cerebral espástica, podemos constatar estrabismo em 81 % dos casos e nistagmo em 24%. No mongolismo (à volta de 1500 doentes), encontrava-se estrabismo em 59% e nistagmo em 17%. 0 estrabismo convergente bilateral (com olhar simultâneo) e o estrabismo unilateral alternante (uma vez tini olho, outra vez o outro olho) são os tipos mais frequentes desta perturbação visual. É de salientar que o estrabismo do filho faz-se notar aos pais, nunca logo após o nascimento, mas a maior parte das vezes somente entre o 3.° e o 9.° mês de vida.
H. D. GNAD e A. RETT fizeram exames de oftalmologia a 420 crianças mongolóides. Os autores encontraram epicanto (uma prega da pele em forma de foice pequena que vai até ao canto interior do
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olho) em 46% dos casos, posição do eixo da pálpebra mongolóide em 72%; 40% dos doentes tinha perturbações da visão binocular; na íris foram detectadas manchas de Brushfied circulares em 86%; em 55% apareciam alterações do cristalino.
Notava-se estrabismo convergente em 28% e divergente em 3%. Daqui deduz-se que em crianças com lesão cerebral se nota estrabismo 20 vezes mais do que em crianças saudáveis.
A observação da acuidade visual foi conduzida neste exame, em princípio, com o espelho de esquiascopia. Ressaltou de forma espantosa que a criança mongolóide de início tem uma visão normal, no entanto a atenção diminui com imagens mais pequenas. Assim, devia ser decisivo para uma boa avaliação da visão, sobretudo o quociente de inteligência. A aproximação do objecto, comportamento característico das crianças mongolóides, serve, sem dúvida, para aumentar a imagem na retina.
Tal como todas as especialidades, a oftalmologia exige uma orientação especial para o desenvolvimento global da criança. Não tem sentido, e é perturbador para o desenvolvimento da criança com lesão cerebral, adoptar, sem reservas, a terapia habitual da catarata para a criança intelectualmente normal e sem perturbações na motricidade, ou a terapia com pala para o estrabismo ou os óculos foscos. É frequente devido a esta terapia, sem dúvida «violenta», a criança com lesão cerebral, sobretudo a criança com perturbações de movimentos, perder a motivação para acções motoras autónomas, porque com a visão alterada devido ao estrabismo é quase totalmente anulada a acuidade visual ainda existente. O objectivo do método - forçar o olho estrábico a fixar correctamente - não consegue ser sempre atingido. Antes, desenvolve-se um quadro defeituoso neurótico progressivo, com dores de cabeça e insegurança aumentada. As crianças arrancam os óculos ou as palas, os pais obrigam-nos num esforço inglório. Chegámos à conclusão que, naturalmente sempre dependente do grau de perturbação de desenvolvimento, a operação é o único caminho a seguir como tratamento.
A actividade benéfica das escolas modernas de cataratas precisa, em proporções especiais, da compreensão dos problemas da criança. Se esta falta, no caso de crianças oligofrénicas e não existe colaboração entre professores e pais impacientes que não querem perceber isto, então a criança é verdadeiramente violentada.
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A receita dos óculos é por vezes apenas um alibi, para que se diga que se fez alguma coisa. A determinação quantitativa da acuidade visual, isto é, da deficiência visual encontra grandes dificuldades porque os dados da criança são apenas relativamente fidedignos. A esquíoscopía a realizar com anestesia fornece dados aparentemente exactos, mas dos valores obtidos por este meio já se pode concluir que os óculos receitados são por vezes inadequados. De acordo com a experiência, a criança usa óculos de boa vontade quando sente de facto uma melhoria da visão. Defende-se contra os óculos quando «nada adiantam».
Mas qualquer oftalmologista, quando lhe aparece uma criança com perturbações da visão, sente-se levado a receitar óculos: daqui resultam problemas de educação difíceis que encontram o seu ponto alto quando o utilizador insatisfeito parte, atira fora ou esconde os óculos. O nistagmo perturba a visão devido aos movimentos constantes dos olhos, que não conseguem fixar um objecto uma só vez durante algum tempo. Encontramos este sintoma desagradável com frequência, sobretudo em crianças com hidrocefalia resultante de icterícia nuclear`e de encefalite.
As perturbações na área da percepção dos órgãos dos sentidos levam com frequência a atraso na área intelectual, embora não exista perturbação congénita do desenvolvimento. Mas no que se refere à visão aponta-se já para um paradoxo interessante. Verificam-se, com frequência superior à média, perturbações da visão em crianças com inteligência superior à média. J. L. KARLSSON demonstrou em 1975 que com a miopia aumenta também o quociente de inteligência. Em alunos na Califórnia a pontuação média dos míopes era de cerca de 10 pontos mais elevada. Já no século passado se falava de «miopia escolar» (P. E. BECK6t ). A miopia - e isto pode deduzir-se de exames de gémeos - parecè ter um efeito positivo no desenvolvimento da inteligência.
Então, se a miopia deve ser entendida como consequência de leitura excessiva e em geral consequência de concentração óptica ou se os que usam óculos tendem mais para actividades menos perigosas, isto é, devido a isso, tendem mais para ler, é naturalmente difícil de dizer. Este paradoxo não é muito fácil de explicar.
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19.2 PERTURBAÇÕES DA AUDIÇÃO
A audição como processo biofísico pode estar alterada, com maior ou menor frequência, no caso de lesões de origem central na criança. Lesões nesta área são especialmente graves, pois a fala está ligada directamente à capacidade auditiva, como meio de expressão mais importante do intelecto.
Antes da era dos antibióticos, a chamada surdo-mudez era um quadro clínico relativamente frequente e muito comum. Partia da otite média purulenta (inflamação purulenta do ouvido médio) sofrida na infância ou em bebé, a qual conduzia a uma perda progressiva do aparelho do ouvido médio e, com isso, à surdez. A criança deficiente, ensurdecida desta forma, não tinha ainda ou tinha apenas um desenvolvimento mínimo da fala e por isso se tornava muda também.
Tais quadros clínicos, assim condicionados, na periferia, são hoje extremamente raros, se compararmos o seu número com os de antigamente, antes da era dos antibióticos, em que os surdos eram tão numerosos que se agrupavam em associações (associações políticas, associações culturais e desportivas). Nós temos de lidar agora muito mais com casos, em que carecem de tratamento as deficiências de audição consideradas mínimas a ligeiras. Naturalmente existem ainda vários graus de surdez. As deficiências de audição aqui referidas como mínimas não são tão conhecidas como seria desejável no que se refere ao seu significado para o desenvolvimento mental da criança atingida.
Exames audiométricos em série, em alunos do t.°,ano, contarão de futuro para o registo «standard» de uma medicina rhoderna preventiva. Exames na Alemanha (E. VENN, 1979) revelam de forma bastante significativa como podem ser avaliadas de forma incorrecta as crianças com ligeira deficiência auditiva, se esta perturbação auditiva não for conhecida atempadamente. Se anteriormente era quase impossível ou estava condicionado um teste auditivo exacto, com os avanços técnicos progressivos obtiveram-se melhorias significativas. Segundo E. VENN pode-se contar, através de processos modernos, com unia segurança das afirmações que corresponde à metodologia psicológica de testes.
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É assustadoramente elevada a percentagem de crianças com problemas auditivos entre os alunos do 1.' ano; em Bremen, de entre 387 alunos do 1.' ano, foram detectados 28,3% com deficiência auditiva; R. EHMANN diagnosticou nos alunos do 1 ° ano 24% com deficiência auditiva e 48% com dificuldades de aprendizagem. Justamente em crianças em idade escolar, a deficiência auditiva não detectada pode conduzir a uma dificuldade de aprendizagem genérica e por vezes irrecuperável, devido à qual tais crianças são descritas como pouco inteligentes no sentido habitual. A deficiência auditiva origina precisamente uma redução da capacidade que, por vezes, é atribuída a preguiça, falta de atenção ou falta de concentração, por ignorância de pedagogos e pais.
Num diploma do Ministério da Saúde escocês lê-se: «Nenhuma criança deve ser classificada como pouco inteligente antes de ser submetida a um exame de audição. Crianças que já foram classificadas também devem fazer um teste auditivo, caso não o tenham feito antes».
Na área das lesões cerebrais infantis, estão em primeiro plano as perturbações auditivas exógenas. Consideram-se como lesões do ouvido interno (Laesio auris interna) as consequências de infecções pré-natais (embriopatia da rubéola, infecções virais, toxoplasmose, lesões químicas e lesões por radiações), perturbações asfíxicas peri-natais e lesões cerebrais pós-natais, sobretudo encefálicas. A surdez total é relativamente rara, existem com frequência resíduos de audição mas, tal como acontece com a visão e com os resíduos da visão, somente são utilizados quando a criança quer ouvir. Querer ouvir depende também, no caso da criança com lesão cerebral, das condições emocionais e afectivas.
Diferenciar as perturbações da audição, delimitar umas das outras as várias possibilidades, torne-se tanto mais difícil quanto menor for o nível de inteligência da criança. Muitas crianças são sensíveis somente a tons altos e penetrantes, em muitas a capacidade de recepção está dependente também da hora do dia, do bem-estar e do tempo. As oscilações da capacidade de recepção são muito grandes e conduzem sempre a apreciações erradas.
A surdez neuro-sensorial, na nossa área de trabalho, é muito mais frequente do que a surdez de transmissão ou de condução. O teste da capacidade auditiva exige grande experiência.
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Não se pode pôr em dúvida que nestes casos, e precisamente nestes casos, o exame de audiometria tem imensa importância. A mesa de BIESALSKY, com a chamada audiometria com jogo com a câmara silenciosa é nestes casos imprescindível. A experiência quotidiana revela que é necessário o exame feito anteriormente ao canal auditivo, que, por vezes, é necessária a repetição do teste e que a capacidade de contacto do examinador com a criança é tanto mais importante quanto mais difícil é a criança. O estado da garganta, das amígdalas, dos adenóides (vegetação do ouvido e do nariz) são factores que devem ser ponderados no exame e nas consequências daí resultantes. Nem sempre a tonsilectomia e a adenoidectomia levam à melhoria desejada.
A audiometria com EEG, através da qual, em sono provocado por medicamentos, é testada a reacção do cérebro aos tons, determinada através do EEG (retirando assim o que parece objectivo e as influências de natureza externa), parece o método mais exacto. A sua aplicação ocupará um espaço cada vez maior mas também não está livre de certos problemas. Os efeitos de perturbações auditivas na fala são consideráveis. Elas condicionam o comportamento da criança, aumentam a inquietação psicomotora e fomentam modos de comportamento autistas.
A utilização de próteses auditivas em crianças com lesão de origem central é por si só um problema. As perspectivas de êxito de uma tal medida não dependem só da natureza e do grau de surdez mas também em especial da capacidade intelectual, por conseguinte da valorização prática.
Em princípio, pode dizer-se: quanto menor for o nível de inteligência, menor será a oportunidade de obter uma melhoria autêntica através de uma prática auditiva. Independentemente do facto de muitas crianças, tal como acontece com os óculos, recusarem a prótese auditiva porque não conseguem compreender a sua utilidade, é difícil também no dia a dia verificar a melhor sintonização do aparelho, de um momento para o outro. Muitas crianças, devido a deficiente sintonização, ficam com dores de cabeça e é frequente também que, apesar da sintonização adequada, as oscilações individuais no que se refere à disposição da criança (sobretudo relacionadas com as mudanças do tempo) alterem a acção da prótese auditiva. Em crianças com lesões cerebrais - tal como acontece com as perturbações
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motoras e visuais - reconhece-se com frequência o sintoma condutor, em princípio como sinal isolado. Assim verificam-se parecias espásticas cerebrais, primeiro através da dificuldade da abdução, sendo diagnosticada e tratada eventualmente uma luxação da articulação coxo-femural. De igual modo, nas perturbações auditivas, por vezes não se dá como possível causa o sistema nervoso central e todas as dificuldades da criança são relacionadas com a perturbação auditiva. Portanto será de espantar que a criança passado pouco tempo já não queira usar a prótese auditiva e a deixe ficar na gaveta?
Mas tem de afirmar-se também que uma surdez ou uma cegueira congénitas podem não estar ligadas forçosamente a perturbações da capacidade intelectual; segundo P. E. BECKER, perturbações congénitas das funções de percepção não estão ligadas forçosamente a aptidão intelectual abaixo da média. Sobretudo, devia colocar-se em primeiro plano aquele dado que é designado na investigação hospitalar como «sensory deprivation*». Uma deficiência no estímulo sensorial pode levar a maior ou menor desenvolvimento da inteligência.
Segundo R. M. SALZBERGER e L. F. JARVIK, 1963, os surdos-mudos
têm uma diminuição de 20% da inteligência. O exemplo tornado célebre de HELLEN KELLER revela, no entanto, como existe a possibilidade de realização do potencial genético existente. Em princípio pode dizer-se, no que se refere à audição e à visão, que as perturbações da recepção dos sentidos, quando existem em grau diminuto, agravam qualquer outra deficiência e dificultam o seu tratamento terapêutico-pedagógico. O exame da capacidade auditiva e visual de cada criança deficiente, por qualquer motivo, é por isso uma condição «sine qua non» para todos os programas consequentes possíveis. Sabemos hoje muito bem que as' deficiências auditivas referidas devem ser atribuídas sobretudo às inflamações do ouvido médio não curadas completamente. Anteriormente, as dores de ouvidos da criança causavam medo aos familiares. Agora os pais põem gotas de um medicamento com efeitos locais, geralmente de «motu proprio», ou dão com naturalidade, em pequenas doses, um antibiótico que já está sempre à mão. Quando a dor desaparece, param com o antibiótico. A falta de controlo médico leva a recidivas e a secreção
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* Tradução: privação sensorial.
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crónica do ouvido médio e com isso a diminuição da capacidade auditiva. Uma otite média não tem importância agora mas talvez uma doença subsequente grave exija a terapia exacta e consequentes exames médicos de controlo.
Não há dúvida que em crianças com atraso mental, uma diminuição da audição vem dificultar a acção pedagógica e distorcer a apreciação das crianças. Sabe-se que não raras vezes, a partir de uma ligeira perturbação da audição, pode chegar-se à tendência para dislexia acústica.
Capítulo 20
PERTURBAÇÕES DA FALA
À medida que decorre a vida das crianças deficientes, melhor se apercebe o observador da grande importância da linguagem. Se se tiver oportunidade de conviver com uma criança deficiente, desde a primeira fase do seu desenvolvimento até à idade adulta, torna-se evidente que factores constituem a sua linguagem, isto é, como esta está limitada. A linguagem é um processo dinâmico evolutivo que como que se projecta na tela da idade adulta e da fase da inteligência e que, no decorrer dos anos, é influenciada sempre por novos factores. No entanto o observador somente se pode aperceber quanto a linguagem, em todas as suas dimensões, funções e facetas, está ligada ao meio ambiente do deficiente, se seguir de perto durante anos o destino singular do deficiente.
Esta é a posição do médico que trata deficientes há quase 30 anos e já acompanhou cerca de 3000 doentes durante mais de 20 anos, o que o legitima a dizer algo sobre a linguagem do deficiente, sem se preocupar com os problemas de método da pedagogia terapêutica da linguagem e da terapêutica da fala, mas preocupando-se somente com o ponto de vista analítico e de diagnóstico do médico e talvez com a dedicação humanitária das pessoas envolvidas.
O tipo de perguntas que o médico tem de enfrentar vai das perguntas dos familiares «O meu filho conseguirá falar?» até à pergunta «Porque é que o meu filho não fala'?» até à resignação «Porque é que o meu filho deixou de falar quando falava tanto e tão bem antes?» Nos nossos tempos já não se podem aceitar esperanças vãs
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como «já vai tornar-se» ou «voltará a tornar-se». A compreensão imediata e o diagnóstico precoce da deficiência em todas as suas dimensões é, hoje em dia, condição «sine qua non». Sabemos que lesões organo-encefálicas levam quase sempre a consequências complexas, que raras vezes perturbam apenas a motricidade ou só o intelecto ou só o comportamento ou só a linguagem. As ligações nunca vistas dos vários círculos de funções do sistema nervoso central levam forçosamente à perturbação pluridímensional. E como o intelecto e o comportamento dependem muito estreitamente das possibilidades de expressão linguística e da capacidade de comunicação - quem duvidaria disso?
A variedade do tipo de lesão conduz também à variedade dos sindromas, e por sua vez a uma variedade muito grande de sintomas e de tipos de sintomas no domínio da linguagem. No entanto, por muito variada que possa ser a sintomatologia, temos conhecimento no domínio da linguagem, tal como nas outras áreas do organismo e da personalidade, de uma série de sintomas axiais que se encontram em quase todas as crianças com dificuldades na linguagem e que devem ser consideradas no nosso diagnóstico, mas sobretudo no plano da educação e que não podem ser simplesmente vistos por alto nas nossas actividades terapêutico-pedagógicas da linguagem.
No exemplo do Sindroma de Down, no caso do deficiente mental, deve apresentar este sistema de sintomas axiais.
1. À excepção do «tagarelar» sem sentido, só se pode contar na generalidade com o início da linguagem activa depois de a criança ter aprendido a andar sozinha. Isto significa que a criança, ao que parece, deve concentrar e orientar todas as suas energias' primeiro para a sua motricidade. Só então quando a motricidade se transformou no acontecimento desejado, a criança vai libertar aquela energia necessária para a linguagem activa.
2. A capacidade de falar, ao que parece, nos primeiros anos, está por detrás da compreensão da linguagem. Somente no decorrer de uma evolução positiva da linguagem se processa, nesta discrepância, um maior ou menor equilíbrio. As avaliações e comportamentos errados do meio ambiente, resultantes desta diferença levam infelizmente quase sempre
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ao início tardio de medidas terapêutico-pedagógicas da linguagem.
3. Quanto mais acentuada for a deficiência mental, maiores serão os esforços da criança deficiente para «evitar» a linguagem, isto é, para a substituir por gestos, olhares e actos. Quanto mais rápida e mais bem sucedida for nesta tentativa, menores serão os seus esforços para a expressão oral.
4. A criança suficientemente desenvolvida na linguagem, que aprende a falar nesse estádio de atraso, não tem consciência logo nos primeiros anos das suas dificuldades na linguagem. Com o decorrer dos anos, e em simultâneo com o adquirir de experiências relativamente à reacção do meio ambiente à sua linguagem, toma conhecimento, por vezes de forma dramática, das suas dificuldades. Isto conduz forçosamente a inibições que se revelam no estreitamento do contacto pela linguagem, até ao isolamento total bem como ao gaguejar e balbuciar. Quem não conhece aquelas crianças que já mal falam no contacto com outras pessoas e que, no entanto, quando estão sozinhas mantêm conversas, numa linguagem viva e muito fluente. Nesta conversa a criança está livre de críticas à sua linguagem, o interlocutor imaginário não diz: «fala claro», «repete» ou «não te entendo». No estudo de mais de 3000 jovens e adultos, pôde observar-se a inevitabilidade trágica desta evolução.
Neste tipo de crianças existem poucas que não comecem a gaguejar um dia. Sobretudo quando o doente não domina bem o tema
das suas manifestações orais e o vocabulário respectivo. ou no contacto com pessoas estranhas ou com as quais tem pouca confiança.
Não é por acaso que com esta redução da linguagem aumenta também a postura em flexão da cabeça e do tronco, o isolamento toma-se maior, e resulta destes contactos cada vez mais raros o empobrecimento progressivo da linguagem e um esvair-se da confiança com os familiares. Assim, torna-se evidente um dos vários círculos viciosos que o problema da deficiência apresenta hoje em dia.
Esta visão da linguagem do deficiente só pode ser posta de lado naturalmente, se for possível seguir durante anos e dezenas de anos o destino de um grupo isolado ou dos grandes grupos. Talvez seja
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exagero se afirmarmos que dedicámos tanto tempo à criança deficiente na infância e na idade escolar e não damos atenção, ou damos muito pouca atenção, aos anos que se seguem. Se pensarmos que a esperança de vida do deficiente, salvo raras excepções, se aproxima hoje em dia da média da população em geral, ressalta daqui uma série de desafios:
1. As medidas terapêutico-pedagógicas da linguagem devem começar atempadamente e devem ser aplicadas de forma intensiva de maneira que o deficiente se sinta seguro da sua linguagem na juventude e na idade adulta - possa utilizá-la como meio de comunicação.
2. Caso isso não seja possível, deve exigir-se sempre ao deficiente que mantenha o uso da linguagem durante toda a vida.
3. A exigência da linguagem, do diálogo e da comunicação deve ser amplamente alargada e não ficar limitada aos que estão mais próximo.
4. As pesssoas que tratam o deficiente devem ser formadas e informadas sobre as suas possibilidades e obrigações da linguagem.
Neste ponto, chama-se a atenção para o facto de ser necessário imenso tacto e táctica, para conseguir que a linguagem da criança tenha sentido, sem lhe fazer sentir as suas dificuldades através de correcções constantes.
A noção, tantas vezes abusiva, do complexo de inferioridade pode ser demonstrada sob a forma clássica neste tipo de acompanhamento do deficiente. Há três possibilidades de reacção:
1. Ultrapassar o erro ou as dificuldades através do treino sistemático. Para isso é necessário, em primeiro lugar, o conhecimento da perturbação e uma análise etiológica, capacidades que faltam quase sempre à criança deficiente mental.
2. Evitar a agressão que, por vezes, se volta contra aquele que concentra os seus esforços na criança.
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3. O aparecimento da depressão: depressão significa sempre isolamento, estreitamento dos contactos sociais.
Nas crianças deficientes mentais assistimos com frequência à combinação dos pontos 2. e 3.. Mas quem não conhece também aquelas crianças, com deficiências físicas muito graves, mas com inteligência normal, nas quais a rigidez de todos os músculos intervenientes na fala inibe a articulação até à «mudez», nas quais, numa mímica dramática, por vezes somente na expressão do olhar, se pode reconhecer todo o processo da palavra «Negação», no sentido mais exacto mas utilizada de forma incorrecta na linguagem corrente.
Só podemos ter em conta o significado da pedagogia terapêutica da linguagem se conhecermos a perturbação organo-encefálica nos seus complexos efeitos. Se reconhecermos estes, então deduzir-se-á daí, forçosamente, que temos de aplicar todas as medidas necessárias tanto no sentido vertical como no sentido horizontal. No sentido vertical, no qual conhecemos todos os factores orgânicos, intelectuais e psíquicos necessários à linguagem e vemos e tratamos a linguagem como parte de um todo; no sentido horizontal, no qual consideramos a pedagogia terapêutica da linguagem como tarefa, a longo prazo, a começar pelas indicações e mais tarde, enquanto perdura, até à solução do problema. Se isto não for possível, deve considerar-se a pedagogia terapêutica da linguagem como medida terapêutica a aplicar durante toda a vida. Qualquer tentativa para nos libertar desta obrigação, seria incorrecta socialmente. É mesmo indispensável no tratamento da fala, que seja integrado na equipa de tratamento o terapeuta da fala, isto é o logopediatra, que ele recorra aos familiares, à educadora de infância, à professora e aos outros terapeutas como co-terapeutas. Todas as medidas pedagógicas e terapêuticas são acompanhadas pela linguagem, devem encaminhar-se para a fala.
O significado da linguagem no desenvolvimento da criança nunca foi tão visível como no caso da criança deficiente, na qual estão diminuídas a capacidade e a possibilidade de manifestar pensamentos, sensações, desejos, pedidos, medos, alegrias, fome, sede, fúría. A linguagem como instrumento mais significativo da comunicação - onde é que esta revela melhor a sua função do que neste domínio'?
Capítulo 21
O SONO
Consideramos higiene do sono todas aquelas medidas que garantem um sono saudável e revitalizante. A este respeito muito pode estar alterado no caso da criança com lesão cerebral. Os familiares podem ser capazes de garantir isso mas, no entanto, pode ter enormes consequências para a criança e para a família. Em primeiro lugar chama-se a atenção que, tal como em multas crianças saudáveis, os cobertores por vezes são de tal modo quentes que as crianças são obrigadas a destapar-se. E porque as crianças afastam os cobertores, vestem-nas à noite com roupas quentes e apertadas.
Deste modo não conseguem manter um sono saudável.
O facto de as crianças com lesão cerebral terem de usar durante mais tempo do que as crianças saudáveis fraldas de noite, também provoca grandes dificuldades na educação e nos cuidados a prestar. A cueca plástica, sendo muito quente e húmida, sem dúvida constitui uma agravante, no entanto, na maior parte dos casos, por razões práticas, não se deve manter por muito tempo. Não se pode esquecer que o quarto de cama não é e não pode ser sempre silencioso, que muitas crianças têm de dormir no mesmo quarto, onde a família se senta à frente da televisão.
Ir para a cama é' um drama para muitos dos nossos doentes, irrompe a teimosia de tal modo que ir dormir se torna uma luta diária. Se a criança sai vencedora - uma não dorme sem a luz acesa, outra não dorme sem a mão da mãe ou somente depois de lhe can-
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tarem uma determinada canção. A maior parte das vezes exige a presença da mãe, e é espantoso o tempo que a criança grita até a mãe aparecer; por outro lado, a mesma criança adormece imediatamente quando sabe que de nada serve gritar, porque a mãe não vai ter com ela de modo nenhum. Este é um novo cenário das pequenas lutas entre a criança e os seus familiares tal como já descrevemos nos problemas da alimentação.
Um problema importante, com consequências eventualmente profundas, é «pôr na cama» a criança com lesão cerebral. Quanto a isto, em primeiro lugar tem de salientar-se que existe uma grande diferença entre a relação do contacto normal, absolutamente compreensível no aspecto psicológico, entre o corpo da mãe e o corpo da criança e aquele direito ao lugar na cama da mãe (por vezes também do pai), forçado a significar o sintoma do abandono do mimalho. Precisamente aquela diferença que existe entre a criança saudável e a criança com lesão cerebral, segundo a qual nesta última este desejo se mantém por vezes até à juventude e mesmo não raras vezes até à idade adulta, pelo que isto se baseia naturalmente no desconhecimento do absurdo de uma tal exigência. O pai e a mãe de uma criança com lesão cerebral conhecem a situação em que a criança é levada pela primeira vez para a cama da mãe. Para isso há várias razões. Primeira razão, a criança acalma e deixa de gritar e não incomoda os outros membros da família. Sobretudo, existe o receio que os gritos de noite possam acordar os restantes membros da família.
Outras razões: a criança não consegue virar-se sozinha; perde muitas vezes a chucha; receia-se que tenha, sem se notar, uma crise epiléptica.
Todas as razões apontadas, e outras ainda, têm, à partida, a sua justificação. Mas os familiares dão-se conta que, a partir de certa altura, a criança começa a exigir um direito evidente ao lugar na cama da mãe. É espantoso como esta criança começa a gritar todas as noites, quase com a precisão de uni despertador para que a levem para a cama da mãe, ou sai da sua própria cama para ir por si própria para a da mãe e como por vezes já não está disposta a adormecer na própria cama. Em muitos casos é impossível inverter a situação. As exigências são reforçadas com a teimosia e uma subtileza notável próprias da criança com lesão cerebral e os pais reconhecem sempre demasiado tarde as implicações reais, em qualquer dos casos, dema-
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siado tarde para terem ainda força e possibilidade para alterarem a situação.
Este «direito» ao lugar na cama da mãe leva, em muitos casos, mais tarde ou mais cedo, o pai a sair da cama e ir para outro quarto. Nestes casos, deve chamar-se a atenção para a variedade de problemas psicológicos e, mais tarde ou mais cedo, problemas sexuais que surgem para a criança, para a mãe, pai e para os irmãos.
Capítulo 22
ENURESE E ENCOPRESE
22.1 ENURESE
Deixar-se urinar, no caso da criança com lesão cerebral, isto é, a micção descontrolada é um sintoma bastante frequente. No essencial, nestes casos temos de distinguir 2 fenómenos:
1. Crianças que se deixam urinar e que ainda não têm hábitos de higiene, isto é, que nunca tiveram controlo de urina.
2. Crianças que já tiveram hábitos de higiene e que voltam a deixar-se urinar.
Não temos dúvida que o controlo da urina e das fezes é uma meta muito importante no desenvolvimento da criança com lesão cerebral, e não só pode ter significado pedagógico mas também representa um conhecimento do comportamento e do desenvolvimento psíquico. Tomar-se limpo, «no caso da criança saudável», é um processo dependente de condicionalismos. A criança sabe, por experiência própria, que neste processo mais ou menos longo o que esperam dela e também que é mais conveniente para ela fazer chichi e cocó nos locais próprios do que continuar com as fraldas. Aumenta a vontade de se «controlar», pois, a partir dessa altura a concentração e o cheiro da urina e das fezes tornam-se mais desagradáveis. Falta à criança deficiente mental principalmente o «reconhecimento» da necessidade. Sentada muito tempo no bacio, bloqueia o músculo esfíncter
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da bexiga e do intestino para, mal sai do bacio, ou depois de lhe porem a fralda, fazer chichi ou cocó espontaneamante. Tudo voltou à situação habitual e por isso está criada a condição para o esvaziamento. Mesmo a criança saudável passa por esta «fase de transição» mas durante pouco tempo. No caso da criança deficiente, esta fase prolonga-se por mais tempo, por vezes dura uma vida inteira.
Os hábitos de higiene constituem um processo de controlo longo e cansativo que só atinge os objectivos se for conduzido de forma consequente e se se suceder com regularidade, hora a hora, o hábito de se sentar no bacio. Só assim se poderá atingir o objectivo - limpeza. Não tem sentido, nem se deve aplicar nestes casos, a terapia medicamentosa.
O segundo grupo é muito numeroso. Uma das causas mais frequentes para consulta médica é o facto de crianças ligeiramente atrasadas ou com inteligência normal, mas com comportamento difícil, começarem de novo a fazer chichi na cama, quando anteriormente já tinham adquirido hábitos de higiene. A nossa experiência ao longo de 10 anos permite-nos expor a nossa opinião sobre este problema e reconhecer que:
Não há medicação que possa curar a enurese.
Não há métodos que levem a atingir os objectivos com 100% de certeza.
Os êxitos verificados através da acupunctura, dos sistemas de alarme eléctrico, terapia do comportamento e outras semelhantes devem ser considerados isoladamente e de preferência como casuais.
A medicação e a acupunctura atingem uma percentagem de êxito entre 2 a 5%; mas não se conseguiu provar a sua acção específica.
De acordo com a nossa experiência, o único método de tratamento é ignorar esta perturbação, isto é, não castigar ou ralhar quando «acontece» nem mostrar satisfação ou dar os parabéns quando «não acontece».
É de salientar que, para os familiares, ignorar totalmente é, sem dúvida, o método mais difícil. E muito difícl mostrar paciência e reserva durante um longo período de tempo. A questão, se, quando e durante quanto tempo deve ser usada a cueca plástica, deve ser decidida, caso a caso. Ene princípio, aconselhamos a porem na cana as crianças sem isso, até porque a limpeza se torna mais difícil.
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Toda a gente sabe que a enurese só em 1 % dos casos tem origem orgânica, não têm qualquer influência as deformações, paralisias ou inflamações da bexiga.
Estão quase exclusivamente em primeiro plano razões psíquicas que muitas vezes são complicadas, no entanto outras vezes são simples e reconhecem-se imediatamente. Quando, por exemplo, a mãe de uma criança mais crescida trata do seu bebé ou do filho deficiente, muda, lava com sabonete e põe pó e o filho mais crescido pode ou tem de presenciar, então ninguém se pode admirar se esta criança tiver o desejo, lá no íntimo, de ser tratada assim. Este desejo invade o seu subconsciente e torna-se realidade contrária à razão e à maturidade mental. Com frequência, não se dá conta que a enurese pode ser um sinal de alarme ou um apelo que pode aparecer por vezes como o único sinal de tensões na família, no jardim de infância, na escola.
A terapia medicamentosa da enurese tem, tal como já foi acentuado, limites apertados. A sua receita pode ser apenas uma tentativa, tem também a função de apoio a um processo de controlo por vezes cansativo e longo.
22.2 ENCOPRESE
O domínio da saída das fezes verifica-se, a maior parte das vezes, antes do controlo da urina. Quando uma criança, depois de ter adquirido hábitos de higiene e de ter o controlo de fezes e urina, começa de novo com incontinência fecal, então levanta-se um sinal de alarme muito mais primitivo e por isso mais significativo. A criança que faz cocó durante a aula é levada mais cedo «para casa», castigada com mais severidade, dá muito nas vistas. A maior parte das vezes a causa estará num processo muito mais grave do que no caso da enurese.
As investigações mais recentes invalidam cada vez mais o preconceito habitual de que a encoprese assentaria na falta de hábitos de limpeza. R. FRIED (1981) chama a atenção que, nestes casos, estão em primeiro plano problemas familiares. Já podem ser reconhecidos aos 2 anos de idade hábitos de incontinência fecal os quais sígnifi-
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cam uma relação perturbada pais-criança. Fano demonstra, através dos seus exames, que a encoprese está relacionada com frequência com separações traumáticas, ausência permanente e longa dos pais, actos de violência e acontecimentos que marcam psiquicamente. Qualquer terapia, que se volte exclusivamente para a criança com encoprese, não é suficiente nem satisfatória, segundo a opinião de FRIED. Uma terapia eficaz tem de se ocupar da situação e ligações famíliares, deve conhecer as raízes do problema na estrutura familiar para garantir um desenvolvimento psíquico saudável do doente.
A criança com lesão cerebral, que nunca conseguiu controlar a urina e as fezes, é um problema difícil de tratar. Isto não só é difícil para os familiares que o têm de lavar e limpar e que por vezes têm de tratar também feridas graves, mas de igual modo para a própria criança que, em muitos casos, instintivamente sente um grande mal-estar psíquico e físico sem poder dominar as suas causas.
Capítulo 23
A ALIMENTAÇÃO
Apesar de toda a diversidade na sintomatologia, existem sintomas principais evidentes tanto no aspecto físico como no aspecto psíquico-mental, de tal modo que a noção de lesões cerebrais infantis, não obstante a grande quantidade de manifestações externas, contém muitas particularidades específicas. Estas estão em menor evidência no físico e mais visíveis no comportamento e nas dimensões determinantes do desenvolvimento e de igual modo na área da alimentação, pelo que é de acentuar que se encontram ligações muito estreitas entre as perturbações do comportamento e alimentação sobre a qual vamos tecer algumas considerações.
Enquanto a alimentação do bebé saudável, da criança na l.a infância ou da criança em idade escolar, hoje em dia não apresenta problemas, na criança com lesão cerebral têm importância factores de perturbação que podem influenciar muito tanto na nutrição como na assimilação. Assim, sabemos somente através de mães de crianças com lesão cerebral que estas nos primeiros meses de vida são demasiado preguiçosas a beber. Sobretudo nos casos de doentes com paresia cerebral espástica o sintoma precoce característico da doença é a deficiência em engolir, pondo a vida em perigo. Nota-se que as crianças com lesão cerebral, apesar do peso normal, na altura do nascimento, por vezes não conseguem tomar as quantidades normais em tempo normal, e dizem que estas crianças nos primeiros meses teriam sido formidáveis, isto, mal choravam, apenas «choramingavam» baixinho. A alteração do sistema nervoso central provoca, ao que
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parece, uma redução da energia natural desta criança. Durante o desenvolvimento, manifesta-se cada vez com mais nitidez um comportamento característico de todos os sindromas de lesões cerebrais de infância, nomeadamente a alimentação é forçada e escolhida segundo o princípio do menor esforço de absorção. Mastigar ou trincar só se consegue mais tarde porque, até aí, as crianças tomam apenas refeições ligeiras ou passadas, refeições que não têm de ser mastigadas e que podem ser engolidas simplesmente. Por vezes, é suficiente uma migalha de pão ou um grão de arroz para que a criança ponha tudo fora. Muitas crianças fecham a boca perante alimentos mais rijos, outras reagem aos alimentos mais rijos, não passados, com vómitos histéricos, o que leva a mãe a pensar que o filho tem um problema na deglutição e volta logo a recorrer aos alimentos passados. Além disso, aparece a preferência por certos gostos e sabores, o que acarreta uma alimentação pouco variada. A evolução desta perturbação do comportamento no que se refere à alimentação não fica por aqui. As mães, pensando que as crianças têm de comer ao menos alguma coisa, satisfazem sempre os gostos manifestados com a perseverança invulgar dos filhos. A criança com lesão cerebral aproveita com subtileza refinada estas cedências compreensíveis da mãe e a sua angústia, como se com isso pudesse indemnizá-la da lesão. Assim temos casos em que, crianças com 10 anos e até mais, continuam a tomar biberão; elas não querem mastigar ou trincar carne, pão ou fruta madura, comem apenas alimentos líquidos ou passados, isto é, pedaços de alimentos mastigados e sorvidos, sem anteriormente os terem partido ou mastigado.
Crianças com paresias espásticas cerebrais formam, até certo ponto, uma excepção pois sabemos que este tipo de paresias não só atinge a musculatura dos membros e do tronco mas também os músculos relacionados com a fala, a mastigação e deglutição. A energia necessária, a dispender pela criança, para movimentar este grupo de músculos é enorme, por isso é compreensível que mal consiga mastigar, engolir ou trincar normalmente nos primeiros anos.
No entanto, a preguiça para mastigar, trincar e engolir leva, ou devido à espasticidade referida ou devido à obstinação das crianças, a alterações quase sempre graves e irreversíveis na dentição, à cárie e gengivite. Consideramos que o desenvolvimento defeituoso físico e
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psicológico do comportamento podem influenciar de forma decisiva a alimentação, e conclui-se a partir daqui que tal pode determinar tanto a escolha como a assimilação dos alimentos introduzidos no tracto gastro-intestinal. Poder da digestão diminuído, estrutura e absorção dos alimentos alterados - consequências das deficiências descritas atrás - levam por sua vez a dispepsias da fermentação e assimilação, a diarreias, meteorismo, obstipação crónica, inapetência, anacidez e subacidez do estômago. No caso da criança com lesão cerebral, é muito significativo o bem-estar geral e a actividade normal não perturbada do estômago-intestinos, pois qualquer perturbação no organismo pode ter repercussões no quadro patológico e por conseguinte no comportamento.
Verificou-se que já não tem nada a ver com a cura da obstipação ou da diarreia, mas pelo contrário temos de proceder à regularização, isto é, à normalização através de dieta e de medicação para se obterem condições óptimas. Quando não é possível, devido às dificuldades de nutrição já referidas, fazer ingerir os alimentos óptimos para o tracto gastro-intestinal, temos de administrar as substâncias que são suficientes para manter o organismo quase em equilíbrio e assim garantir a sua estrutura inalterável.
Para isso, parece-nos necessário educar a criança com lesão cerebral a seguir uma alimentação natural e adequada à idade, isto é, habituá-la a mastigar e trincar e não nos resignarmos perante as dificuldades do comportamento da criança na 1.' infância, que pretende obter todos os alimentos passados ou líquidos. Por outro lado conseguimos regularizar, pelo menos em parte, a digestão e a absorção dos alimentos pela introdução de certos fermentos e de enzimas; se não se conseguir restituir a produção natural destas substâncias então a sua produção pode ser estimulada e pode ser substituída em certos períodos de carência específica.
É uma das tarefas principais do médico chamar a atenção dos pais, logo nas primeiras consultas, para o perigo deste tipo de alimentação pouco variado. Aqui vai-se travar, e gostaríamos de realçar com especial ênfase a primeira batalha entre a criança e a mãe para conseguir impor a sua vontade, uma batalha que se estende mais tarde a muitas coisas da vida, sem compaixão, para desgosto da mãe mas da criança também. As crianças com lesão cerebral aproveitam-se com unia subtileza nunca vista pelos familiares dos seus
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medos, para conseguir impor as suas vontades. Este comportamento começa já na alimentação do bebé; já nesta altura, para se ser eficaz, urge começar a dar uma educação adequada e necessária.
Encontramos, com muita frequência, uma problemática específica da nutrição nas crianças com lesão cerebral mais velhas ou já na juventude, sobretudo nas mongolóides e nas oligofrénicas, para as quais comer está cada vez mais no centro da vida quotidiana, devorar grandes quantidades de alimentos e sobretudo abundantes refeições e cujo peso físico conduz lentamente mas de certeza à deformação do aspecto físico. Aqui se inicia um círculo vicioso que dificilmente se consegue interromper. Quanto mais a criança come mais aumenta de peso, menor é a mobilidade, menor será a actividade física e por isso aumenta ainda mais rapidamente de peso. Chamamos a atenção para os vários doentes sobretudo jovens mongolóides, de ambos os sexos, que têm joelho valgo muito acentuado e pés chatos, mal conseguem andar devido ao peso e por isso, devido à limitação da mobilidade física, ficam cada vez mais limitados mentalmente.
Esta evolução verifica-se relativamente cedo, quando os pais, após anos «de magreza», ficam tão contentes porque o filho come e tão bem. Nestes casos é necessário, por vezes, indicar medidas drásticas para normalizar o peso. Quase sempre tais medidas, tão necessárias e urgentes, fracassam devido à incompreensão dos familiares que estão orgulhosos pelo facto de o filho comer tanto e tão bem.
Pode recordar-se, muito bem, reflectindo um pouco, onde começam e onde acabam os problemas da alimentação.
Capítulo 24
A DENTIÇÃO
A localização das perturbações do sistema nervoso central traz consigo a noção de que não se deve contar com perturbações isoladas, apenas de uma única função, mas sempre com efeitos complexos nos vários circuitos funcionais. As relações directas entre a motricidade-vegetativo-intelecto e o comportamento são evidentes. A dependência de todas as áreas funcionais é sobretudo importante na criança com lesão cerebral porque devido a isso o controlo, isto é, o que chamamos o «raciocínio e conhecimento», faltam como força regularízadora. Isto pode verificar-se com mais nitidez num quadro patológico, que é marcado pelo sintoma principal «paralisia cerebral espástica» devido a uma grande variação do grau de perturbação da inteligência e da espasticidade da musculatura inervada de forma arbitrária, condicionada por lesões da via piramidal.
Dado que, além da musculatura das extremidades, dos músculos dos olhos e dos esfíncteres, sofrem de espasticidade também os músculos que efectuam a mastigação, deglutição, foram afectadas na generalidade as funções daí decorrentes. A deficiência na capacidade para chupar e mais tarde para trincar e mastigar têm forçosamente efeitos no desenvolvimento da dentição e das gengivas. Assim, vemos cada vez mais crianças com as coroas dos dentes ao nível das gengivas ou cujos dentes nasceram nos primeiros anos já cariados. Uma dentição assim danificada faz com que o seu possuidor só ingira alimentos moles ou líquidos, e por isso não é difícil de explicar os efeitos de
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uma tal alimentação na digestão, no peso e por conseguinte no aumento de peso. Uma consequência inevitável é a longa permanência das fezes no intestino delgado entre as raras defecações, com todos os efeitos da obstipação grave. As fezes, que se tornam duras, durante tanto tempo sem evacuar, provocam dores que, como um reflexo psicossomático, levam à obstipação por retenção. Dores de vária génese intensificam o sintoma principal de tal modo que pode ser acentuada a espasticidade por este motivo.
Acontece algo de semelhante nas crianças com perturbações do comportamento no sentido de hipercinesia, comportamento inquieto e impulsivo tão característico que pode levar ao esgotamento físico total e que pode anular totalmente a capacidade de aprendizagem e de concentração das crianças. Dores, sobretudo dores de dentes, são uma força de desencadeamento (= força propulsora) de fases de comportamento hipercinético. Se pensarmos que, raras vezes, estes doentes conseguem mostrar aos que os rodeiam que sentem dores, incapazes de descrever esta dor e de a localizar, então imaginem as complicações que resultam destes estados.
Deduz-se do que foi dito atrás que, no tratamento de crianças com lesão de origem cerebral, assume um papel de relevo o tratamento dos dentes, e torna-se indispensável o exame regular da cavidade bucal. No fulcro dos nossos cuidados, no que se refere à dentição das crianças com lesão de origem cerebral, está a questão que ressalta do trabalho prático -até que ponto são correctas, num determinado caso, extracções ou medidas de tratamento conservador.
A resposta não depende somente do estado dos dentes mas também temos de considerar a doença principal, o comportamento e a idade, bem como as possibilidades técnicas de tratamento.
Não se pode prever com exactidão qual o comportamento da criança sentada na cadeira do dentista, ou ao colo dos familiares, a sua reacção de defesa ou a extensão de um eventual trauma psíquico. Às vezes, é espantoso para o neuropediatra com que estoicismo as crianças com lesão cerebral se submetem a um tratamento aos dentes, quando as medidas de preparação decorrem em condições psicológicas favoráveis e o dentista consegue encontrar o contacto exacto e a «palavra certa».
A questão se uma intervenção cirúrgica no dentista deve ter lugar na presença dos familiares ou sem a sua presença, com ou
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sem anestesia geral, isto é, com ligeira anestesia, com ou sem anestesia local, deve ser decidida, caso a caso. A resposta depende de uma quantidade de factores imponderáveis, perante os quais ter-se-á de considerar que já existem grandes oscilações no comportamento nas condições habituais da vida da criança com lesão cerebral. O trauma físico e psíquico da intervenção cirúrgica no dentista é de forma compreensível um acontecimento estimulante, sobretudo no aspecto afectivo. A escolha do método de tratamento, tal como já foi acentuado, é feita somente pelas necessidades sentidas no aspecto médico e psicológico, isto é, com um mínimo de meios técnicos e medicamentosos, em cada caso deve ser obtido o máximo sucesso.
Sabemos que a maior parte dos dentes de leite não provocam dores permanentes e por isso não é imprescindível extrair todo o dente cariado que apareça. É evidente também que se deve restringir ao mínimo indispensável as extracções, considerando o desenvolvimento do maxilar, da cavidade bucal e dos dentes. Mas de igual modo se consegue chumbar os dentes de leite, por vezes com heroísmo do dentista, do doente e dos familiares, e sabe-se também que nem sempre é duradouro, o que leva a admitir que nem sempre se pode obter, ao tratar o dente, a calma óptima necessária.
A intervenção rápida pode ser suficiente para extracções simples. A pergunta, se a anestesia não trará uma carga maior ao doente do que a extracção, depende das condições de cada caso, do comportamento da criança e da destreza do anestesista que só desempenha a sua tarefa de forma satisfatória quando o doente não fica profundamente anestesiado nem ligeiramente anestesiado, apenas o tempo suficiente para o dentista trabalhar e quando a injecção da anestesia se processa sem forte agitação. A experiência bastante e o narcótico adequado são as condições necessárias de tais medidas.
Há um grande número de crianças nas quais é impossível uma intervenção pequena e rápida. Impossível por dificuldades de comportamento, por dificuldade no local da intervenção, ou porque é necessária uma intervenção mais prolongada para tratamento do dente. Em muitos casos, deu bons resultados fazer um «tratamento geral» à dentição com anestesia geral, sob condições adequadas com psicofármacos.
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Será necessário que anestesista e dentista conheçam em pormenor os sintomas neurológicos daquele quadro clínico e todas as possibilidades de eventuais complicações daí resultantes. Chamamos a atenção para a tendência natural de quase todas as crianças com lesão cerebral para crises convulsivas, que podem surgir no início ou no fim da anestesia, para a espasticidade da musculatura brônquica nas crianças com paralisia cerebral, e para a malformação cardíaca congénita dos mongolóides, isto para citar somente três das perturbações mais conhecidas.
Quanto à necessidade de tratamento com próteses dentárias, temos de apontar que utilizar uma prótese, qualquer que seja a sua construção, pressupõe um certo grau de inteligência, isto é, possuir capacidades motoras para a pôr e retirar sozinho. Não se podem ignorar os perigos que podem surgir nos doentes com crises convulsivas devido à prótese.
A questão da correcção dos maxilares é importante sobretudo nas perturbações de desenvolvimento do crânio. Nestes casos, é imprescindível também a colaboração do doente e a sua compreensão para a necessidade de tais medidas. O tratamento dos dentes, em crianças com lesão cerebral não depende somente da necessidade do ponto de vista médico, mas também da disposição do dentista para aceitar as cargas adicionais que, sem dúvida, a criança com lesão cerebral traz consigo. Quem está disposto a tratar apenas crianças que se sentam «sossegadas» e «sem resistência», ou quem não suporta uma criança com lesão cerebral na sala-de-espera, deve poupar a si próprio e à criança essa emoção. Se os ajudarem, de facto, pais e filho ficam mais agradecidos.
Finalmente uma palavra mais sobre a higiene dos dentes. Tal como a criança saudável, também a criança com lesão cerebral deve aprender, tão cedo quanto possível, a lavar os dentes ela própria. Muitos pais têm receio porque têm medo que engulam a pasta de dentes embora esta seja totalmente inofensiva. Outros consideram que já fizeram tudo o que era necessário dando-lhes comprimidos de flúor. A higiene dos dentes, e isso tem importância, nos problemas estomatológicos do nosso tipo de doentes, como acontecimento desencadeado por factores mecânicos, químicos e constitucionais, está dependente do desenvolvimento dos dentes e do estado em que se mantêm. Para os manter saudáveis, têm de estar em harmonia os
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processos que os tornam eficazes - mastigar, trincar, limpar e tratar. Nós conhecemos crianças, englobadas naquele tipo de doentes, com dentes capazes e fortes, mas conhecemos também crianças com uma dentição em estado deplorável. Em comparação com a criança saudável, a criança com lesão cerebral corre naturalmente maior risco de ficar com os dentes estragados.
Capítulo 25
MÉTODOS DE TRATAMENTO
25.1 TERAPIA DAS PERTURBAÇÕES DE
MOVIMENTO DE ORIGEM NEUROMOTORA
É de realçar, sem dúvida, que se registaram nos últimos dez anos, no aspecto organizativo, os maiores progressos no tratamento de crianças deficientes físicas devido a lesão cerebral. Nas cidades e mesmo na província existem possibilidades de tratamento, com ajuda dos serviços ambulatórios, que abrangem toda a natureza de deficiências físicas. Se existisse há menos anos um .«Numeras clausus», com exclusão de deficientes físicos com deficiência mental, então ter-se-ia incluído também estes na terapia. Na Áustria, MARGIT HOCHLEITNER criou, sobretudo para o tratamento na província, as bases fundamentais para a detecção precoce, tratamento precoce e terapia profiláctica.
Chamamos a atenção para a grande quantidade de perturbações do movimento de origem neuromotora, e queremos realçar aquele princípio que se tornou significativo no decurso da nossa experiência como base fundamental de todas as reflexões terapêuticas. Para a criança com lesão cerebral, é imprescindível aprender as funções mais importantes - mover-se, sentar-se, estar de pé, andar e agarrar, e mesmo segundo um plano traçado para um determinado período de tempo que corresponda exactamente aos períodos normais. `A linguagem e o intelecto estão sempre ligados a um desenvolvimento motor o mais possível normal; estas pesquisas adquirem grande
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importância e atingir esses objectivos é uma das metas mais importantes da terapia. Não tem sentido, como por vezes se aconselha, aguardar que a criança com lesão cerebral consiga andar por si própria, pois muitas crianças nunca conseguem. No que se refere ao desenvolvimento intelectual, a visão do mundo à sua volta na posição vertical acontece quando a criança atinge 6 meses de idade. Uma criança que, aos 18 meses, ainda não consegue andar sozinha, fica forçosamente com um temperamento difícil e por isso não se deve considerar simplesmente a ligação de vários círculos funcionais com a motricidade.
Quando não existem perturbações orgânicas dos centros motores, mas está atrasado o desenvolvimento motor, então não existe perturbação no sistema motor mas nas regiões coordenadas por este, isto é, há falta de compreensão da necessidade das funções motoras.
A tarefa da terapia é permitir à criança realizar estas possibilidades através de treino adequado. É compreensível que muitas crianças com lesão cerebral tenham dificuldade em sentar-se, estar de pé e sobretudo andar sozinhas, se considerarmos a situação intelectual de que se parte.
25.1.1 Tratamento das paralisias cerebrais espásticas
Diagnóstico precoce e terapia profiláctica são, como revela a experiência, indispensáveis no caso destas perturbações. O conceito «Nada se pode fazer nos primeiros anos» é, em princípio, falso e leva a atraso no desenvolvimento. Somente com fisioterapia, o mais cedo possível, se pode contrariar a evolução patológica dos reflexos e da hipertonia, o que de resto pode trazer mais tarde grandes deformidades.
Os métodos de tratamento desenvolvidos por BERTA e K. BoBATH conseguiram entretanto ganhar importância e projecção em todo o mundo. São indicados mesmo para o lactente e para a criança na 1.' infância, são sem dúvida valiosos para garantir à criança com paralisia espástica o máximo de desenvolvimento das possibilidades motoras. Neste método, o ensino sistemático nas escolas, da fisioterapia a este tipo de doentes pode ter muito êxito, com uma terapia de movimento adequada e orientada para cada caso individual. Para
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além do método de BoBArH, que na Áustria tem a maior aplicação, apareceram nos últimos anos na República Federal Alemã os métodos de treino fundamentados e desenvolvidos por K. VosrA. Os adeptos de ambos os métodos degladiam-se vivamente, por vezes nas costas das crianças deficientes e dos pais inseguros, o que é um sinal da credibilidade nos métodos, sobretudo da parte dos terapeutas mais jovens.
Compreende-se que ambos os métodos devam estar inseridos num sistema de tratamento que abrange a fisioterapia, mas nem sempre se pratica assim de facto. É de salientar que o método de tratamento complexo, apontado por L. PETO, parece ter sucesso na combinação da fisioterapia com a terapia da fala. Mas acontece que, tal como nas restantes terapias aplicadas às crianças com lesão cerebral, o êxito da terapia está ligado à colaboração do doente. Este está sempre dependente do nível de inteligência e da capacidade de contacto pessoal do terapeuta. A aprendizagem dos métodos não basta, deve ser completada com empenho pessoal, energia, capacidade de sentir, ajustamentos e perseverança, para assim se atingir progressos verdadeiros.
É preciso tornar claro que tais tratamentos, a maior parte das vezes, duram anos, mesmo dezenas de anos. A constituição psíquica tanto do doente como do terapeuta não deve ser menosprezada. Mas para continuar a trabalhar, infatigável, sem se resignar, durante largo espaço de tempo e por vezes durante longos períodos de tempo, aparentemente sem sucesso, necessita também da colaboração de todas as partes envolvidas - crianças, pais e terapeutas. Esta atitude não se aprende, deve resultar da convicção da correcção do tratamento a aplicar.
É necessário na fisioterapia, tal como em todas as outras formas de terapia, transformar os familiares em co-terapeutas. Não se deve esquecer nunca que as forças da mãe, cuja colaboração é obtida logo, se podem esgotar pois ela tem de tratar ainda, para além da criança deficiente, do marido e eventualmente de outros filhos. Na orientação dos co-terapeutas é preciso uma grande capacidade de percepção para reconhecer e ajudar a ultrapassar as crises entre a criança e a mãe, a criança e o terapeuta, a mãe e o terapeuta.
Como preparação e como apoio fisioterápico, no caso das crianças com perturbação de movimentos, parece-nos indicado, sobretu-
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do, massagens com radiações debaixo de água, as quais são muito repousantes e relaxantes. Queremos pôr de sobreaviso contra os banhos de rádio, de iodo ou de enxofre que levam muitas vezes a crises, após várias aplicações.
A moderna fisioterapia (terapia de movimento) tem sobretudo êxitos espectaculares em casos de deficiência motora ligeira que deixam revelar somente sinais ligeiros de perturbações de movimentos de origem cerebral. Quanto mais grave é o caso, mais longa, mais cansativa e mais complexa se torna a terapia. Seria errado insistir exclusivamente nas medidas conservativas da fisioterapia, renunciando àquelas possibilidades que existem hoje em dia, através da cirurgia ortopédica, aplicada de forma crítica.
No âmbito das medidas pedagógicas e fisioterapêuticas consequentes, aplicadas durante anos, por vezes durante dezenas de anos, a intervenção cirúrgico-ortopédica adquire um significado crítico de desenvolvimento. O resultado de tais intervenções está sobretudo ligado a uma série de condições, que devem ser garantidas se com isso puder ser obtida uma melhoria nítida das funções motoras:
1. Antes de se pensar em medidas cirúrgicas, primeiro têm de se esgotar totalmente as possibilidades de tratamento conservativo.
2. Após a intervenção cirúrgica, têm de se prosseguir as medidas fisioterapêuticas conservativas tendo em consideração as condições estático-motoras alteradas, desde então.
3. As possibilidades criadas pela intervenção cirúrgica devem poder ser valorizadas também pela criança, isto é, ela deve ter disposição para colaborar activamente, de tal modo que esta depende naturalmente da gravidade da espasticidade e não geralmente, mas frequentemente, do nível de inteligência.
4. Para detectar correctamente o local e a extensão da intervenção, será necessário fazer exames analíticos funcionais, segundo os quais a criança deve ser observada em várias fases do movimento. Dado que a gravidade da espasticidade depende ainda da excitação psíquica, sobretudo é importante examinar também a criança em fases de equilíbrio psíquico,
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e em fase de distensão. Se o resultado da operação é favorável qualitativa e quantitativamente, isto depende do equipamento, da experiência e dos cuidados do cirurgião-ortopedista.
A idade do doente deve garantir que, após a intervenção, processos de crescimento não venham prejudicar os seus objectivos iniciais. Determinadas intervenções deviam ser realizadas após o crescimento. Outras devem ser realizadas tão cedo quanto possível. A decisão deve ser tomada pelos pais, terapeuta, neuropediatra e ortopedista.
Uma intervenção cirúrgica-ortopédica só pode ser realizada, como já foi acentuado, quando já não é possível obter melhoras funcionais através do tratamento conservador. Assim, é importante que, imediatamente após a operação, continue a aplicar-se, nas condições agora surgidas com a operação, isto é, prossiga a fisioterapia. A experiência demonstra sempre que as intervenções cirúrgicas somente podem ter êxito em tais condições.
Uma outra faceta do tratamento das paralisias cerebrais espásticas é não minimizar a terapia medicamentosa. Não se deve esconder que não há medicamentos que diminuam ou façam desaparecer isolada e exclusivamente a espasticidade da musculatura. Os chamados antiespásticos actuam praticamente todos sobre o sistema nervoso central e existe por vezes, entre o efeito no sistema periférico e o efeito no sistema central, apenas um intervalo muito curto. O aumento da actividade dos reflexos da criança com paralisia espástica, a sua elevada excitação, geralmente quando está acordada, são sintomas relevantes da sua doença. Partindo destas considerações, procurámos há anos uma substância que acalme a excitação do sistema central, anule a espasticidade do sistema nervoso periférico, sem restringir a actividade mental. Até agora não descobrimos ainda essa substância. Ainda se utilizam de preferência pequenas doses de Valium ou de PK-Merz. Nestes casos é necessário sobretudo um doseamento cauteloso e adequado e controlos regulares se se pretende obter tini determinado efeito que possa levar a uma melhoria funcional real.
O tratamento de crianças com paralisia cerebral espástica é uma tarefa complexa. Em primeiro lugar, está a exigência de uma capacidade funcional do sistema motor, o mais possível normal, para que
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se obtenha o desenvolvimento social e mental da criança o mais favorável possível. Este objectivo não se alcança em poucas semanas ou meses, mas por vezes somente após anos ou dezenas de anos e infelizmente, para muitos doentes nunca se alcança. Perturbações motoras de natureza coreica ou atetósica são tratadas de forma semelhante às paralisias espásticas, embora com certas particularidades. Também nestes casos, a fisioterapia acompanhada de terapia medicamentosa é considerada como base daquele tratamento que tem obtido melhores resultados. Como sintomatologia da paralisia cerebral espástica temos ainda a hipersalivação, isto é, o fluxo constante e abundante de saliva. O cheiro da saliva no queixo e na roupa bem como o aspecto visual, incomodam muito tanto a criança como os seus familiares.
Deu bons resultados a utilização de atropina ou de medicamentos que contêm atropina, contudo devem ser receitados somente em doses mínimas e mesmo assim sob controlo muito rigoroso. A designação hipersalivação é de facto, errada, porque não é produzida mais saliva do que a normal, mas a saliva não é engolida ou é engolida em pouca quantidade. Neste caso pretende-se a diminuição da salivação. O treino para engolir, como demonstra H. HUBERFELLNEa, no seu método espantosamente eficaz, é a via da terapia causal. Encontramos por vezes um tratamento ideal nesta combinação.
25.1.2 Tratamento das crises convulsivas
Os progressos no tratamento das crises convulsivas de origem cerebral são impressionantes e satisfatórios, no decurso dos últimos dez anos. A epilepsia da infância perdeu assim uma parte do estigma do horror, do perigo e das suas consequências. A terapia da epilepsia exige, hoje em dia, análises pormenorizadas dos factores etiológicos, do quadro clínico e do EEG, da situação psicológica da criança e do seu ambiente social, em resumo, análise da personalidade em todos os seus domínios orgânico e psicológico, não só por ocasião da primeira consulta mas também durante todo o período de tratamento. A diferenciação detalhada da crise, o seu tratamento personalizado e a apreciação dos motivos, da fase de maturação bem como a consi-
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deração do que se chama personalidade epiléptica, obrigam hoje em dia a uma reflexão sobre a ocorrência da crise, e devido a isso, a um tratamento complexo. As oportunidades para um sucesso de terapia são tanto maiores quanto mais se pensar que não pode ser apenas meta do tratamento reduzir a predisposição da criança para crises de medicamentos anticonvulsivantes, mas também restringir a ocorrência de crises através da eliminação de factores convulsivantes e tendentes a desencadear a crise.
Os medicamentos anticonvulsivantes, hoje em dia à nossa disposição, já estão amplamente divulgados quanto à sua composição química. Os primeiros progressos decisivos surgiram com a aplicação da hidantoína, e a substituição do bromo e dos barbitúricos como as únicas possibilidades.
Mas notou-se, após ampla aplicação de substâncias contendo hidantoína, que não se encontrou de modo nenhum o método de tratamento perfeito. Os resultados iniciais frustraram os seguintes. Começou-se, para aumentar o efeito anticonvulsivante, por combinar hidantoína com os barbitúricos, por vezes misturando ainda cafeína. O passo seguinte foi a descoberta da primidona e anos mais tarde da carbamazepina (Tegretol). Entretanto, verificou-se o efeito de succinimida num grupo de crises que pertencem às formas de pequeno-mal. Há cerca de 10 anos foi introduzido o clorazepam (Rívotril), que teve muito êxito no tratamento da epilepsia infantil, sobretudo nas crises de tipo espasmos em flexão ou de Slaam, mas também nas ausências. Utilizamos há muitos anos preparados que contêm valproato de sódio (Convulex/Ergenyl).
Tem de se insistir aqui em particular que o tratamento medicamentoso das crises convulsivas de origem central na infância e na juventude é uma tarefa longa e cansativa. Certas substâncias vão actuar apenas parcialmente em determinadas formas de crise, e a chamada monoterapia, isto é, a aplicação de um único anticonvulsivante já não é possível. Encontrar o medicamento realmente eficaz para cada caso e a combinação óptima, é também moroso e cansativo. Naturalmente começa-se sempre com doses pequenas para obter lentamente a dose ideal. O efeito de um anticonvulsivante é determinado pela sua acção na frequência e intensidade das crises.
É mesmo rara a cura no sentido restrito da palavra. A tendência para crises continuará a existir quase sempre e deve ter-se sempre em
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conta este facto. A experiência demonstra que podem ocorrer crises mesmo depois de 10 ou 20 anos sem crises. É importante o controlo constante do tratamento que está a ser seguido; para isso não é suficiente o EEG, para nos dar as informações necessárias sobre o resultado da terapia
A determinação do anticonvulsivante no soro sanguíneo permite automaticamente rever o efeito. As expectativas que são colocadas neste método estão realmente ainda mal testadas. Quanto ao tratamento do «Status epilepticus», da crise de grande mal com duração mais prolongada, hoje em dia a escolha que se nos põe é a injecção intravenosa ou intramuscular de clorazepan (Ri votriI).
A pergunta o que deve ser decidido em particular no caso de uma crise que dura demasiado tempo está dependente, no essencial, da duração da crise mas também da experiência dos familiares. Só faz sentido telefonar ao médico quando este tem possibilidade de chegar ainda durante a crise e puder de facto intervir. Levar ao hospital quando o doente já acordou da crise é, sobretudo no caso de crises repetidas, a maior parte das vezes inútil. A aplicação de hidrato de cloral rectal durante a crise por vezes tem resultado. Depois de vários anos sem crises e no caso de EEGs favoráveis, pode-se abandonar a terapia com anticonvulsivantes. Nunca se deve retirar de-repente mas desabituar a pouco e pouco o doente da terapia. Isto é indispensável também no sentido de um acompanhamento psicológico do doente.
Portanto chama-se a atenção para uma série de pontos importantes que, se não forem respeitados, podem conduzir a erros graves:
1. Estatísticas sobre a frequência e a intensidade das crises e sobre os resultados de terapias antíconvulsivantes só devem ser aceites, quanto ao valor e credibilidade, se abrangerem pelo menos um período de 5 anos. De acordo com a experiência, o efeito terapêutico da maior parte dos anticonvulsivantes vai desaparecendo de ano para ano com maior ou menor rapidez, o que pode ser atribuído tanto a uma certa habituação do organismo àquela substância como às condições orgânicas da criança alteradas devido ao crescimento e à maturação.
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2. Um certo número de crianças fica livre de crises imediatamente após o início da terapia anticonvulsivante e assim continua. Nestes casos é pertinente a pergunta se continuaria mesmo sem terapia. Nestes casos, o EEG nem sempre dá uma resposta concreta, pois correntes cerebrais paroxísticas. nem sempre estão ligadas forçosamente a crises evidentes.
3. Com o diagnóstico «livre de crises» não acabam, de modo nenhum, os problemas da terapia da epilepsia infantil. Controlos regulares do estádio orgânico e intelectual, informações sobre o desenvolvimento no jardim de infância, na escola e no local de trabalho, são indispensáveis, tal como EEGs de controlo, exames ao sangue, ao desenvolvimento da personalidade e do ambiente familiar. Os ajustamentos em períodos particularmente difíceis como estes podem estar condicionados, por exemplo, pelo tempo, pelas alterações hormonais, pela puberdade e pela menstrução, e outros semelhantes devem ser tratados caso a caso e exigem o conhecimento pormenorizado de cada caso por si. Nestes casos, impõe-se a intervenção do médico que em primeiro lugar tem de fazer com que sejam introduzidos, de facto, ajustamentos, alterações, redução da terapia, etc.
4. Finalmente, temos de chamar ainda a atenção que uma das tarefas mais importantes do médico é seguir rigorosamente os efeitos secundários dos antíconvulsivantes no organismo e na psique.
Devemos considerar sempre, na terapia das epilepsias infantis, que se trata de um cérebro em crescimento e em maturação que deve ser capaz de aprender e de se concentrar. Equiparar a terapia a aplicar às crianças com a dos adultos não se pode fazer sem restrições, mesmo quando as doses são determinadas segundo o peso, porque não são comparáveis as condições físicas e psicológicas da criança com crises como as do adulto.
Em todo o caso, as bases da terapia anticonvulsivante estão na confiança entre doente, familiares e o médico. Esta confiança baseia-se no amplo conhecimento da situação específica e na certeza que médico-pais se esforçam por fazer o melhor. A falta de con-
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fiança dos pais significa mudança de médico; esta significa, a maior parte das vezes, mudança de medicação e com isso inconstância no tratamento com todos os riscos que daí advêm.
25.2 UTILIZAÇÃO DE AJUDAS TÉCNICAS
Sobretudo em crianças com perturbação dos movimentos é sempre aconselhável a utilização de ajudas técnicas, ortóteses para locomoção, talas. É de realçar que, em princípio, não se deve vir demasiado ao encontro das dificuldades das crianças. Só se deve dar essa indicação depois de se ter a certeza que uma certa função não pode ser obtida sem ajuda. A experiência revela que uma prótese será tanto melhor aceite quanto mais simples for a sua técnica de construção e a sua manipulação. Aparelhos que permitem sentar-se direito com contacto simultâneo pés-chão e com a possibilidade de se mover para trás e para a frente sem ajuda dão bons resultados, se se considerar que tais ajudas técnicas podem ser apropriadas apenas por determinado espaço de tempo. Temos de pôr de sobreaviso, sobretudo contra aqueles aparelhos que conduzem a modos de comportamento estereotipados. Camas de baloiço e os chamados «sacos de saltar» seduzem as crianças atrasadas mentalmente e levam forçosamente a acções motoras estereotipadas.
Para muitas crianças, sobretudo para as mais crescidas, será necessário uma ajuda técnica, se não conseguirem desenvolver as funções motoras mais importantes devido à gravidade da doença. Devem ser receitadas talas, ortóteses, palmilhas e calçado ortopédico, unicamente se tais medidas forem mesmo necessárias. Talas, talas nocturnas são um factor de enorme perturbação para o sono. Deve ser ponderada a questão se o sono perturbado não é mais nocivo do que a utilidade das talas nocturnas. O calçado ortopédico era, até há bem pouco tempo, grosseiro, duro, horroroso e só nos últimos anos se consegue fabricar calçado com bom material mas mais bonito, isto é, mais parecidos com o calçado normal. Quem não conhece aquela criança cujo sonho é usar um dia sapatos «bonitos»? Este desejo não deve ser ignorado pelo significado que tem para o estado psicológico da criança.
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25.3 TERAPÊUTICA OCUPACIONAL
A enorme evolução terapêutica ocupacional, desde o seu aparecimento, deixa-nos ver as lacunas terapêuticas que veio preencher. Agora é uma peça-chave da reabilitação e do tratamento e dos cuidados a prestar às crianças com lesão cerebral.
Na reabilitação de adultos a tarefa da terapia ocupacional é a recuperação de funções existentes anteriormente.
No tratamento das crianças com lesão cerebral, existem tarefas essencialmente mais amplas, mais diversificadas e mais complexas; pretende-se, sobretudo, ajudar a criança com lesão cerebral, numa função que, até então, não podia desenvolver, isto é, executar pela primeira vez funções e capacidades.
Este exercício vai actuar sobretudo em deficiências psíquicas e orgânicas. A criança deficiente física, que poderia desenvolver as diversas funções de acordo com a sua inteligência normal, com a sua idade e com a sua maturidade, deve ser levada a sentar-se, estar de pé, andar, agarrar, através da fisioterapia com treino nas suas capacidades motoras rudimentares, de modo a vencer os obstáculos respectivos conforme a localização e a extensão da deficiência motora. Nestes casos, o objectivo da terapia ocupacional está sobretudo em conseguir a motricidade normal: testes da função das mãos e dedos, teste muscular, avaliação da sensibilidade, da destreza e da preensão bem como o treino das funções musculares isoladas e da coordenação motora de modo a conseguir o melhor resultado funcional para a criança deficiente física e, através disso, o sucesso tão desejado, um objectivo que para a criança é compreensível intelectualmente mas que, no caso de insucesso do tratamento, pode causar frustração.
No caso da criança com deficiência nos órgãos dos sentidos temos sobretudo a função intelectual e uma motricidade normal.
No caso da criança com perturbações da visão tenta-se relacionar, isto é, restituir o controlo visual das funções motoras.
A criança com perturbações na audição tem problemas na fala, como é lógico.
No caso da criança deficiente mental, a tarefa é complicada em particular porque está perturbada a compreensão das funções. Então em primeiro lugar deve ser traçado o caminho que não existe à partida, isto é, que está encoberto.
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Terapia ocupacional, no essencial, é mais do que ocupação. É o exercício das funções alteradas. O terapeuta ocupacional, se quiser trabalhar com sucesso, deverá desenvolver todas aquelas capacidades que cada um necessita e que quer tornar significativo no trabalho do deficiente: a capacidade óptima de contacto pessoal, a capacidade de se colocar na situação passada e, com ideias criativas, ajudar a criança deficiente nas suas funções, capacidades e possibilidades que lhe permitam realizar e dominar o seu dia a dia.
Também na terapia ocupacional aplicada às crianças com lesão cerebral, existe o princípio da continuidade da terapia. São raros os sucessos imediatos. A regra geral é trabalhar ao longo dos anos com toda a imaginação e boa vontade, para ultrapassar dificuldades e voltar a descobrir novos caminhos e desvios.
25.4 MUSICOTERAPIA
Base da musicoterapia nas crianças com lesão cerebral é, sem dúvida, a sua aptidão musical extraordinariamente pronunciada. Sabemos que a aptidão musical não é uma definição científica e a definição desta, do que nós entendemos por isso, não é simples. Os testes mais conhecidos da aptidão musical e, ao que parece, estandardizados, não dão bons resultados, na área do nosso trabalho clínico-psicológico e científico. Assentam, em grande parte, numa capacidade de abstracção, cuja deficiência é um sintoma psicológico, quase obrigatório em lesões cerebrais infantis com atraso intelectual. Os
nossos próprios exames (S. RABENSTEINER, MONIKA STRITEK-HEUMAYER)
deviam trazer resultados apreciáveis por caminhos mais simples. Foi comprovado:
1. A memória para melodias.
2. A sensibilidade rítmica.
3. A memória para ritmos.
Ao que parece, a musicalidade excepcional das crianças mongolóides deu-nos a oportunidade para formar um grupo isolado das crianças submetidas a exame. Foi posto em comparação com um
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grupo de crianças com lesão cerebral cujo nível de inteligência corresponde ao das crianças mongolóides, o qual, no entanto, no aspecto clínico, como encefalopatias pré- e perinatais com crises convulsivas, não pertence ao círculo das formas de aberrações cromossómicas. Um grupo de crianças normais foi tomado como base de referência necessária à experiência.
Numa 1.' fase da experiência, examinámos até que ponto as crianças mongolóides, no teste de talento musical, atingem resultados diferentes dos das crianças não mongolóides.
Numa 2 .'fase, comparámos as capacidades do grupo mongolóide com as capacidades de crianças saudáveis com inteligência normal.
O entusiasmo das crianças mongolóides pela melodia e pelo ritmo era maior do que o de um grupo não mongolóide com idêntico nível de inteligência. A criança mongolóide, no que se refere ao ritmo, toma um lugar de relevo dentro do grupo de crianças com lesão cerebral. A diferença nos dados estatísticos é extraordinária. A comparação com um grupo de crianças normais com o mesmo nível de inteligência revela também dados mais elevados no caso das mongolóides . Este é um resultado muito difícil de interpretar. Contudo, consideramos que a criança mongolóide envolvida nesta experiência em comparação com a criança normal era mais velha, e que portanto essa vantagem resultaria de uma vivência maior. A comparação de um grupo mongolóide com um grupo de crianças normais com a mesma idade revela, no entanto, que as crianças mongolóides já possuem essa vantagem.
Parece que não se pode esquecer que o sindroma de Down deve ser tomado como um caso especial, que sobressai pela estrutura centralizada das perturbações. Os nossos exames revelaram que as aberrações cromossómícas desenvolvem outro tipo de comportamento singular, como se pode ver em crianças cuja lesão cerebral deixa reconhecer grande variedade na etiologia, manifestação e extensão da lesão. Hoje em dia está comprovado que sindromas especiais como o Sindroma de Rubinstein, o Sindroma de Lange e o Sindroma de Rett apresentam também resultados semelhantes nestes testes específicos de aptidão musical.
Consideramos, pois, numa reflexão crítico-científica, que o que nós chamamos aptidão musical tem detalhes que não podem estar relacionados somente cora a capacidade imediata para reter a melo-
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dia e o ritmo. A elevada musicalidade tão frequente deve ter também outras causas, isto é, deve ser impelida para primeiro plano por outros motivos, representa uma combinação com outras deficiências. Para o leigo é um sintoma axial patológico em lesões cerebrais infantis. A afirmação «Sim, mas a criança tem tanta aptidão musical!» é quase habitual na descrição feita pelos familiares. Pensamos que a aptidão musical (excluindo, como é evidente, os casos de mongolismo) não pode ser atribuída a um talento especial. Mas este é incontestado e encontra-se em primeiro plano porque faltam à criança com lesão cerebral outras funções e capacidades que a criança normal domina.
Na observação da criança deficiente, os familiares sentem a extraordinária aptidão musical como possibilidade de contacto social, como «meio de chegar à criança» e com isso obter sucesso. É natural que sejam forçadas todas as funções e capacidades que assentem na música.
Existe, de certo modo, a suposição que o desenvolvimento do que se designa como razão - nomeadamente a «compreensão da necessidade», o conhecimento ou o reconhecimento de que é preciso ou é necessário alguma coisa - falta mais ou menos à criança com lesão cerebral de tal modo que as funções existentes não são estimuladas pela razão mas pelo instinto e conseguem dominar inteiramente a vida da criança no seu dia a dia. Isto acontece, por exemplo, à criança que só come quando a mãe põe a tocar um determinado disco.
De igual modo, a criança pequena com inteligência normal e a criança normal em idade escolar, extremamente protegida, revelam em certas fases modos de comportamento semelhantes no dia a dia. Quanto menos amadurecido for - amadurecimento aqui significa o mesmo que aprendizagem com base na experiência - mais se verifcam tais padrões - comer apenas com música e só com uma determinada música de fundo. No caso da criança com lesão cerebral, por vezes estas cenas perduram a vida inteira.
Música e sensibilidade musical-rítmica são para a criança com lesão cerebral não só função, capacidade, acontecimento, mas também um objectivo. Pode-se falar mesmo de um refúgio na música. Mesmo a criança saudável procura repouso, descontracção na música, vive a música apontada para a descontracção ou para o estímulo se considerarmos as modernas bandas punk e de rock rítmicas, barulhentas e
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sem tonalidade. Mas a nossa consciência diz-nos que não podemos passar a vida inteira apenas com isso, abandonando-nos à música. A criança com atraso mental, com lesão cerebral, procurará consequentemente e com tenacidade viver sempre nestas condições. Assim ela desenvolve, muito rapidamente no ritmo, padrões motores estereotipados no sentido de estereotipias de embalo que podem ser dirigidas de fora através de certas alterações do ritmo e provocam oscilação. Esta sensação de vertigem é o motivo de todas as estereotipias de embalo, a «evasão», do dia a dia que consiste em obrigações e exigências. Corresponde a uma ligeira embriagues, esconde, desinibe, é agradável e liberta do confronto com o mundo à sua volta, sempre com exigências.
A criança saudável revela tais padrões motores estereotipados, contudo, somente em fase de grande concentração, irritação, enfado ou cansaço. No caso da criança com lesão cerebral, predominam as estereotipias de embalo como imagem exterior do dia a dia e tanto mais quanto maior for o atraso mental, isto é, quanto menores forem as possibilidades de contacto social e aqui ressalta de novo, em primeira linha, a importância da fala. As experiências com a musicoterapia revelam que nem sempre são consideradas estas conclusões de terapeutas que confundem estereotipias motoras com motricidade significativa e não reconhecem como tal o que são de facto, nomeadamente acções mentais vazias de sentido, caricaturas sem significado de acções mentais puras que só contribuem para isolamento, fuga às exigências do meio ambiente. Produzem uma sensação de prazer que não limita, precisamente através da razão, e é reduzida ao necessário, servindo para descontracção.
Quando pais e terapeutas descrevem com orgulho como conseguiram através da música levar a criança a dançar, a baloiçar-se, depreende-se que não existe conhecimento na causalidade.
25.4.1 Tarefas da musicoterapia científica
Do ponto de vista médico-psicológico, pode e deve acentuar-se que a musicoterapia científica deu apenas os primeiros passos. Está fora de dúvida como esta é importante para o tratamento da criança com lesão cerebral. Tão-pouco se tem dúvidas que existem exames
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sistemáticos que têm também valor crítico científico e que permitem obter dados chave para dar impulsos decisivos à musicoterapia. Os nossos estudos apontam para as seguintes orientações:
1. Reacções emotivas, vegetativas, electroencefalográficas ao ritmo, à melodia, timbre e à intensidade do som por parte das pessoas com lesão cerebral.
2. Expressão rítmico-musical diferente conforme os vários grupos de doentes e as suas idades.
3. Influência da voz humana na criança com lesão cerebral.
4. Possibilidade de estímulo e descontracção da motricidade normal e patológica no caso da criança com lesão cerebral.
5. Concepção e utilização de processos de aprendizagem através de exercícios musicais.
Temos uma quantidade de resultados isolados que são muito conclusivos, mas não permitem ainda fazer declarações de princípio.
Os exames de ALBERTINE WESECKY, M. KOPPEL e ANITA RIEDER São
exemplos para o trabalho de pesquisa contínuo, porque têm como base uma estrutura inteligente e um plano de pesquisa suficientemente exacto e por isso com valor crítico quanto aos resultados.
Existem várias razões para a falta de exames que sirvam como prova exacta:
1. dificuldade em encontrar casos, mesmo num sindroma relativamente uniforme, em número suficiente, isto é, que possa ser avaliado como dado estatístico e de comparação com grupos homólogos;
2. seguir estes casos por um período de tempo mais prolongado sob condições mais ou menos similares, sem que factores exógenos e endógenos restrinjam a posição de partida;
3. dificuldade em eliminar a acção da personalidade do examinador no comportamento da criança, na sua motivação e nas suas competências;
4. dificuldade em conseguir do trabalho dos terapeutas, ainda inexperientes, dados com valor crítico, devido às suas observações empíricas.
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Como se disse, existem indicações. A musicoterapia já deve ser considerada hoje em dia como um método científico, mas não a aceitam. Contudo, não temos dúvida que isto pode ser possível e gostaríamos de tornar claro que é indispensável a estreita colaboração entre médico, psicólogo, o técnico de estatística e o musicoterapeuta.
25.4.2 Musicoterapia prática no caso da criança com lesão cerebral
A musicoterapia deve ser considerada nestes casos somente como terapia musical pedagógica. O fim da terapia é, em última instância, a promoção da criatividade da criança, queremos dizer com isso que se trata do despertar de um potencial humano. Como impulso inicial reconhecemos a motivação, tal como R. GUILFORD. Isto é a tarefa do musicoterapeuta - encontrar novos caminhos para a motivação através da música ou com a música (ALBERTINE WESECKY).
Numa pesquisa feita durante oito meses com crianças com lesão cerebral (uma sessão uma vez por semana), tentou-se alcançar aqueles factores que, segundo GUILFORD, pertencem à actividade do intelecto:
1. Cognição, isto é, descobrir voltar a descobrir reconhecer
2. Memória como «conteúdo do observado»;
3. Raciocínio divergente como raciocínio nas várias orientações e pesquisas, segundo várias possibilidades de solução;
4. Raciocínio convergente tendo como meta encontrar a solução correcta, resultante da informação;
5. Apreciação como decisão sobre a qualidade,.exactidão. lógica_ desta, o que sabemos, do que nos lembramos e o que descobrimos através do raciocínio produtivo
Como a criança com lesão cerebral, devido à falta de todos aqueles centros que permitem o raciocínio abstracto, mas sobretudo devido à deficiência mais ou menos acentuada na fala, por vezes
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apenas a música mantém aberto o caminho da reacção, é natural dar através deste caminho os estímulos não verbais ao processo de raciocínio porque ele, como já acentuámos, é quase sempre o único caminho viável. Seria ir longe demais entrar aqui na metodologia desta experiência. Em resumo, verifica-se que podem ser considerados como resultados as seguintes pesquisas:
1. A capacidade de aprendizagem e resultados consequentes são uma necessidade também para a criança com lesão cerebral. No caso de falta de outras possibilidades podem alcançar-se através da musicoterapia.
2. É possível através da música activar processos de aprendizagem, porque a música é aceite como meio para aprender. Será tanto mais significativo quanto mais acentuada for a falta da fala.
3. A memória como capacidade para gravar e reproduzir pode ser exercitada sobretudo através do texto musical.
4. A chamada percentagem de esquecimento que, no caso das pessoas com lesão cerebral, é muito elevada em todas as áreas não estimuladas afectivamente, não tem importância no âmbito musical.
25.4.3 Metodologia da musicoterapia
A grande variedade de sintomas das lesões cerebrais infantis exige métodos específicos, conforme a sua natureza.
Assim, por exemplo, no caso das crianças com atraso mental, cuja limitação intelectual leva a autismo (no sentido de autismo da U infância de KANNER), a metodologia resulta de forma diferente da aplicada aos mongolóides bem expressivos no aspecto emocional e afectivo.
No caso de autismo da 1.' infância, pretende-se principalmente conseguir os primeiros contactos com o meio ambiente. A metodologia tem, pois, os seguintes objectivos:
1. Sensibilização para estímulos acústicos;
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2. Introdução de um sinal acústico para despertar a atenção 'ou o interesse;
3. Educação para disposição para um tom base;
4. Imitação.
Se estes objectivos forem obtidos pela via musical, deve procurar-se atingir estas capacidades também por outro meio, isto é, transferi-las para outros sistemas empíricos.
25.4.4 Musicoterapia para apoio de outros métodos terapêuticos
A expressão conhecida «com música tudo vai melhor» também se aplica no tratamento das crianças com lesão cerebral.
Assim, o terapeuta da fala não prescinde da musicalidade das crianças. Mesmo a voz dos terapeutas da fala, e a reacção a essa voz, influencia sempre a disposição e a capacidade funcional. As nossas experiências revelam que crianças que reagem ao tom base também são receptivas à terapia da fala.
São semelhantes as condições na colaboração com a fisioterapia. O canto e os coros, isto é, a música receptiva é, por vezes, a única motivação importante. Tem de se dizer que, devido à fisioterapia prolongada aplicada durante anos, é grande o esgotamento da criança bem como dos familiares e do terapeuta. Nestes casos, é imprescindível a música como estímulo ou motivação.
A pergunta quando deve e pode ser aplicada a musicoterapia activa, ou quando deve ser receptiva, não se pode responder com segurança, é muito variável, depende do indivíduo. Depende ainda da intuição psicológica do terapeuta, quando deve utilizar tal método ou tal instrumento.
Mas essa intuição não deve estar dependente exclusivamente da disposição afectiva do terapeuta.
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25.4.5 A formação dos musicoterapeutas
Uma orientação terapêutica tão recente necessita forçosamente de uma formação contínua e uniforme. Os terapeutas da primeira linha foram autodidatas, exclusivamente motivados pela música como arte e pelo desejo de ajudar. O seu sacrifício foi enorme, mas as suas informações sobre a problemática médico-psicológica eram, a maior parte das vezes, mínimas. Por isso faltava o autocontrolo e com isso a visão crítica em relação ao método e aos resultados obtidos.
Como reacção dos médicos responsáveis, por último verificou-se uma tolerância da musicoterapia no espaço médico-terapêutico, no qual o musicoterapeuta continuou, contudo, isolado. Parecia demasiado fundo o abismo entre a medicina científica e os musicoterapeutas com formação e motivação artísticas.
Os responsáveis em breve compreenderam que somente uma formação mais alargada poderia alterar a situação. O modelo de formação de Viena integra cursos de pediatria, neurologia, psiquiatria e psicologia, para além de trabalho prático e musical. Assim, e somente assim, pode ter sentido a ligação da música com a terapia.
Conclusões: No âmbito do tratamento complexo de crianças com lesão cerebral, a musicoterapia é uma parte do conceito terapêutico-pedagógico. As experiências efectuadas até agora revelaram que, nestes casos, podem ser percorridos caminhos que tocam os sistemas funcionais profundos que funcionam mesmo nas lesões graves. Parece que a aptidão musical - o que nós entendemos sempre sob esta designação - no essencial é a expressão dos tons da melodia e de ritmo - na classificação hierárquica do sistema nervoso central deve ser integrada nas funções primitivas.
A problemática da criança com lesão cerebral é caracterizada pela discrepância que, apesar de uma aptidão musical em parte fascinante, é quase impossível a leitura das notas devido à total ausência da capacidade de abstracção.
A musicoterapia científica é, ainda hoje, um método de investigação recente, cujas bases primeiro devem ser trabalhadas em planos experimentais mais amplos. A investigação na nossa clínica leva-nos a reconhecer que se podem esperar resultados práticos, palpáveis,
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contudo a sua interpretação é uma tarefa particularmente difícil. No caso de crianças com lesão cerebral, o outro caminho da musicoterapia está dependente, no essencial, da questão até que ponto a medicina clássica está disposta a reconhecer a música como terapia. Continua em grande parte condicionada se e como se interpretam, pesam nos aspectos qualitativo e quantitativo os resultados da musicoterapia e se valorizam do ponto de vista médico.
Da formação e das capacidades intelectuais dos musicoterapeutas dependerá se estes se consideram a si próprios como terapeutas e conseguem integrar-se no conceito de terapia. Isto significa avaliar a experiência, arte, música, criatividade e personalidade segundo um conceito global e ao mesmo tempo individual e analisar e medir de forma crítica os resultados obtidos; uma experiência que parece tão insolúvel à primeira vista como a «quadratura do círculo», mas que, segundo os resultados obtidos até agora do trabalho prático e dos estudos científicos, vale a pena levar por diante.
25.5 PSICOFÁRMACOS, VITAMINAS E HORMONAS
Como a medicina escolar se ocupa de lesões cerebrais da infância, põe-se também a questão quais as terapias a aplicar. Enquanto que, até há pouco tempo, muitos consideravam sem interesse certas tentativas de tratamento, e foram mesmo desaconselhadas determinadas medidas terapêuticas, cada vez se nota mais que existe uma série de possibilidades de tratamento de sintomas isolados. Mas tem que se esclarecer que estão em questão métodos sintomáticos, isto é, métodos para tratamento de sintomas para uma série de quadros clínicos específicos, isto é, é quase impossível usar terapias que eliminem mesmo as causas: os psicofármacos podem influenciar, mas melhorando apenas o comportamento da criança. Deste modo é possível também, através de um estímulo da actividade física, aumentar a actividade mental. Não nos basta melhorar a inteligência, mas interessa utilizar melhor as possibilidades existentes das capacidades física e intelectual. Por outro lado. basta-nos
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refrear, através de sedativos, impulsos irritantes e excitantes endógenos ou HYPERLINK http://exógenos.de exógenos. de modo a conseguir obter tranquilidade e descontracção.
25.5.1 Substâncias psicoenergéticas
Noções como «revitalização» e outros chavões semelhantes são utopias no que se refere ao sistema nervoso. Ao longo dos anos, receitou-se às crianças com lesão cerebral doses elevadas de substâncias contendo ácido glutâmíco. O aumento da actividade física, bem como da afectividade provocado por isso, levou de imediato a inquietação extrema e até mesmo a agitação psicomotora excessiva. Nestes casos, não se considerou que, por este meio, eram forçadas a padrões de comportamento negativos, tais como estereotipias, teimosia, descargas afectivas, crises de cólera, caprichos e à tendência para crises convulsivas. Desta maneira tinham-se «eliminado» de maneira violenta as capacidades práticas e intelectuais decisivas existentes e produzido assim um estado que torna impossível a concentração para aprender, brincar ou trabalhar.
Relativamente à pesquisa bioquímica do metabolismo cerebral, descobriram-se substâncias e mecanismos nos quais se colocou a esperança que pudessem surtir efeito também nas crianças com lesão cerebral.
É de acentuar que as substâncias utilizadas hoje em dia com essa finalidade, tais como Encefabol e Lucidril, concentram-se quase exclusivamente numa área do metabolismo cerebral, designadamente nas substâncias da família da glucose. Com isto tornou-se também possível uma activação do metabolismo cerebral numa área determinada; as outras actividades prosseguem então com mais dificuldade, actuam na chamada formação reticular que se estende do mesencéfalo à protuberância e bulbo-raquidiano.
Nesta formação do sistema nervoso central estão os pontos de contacto essenciais do cérebro para a maior parte dos circuitos funcionais do organismo humano, a sua disposição, actividade, inactividade, hipo e hiperexcitabilidade, sem que estejamos em condições de influenciar isoladamente certos detalhes, isto é, estimular ou repri
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mír. Quase sempre são as reacções globais que nós motivamos. Assim, não se pode afirmar, hoje em dia, com total exactidão relativamente às substâncias que se encontram à venda, como elas actuam, porque actuam, em que medida actuam, mas simplesmente podemos 1 afirmar que elas actuam.
Este que toma significativa a sua utilização, se for necessário, para aumentar a motivação, para fomentar a actividade, pelo que é válido o princípio «estimular sem excitar».
Nos vários estudos farmacopsicológicos pôde observar-se que, com o aumento da actividade física, são executadas mais depressa determinadas tarefas. Ao executá-las com mais rapidez, aumenta a frequência de erros, e o trabalho fica mais mal feito, mais superficial. A margem terapêutica entre falta de iniciativa e hiperexcitabilidade é muito estreita e é difícil encontrar a dose ideal, que deve ser sempre constantemente ajustada. Isto é difícil, e só se pode alcançar com a colaboração conjunta dos pais, educador, professor, médico e psicólogo.
Em crianças com grande atraso intelectual, podem-se obter efeitos positivos com psicoestimulantes e psicoenergétícos. Nos casos mais ligeiros, pelo contrário, pretende-se alcançar, pelo menos, uma motivação subjectiva após certa melhoria das suas capacidad-es intelectuais.
Onde se nota melhor o sucesso é nos doentes com falta de iniciativa, por exemplo, em gémeos mongolóides e em crianças pequenas, nas quais, na fase de aprendizagem, as capacidades motoras mais importantes - sentar-se, pôr-se de pé e andar - podem regredir através do uso de doses elevadas de medicamentos. Nas crianças mongolóides é praticamente camuflada sobretudo a transição para a hiperactividade.
A substância com a maior divulgação e de igual modo com exames mais extensos é, sem dúvida, o encefabol (Piritinol). Para nós, após mais de vinte anos de experiência, está fora de questão que actua como estimulante da vigília (A. RErr e TH. KOHLUANN). As experiências com Nootrobil são quase idênticas às efectuadas com Encefabol. Apesar da experiência ao longo dos anos e de intensas pesquisas, não nos permitimos concluir que se obtém uma influência no grau de inteligência através do estímulo da actividade física e da afectividade.
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25.5.1.1 Neurolépticos, tranquilizantes
Substâncias inibidoras da excitação, relaxantes, calmantes são, hoje em dia, difíceis de prescindir no trabalho com crianças, jovens e adultos com lesão cerebral. Também nesta área existe um princípio terapêutico: «acalmar sem deprimir». Calma, descontracção, redução de irritabilidade são alvos terapêuticos que só podem ser atingidos se se conseguir descobrir a dose individual exacta e o tratamento adequado através de controlo e observação constantes. Com doses excessivas, a hiperactividade é travada, a agitação psicomotora é afastada mas ficam também reduzidas todas as funções que anteriormente eram possíveis.
É característico de um tal efeito, por exemplo, quando a estereotipia de balanço não é afastada mas a fala torna-se mais lenta, não é tão fluente, mais calma mas, pelo contrário, mais lenta, mais cansativa e menos rica.
É difícil conseguir dados exactos para uma medicação eficaz bem como para a sua posologia. Chama-se a atenção que a dose varia de indivíduo para indivíduo e que podem existir, de criança para criança, enormes diferenças no que se refere à dose exacta.
Sabemos que o mesmo objectivo terapêutico pode ser atingido com substâncias farmacológicas diferentes. Parece que, neste caso, os efeitos ainda muito pouco divulgados da fármaco-genética poderiam ter o seu papel e tornar possível que para uma criança aquela substância seja eficaz e, para outro caso semelhante no aspecto clínico e psicológico, seja eficaz uma outra substância.
Tais terapias, em princípio, estão ligadas a uma observação global da criança e das suas reacções. Aqui todos têm de colaborar, todos os que estão em contacto com a criança.
Contudo, para isso é condição indispensável um certo equilíbrio entre a informação e a experiência. Sabe-se que existem professores, educadores, terapeutas que, em princípio, são contra a aplicação de medicamentos. Uma atitude que é bastante compreensível quando se pode obter o efeito desejado por outros meios ou por outros métodos. Não deve causar surpresas que seja muito difícil vencer certos preconceitos, e é de acentuar que, experiências desagradáveis devido à receita de medicamentos inadequados ou em doses inadequadas. provoquem um tal comportamento. A terapêutica medicamentosa
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não pode nem deve substituir as medidas terapêutico-pedagógicas, pois existem casos em que só com a receita de psicofármacos se conseguem criar as condições para um acompanhamento terapêutico-pedagógico. Existem quadros clínicos que sem calmantes evoluiriam de forma dramática, por exemplo, significaria mesmo um perigo para o próprio, e mesmo um risco de danos pessoais. Em tais casos,,c evidente que a terapia medicamentosa vem demasiado tarde, uma vez que evitar a auto-agressão é uma tarefa que devia ser assumida logo que a criança revele pela primeira vez tais «tendências», e não a posteriori, quando a criança já se «agrediu».
25.5.1.2 Neurolépticos
Introduzidos na medicina há cerca de 20 anos, hoje e dia existe uma grande quantidade de fármacos. Eis alguns dos mais conhecidos:
Nomes Composição química
Largactíl Cloropromazina
Neuleptil Properiziazina
Nozinan (Neurocil) Levopromazina
Melleril Tioridazina
Atarax Hidroxizína
Sordinol Clopentixol
Haldol Haloperidol
Aplicados em doses excessivas em crianças pequenas provocam com frequência falta de apetite, palidez, anemia e sonolência, mas podem ocorrer também os chamados sintomas extrapiramidais. Estes sintomas secundários não se podem prever. Em primeiro plano, estão tremores semelhantes aos de Parkinson, movimentos descontrolados dos olhos, hipersalivação, rigidez até à imobilização. Estes efeitos de dose excessiva devem ser eliminados imediatamente, a maior parte das vezes com medicação de efeito contrário, pois tais consequências na criança com lesão cerebral podem, pelo contrário.
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levar a métodos de tratamento no âmbito da psiquiatria onde este efeito aparece como objectivo terapêutico.
25.5.1.3 Tranquilizantes
Fármacos mais conhecidos:
Nomes Composição química
Valium Diazepan
Mogadan Nitrazepan
Miltaun Meprobamato
Rivotril Clonazepan
As áreas de actuação destas substâncias são diversas. Temos de realçar que, em princípio, o Valium elimina o medo e a tensão mas também actua e é conhecido como soporífero.
Mas já descobrimos, em 1963, que o Valium pode reduzir o tónus muscular excessivo em crianças com paralisia cerebral. Neste caso há um princípio a observar: o efeito farmacológico do Valium é, em primeiro lugar, no sistema nervoso central. O sistema muscular é, ao que parece, descontraído a partir do sistema nervoso central. Se a dose receitada for excessiva ou a reacção da criança for demasiado acentuada, então verifica-se uma descontracção da musculatura, e ao mesmo tempo uma depressão a nível central de tal modo que o doente fica exausto e não consegue ter iniciativa seja para o que for, devido à hipotonia a nível periférico. O efeito que se pretende atingir é a redução da espasticidade a nível periférico, e redução da hiperexcitabi 1 idade psíquica e somática sem perturbação da consciência e sem originar diminuição da actividade física. Verificase que nenhum outro tranquilizante ou neuroléptico produz efeito semelhante no tónus muscular.
Mogadan e Rivotril originam também hipotonia. Ambos são utilizados no tratamento de crises epilépticas. Sobretudo o Rivotril tem aplicação prática somente nestes casos. De igual modo, o tranquilizante provoca efeitos secundários, tal como foram descritos no tratamento com neurolépticos, pelo que se aconselha doses mais pequenas no início da terapia.
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25.5.1.4 Soporíferos
A utilização de soporíferos é uma questão muito importante. Chamamos a atenção para o capítulo «O Sono», e que o sono de recuperação é fundamental para a vida do homem. Isto aplica-se em especial às crianças com lesão cerebral porque estas sofrem, muito em particular, de problemas para dormir, de perturbações durante o sono, e por isso o seu mundo apresenta-se envolvido num círculo vicioso que vai influenciar imenso o seu dia a dia. A receita de soporíferos, entre os quais temos uma quantidade incrível de substâncias com diversos componentes farmacológicos, só tem, contudo, sentido se antes colocarmos de parte todo os factores que perturbam o sono e que são muitos.
Depois disso, se não conseguem dormir, tem de se receitar um soporífero cujo efeito não prejudique o organismo, nem perturbe o dia a dia nem origine dependência do medicamento.
Designa-se «hang over*» o quadro clínico em que, no dia seguinte à ingestão de um soporífero, a criança esteja sonolenta, cansada, pálida, hipotónica, lenta e triste, e não consiga executar as tarefas diárias. No caso de receita de soporíferos, aplicam-se também os mesmos princípios: encontrar o tipo de medicação e a dose exacta para surtir os efeitos desejados e analisar os efeitos secundários que pode provocar.
O tipo de problemas mais frequente nas crianças com perturbações do comportamento é sobretudo a perturbação durante o sono (pesadelo). Este relaciona-se com dificuldades surgidas nas tarefas importantes no decurso do dia a dia. Por vezes basta a aplicação de um soporífero durante 2 noites para afastar as insónias, contudo nunca se deve transformar num hábito a ingestão imediata de tini soporífero. Seria também errado prescindir dele quando o sono da criança e dos familiares é perturbado constantemente, tornando a vida de todos insuportável.
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* Tradução: «pairar sobre».
Nota do Tradutor: trata-se da tradução da expressão inglesa «hang over».
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25.5.2 Vitaminas
Vem de há muito tempo a esperança no efeito das vitaminas: sempre que se descobria uma vitamina, hoje em dia tão conhecidas, relacionava-se sempre a sua aplicação a pessoas com lesão cerebral. Em princípio: existe o problema referido atrás: não se consegue demonstrar uma influência directa no cérebro. Relativamente à vitamina B6, mas sobretudo à vitamina B12, cremos poder apontar talvez influências indirectas. Assim admite-se que a vitamina B 12 provoque uma maior rentabilidade por reforço sobre o sistema de formação sanguínea (A. RErr e A. ELLINGER). Neste caso parecem necessárias doses relativamente elevadas que são aplicadas de preferência concentradas.
Os preparados vitamínicos têm, provavelmente, apenas carácter de robustecedor geral.
A designação «terapia medicamentosa» pode ser excluída ao concluir que nunca existiu até à data e que, em princípio, é incorrecto colocar qualquer esperança numa ou noutra droga.
A base da terapêutica, tal como antes do trabalho terapêutico-pedagógico com todas as possibilidades terapêuticas especiais da musicoterapia e terapia ocupacional, está nas formas de treino objectivo de funções, capacidades e tarefas.
25.5.3 Tratamento hormonal
Percorreu-se um longo caminho desde a descoberta e o isolamento da primeira hormona até à evolução actual. Somente o desenvolvimento da bioquímica como técnica moderna nos permitiu obter, isto é, sintetizar estas substâncias sob determinada forma, de modo a poderem ser constituídas e homogeneizadas para determinado tratamento e assim serem suficientemente controláveis.
Em cada fase desta evolução, de G. WORONOFF até agora, procurou-se introduzir hormonas no tratamento de lesões cerebrais infantis. Temos de concluir, com observação crítica, que há urna série de hormonas que são valiosas quando são aplicadas correctamente e controláveis exactamente quanto ao seu efeito.
Em primeiro lugar, é de referir a hormona tiroideia que, hoje em dia, possibilita obter, no caso de diagnóstico precoce, de hipoti-
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roidismo, óptimos resultados. A combinação de duas substâncias - Tiroxína e Triiodotironina- é um passo importante, e nunca conseguiremos exaltar bem o seu valioso contributo, porque não só reduz o atraso mental que se torna progressivamente mais acentuado no caso de hípotiroidismo, mas também pode curá-lo se for logo de início.
Não se pode prever a importância do ACTH (hormona adeno-' corticotrófica) para o tratamento das convulsões designadas «espasmos infantis». Com esta substância consegue-se frequentemente eliminar as crises deste tipo. Nestes casos, o tratamento também deve ser controlado com exactidão pois os efeitos secundários não são inofensivos.
Os chamados esteróides anabolízant s, que são sobretudo hormonas com efeito nas crianças no meta lismo da albumina, são aplicados com êxito, em especial, nas crianças com lesão cerebral que revelam uma grande redução do peso devido a dificuldades na alimentação. Dado que podem surgir, também com estes medicamentos, efeitos secundários, no sentido da virilização, é indispensável um controlo rigoroso.
Enquanto as hormonas sexuais femininas e masculinas não têm um papel importante, um extracto da epífise transforma-se num dos factores terapêuticos mais importantes em crianças e jovens com lesão cerebral. É a única terapia inofensiva conhecida até agora para os estados de excitação sexual.
Podemos verificar que este extracto de epífise é eficaz em cerca de 60% dos casos tratados, e o seu efeito pode manter-se cerca de 3 a 12 meses. Aplicada uma injecção de 5 cc, 1 a 2 vezes por semana durante 3 a 6 semanas, esta terapia torna-se hoje em dia uma das medidas terapêuticas mais importantes. Exames de eliminação hormonal revelaram-nos que não se verificam efeitos negativos. Também em doentes jovens o efeito é imediato e positivo. Sabe-se como é difícil e penoso para a sociedade os estados de excitação sexual não reprimidos de pessoas com lesão cerebral, por isso é significativa à importância desta possibilidade terapêutica.
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25.6 POSSIBILIDADES DE TRATAMENTO NEUROCIRÚRGICO
Muitos pais de crianças com lesão cerebral mantêm o desejo e a esperança que a doença possa ser curada de um momento para o outro com um medicamento ou através de uma intervenção neurocirúrgica. Sabemos que tais possibilidades não existem devido às componentes específicas do sistema nervoso. São colocadas também nestes casos limitações às possibilidades da neurocirurgia que a consciência médica não permite ultrapassar.
Se se analisar as intervenções cirúrgicas hoje em dia possíveis ao cérebro, não se pode duvidar da importância da cirurgia que provoca uma redução da pressão intracraniana e hidrocefalia, e introduz, com a ajuda de um sistema de derivação, o líquor na circulação. Nestes casos encontrou-se uma via terapêutica eficaz que evita o aparecimento de lesões graves, com destruição do tecido cerebral devido à elevada pressão do líquor. Também existem limites nestes casos, pois podem surgir complicações da técnica cirúrgica em certas formas da hidrocefalia.
Em certas formas de paralisia cerebral com hemiplegia espástica pode ter êxito, sob determinadas condições, a extirpação da parte do cérebro lesionada. A primeira intervenção deste tipo foi realizada em 1926 por W. E. DANDY, devido a um tumor e a primeira hemisferectomia, devido a hemiplegia infantil, foi tornada pública em 1939, por R. MCKENZIE. Mas sem dúvida o maior contributo é o de S. KRYNAUw em 1950 com 12 casos operados com êxito em hemiplegias infantis, dando assim uma prova destas possibilidades da neurocirurgia. Conseguiu demonstrar que, em lesões cerebrais unilaterais, a hemisferectomia elimina a epilepsia e melhora as crises psíquicas e motoras. O hemisfério lesionado provoca um estado de irritação patológica que também afecta desfavoravelmente o hemisfério saudável. Sobretudo as crises de epilepsia frequentes dificultam o desenvolvimento das áreas do cérebro não afectadas. Por isso, ficou comprovado que o hemisfério lesionado não exerce qualquer função significativa porque as paresias melhoram, mesmo após a extirpação cirúrgica. Embora já tenham sido realizadas várias operações deste tipo, não se resolveram ainda completamente os problemas no que se refere à indicação e à técnica operatória.
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No âmbito da neurocirurgia, é de contar certamente com progressos. Mas temos de acentuar que as possibilidades devem ser utilizadas somente quando as medidas conservativas não têm sucesso. Chama-se a atenção que enormes sucessos imediatamente após intervenções neurocirúrgicas não nos devem iludir, pois tais sucessos e melhoras nem sempre se mantêm, e os resultados posteriores nem sempre correspondem aos resultados iniciais.
A decisão para a realização de uma intervenção neurocirúrgica deveria ser tomada sempre em conjunto pelo neuropedíatra e pelo neurocirurgião, devem ser avaliados aos resultados obtidos até agora, bem como o prognóstico perante s possibilidades neurocirúrgicas.
O conhecido princípio «tudo ou nada» não deve ser tomado na decisão para a realização de uma intervenção cirúrgica.
25.7 OUTROS MÉTODOS TERAPÊUTICOS
É compreensível, no aspecto humano, que ao serem divulgados novos métodos de tratamento, os pais coloquem também a questão até que ponto estes podem, de igual modo, ser aplicados no tratamento do seu filho deficiente. A maior parte das vezes verifica-se então uma euforia, na qual são envolvidos automaticamente os médicos que praticam esses novos métodos. A vaga da acupunctura, que envolve há alguns anos os deficientes, é um típico exemplo deste facto. Confessamos que a acupunctura tem o seu lugar como fenómeno neurofisiológico, negá-lo seria uma estupidez. Mas torna-se também ridículo, quando a acunpunctura é indicada quase em curto-circuito mental para todos os tipos de deficiência. Estamos convencidos que em muitos casos a acupunctura é eficaz. Não nos basta, em todo o caso, medir a sua eficácia. Poder-se-ia então defender o seguinte ponto de vista: O que acontece no organismo? Questão importante - - ajuda? Mas ajuda de facto? Não sabemos ainda, talvez nunca o saibamos. Os nossos próprios testes não revelaram indícios de uma melhoria visível. Mas a acupunctura concentra efeitos em determina-
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das zonas. Se estes são suficientes para o tratamento da epilepsia, espasticidade, atraso mental, hiperquinésia e outras situações, como se afirma em muitos lados, em princípio isto deve ser posto em dúvida. É espantoso que tenhamos as mesmas dúvidas na apreciação da aplicação da homeopatia em crianças deficientes.
25.7.1 Métodos pseudocientíficos
A falta de interesse que levou a pôr de parte, até há alguns anos, toda a área das lesões cerebrais infantis, levou forçosamente a que muitos pais procurassem métodos de tratamento os quais, para os leigos com algum discernimento, deviam ser logo considerados sem significado no aspecto biológico. Mas quem vai levantar problemas quando eles têm conhecimento, através da imprensa ou através de familiares ou conhecidos, que tais métodos têm provocado curas sensacionais, e até agora lhes tem sido dito sempre que nada pode ajudar o seu filho? Quem quererá, agora, ou mais tarde, ser censurado por ter «negligenciado um pouco»? E quem não acreditava no êxito de tais métodos, quando eles podem ver, na sala-de-espera do terapeuta, ficheiros cheios de «agradecimentos»? Além disso, os honorários elevadíssimos aumentam ainda mais o brilho místico de tais terapeutas, porque «o que é tão caro, deve ser mesmo bom». Ninguém pode censurar os pais por levarem o filho a tais terapeutas. Por um lado, eles são impelidos para a consulta de tais terapeutas por aqueles médicos, que com frequência, num tom duro, negam à criança qualquer hipótese de um desenvolvimento positivo.
Na generalidade, estes terapeutas aplicam os seus métodos sem conhecimentos de natureza clínica e psicológica.
Temos, no entanto, a conhecida terapia celular. Já foi chamada a atenção, há muitos anos, para a falta de eficácia e até para o perigo da terapia celular, segundo P. NIEHANS. Sabe-se que foi camuflada muito habilmente, sob a capa pseudocientífica de reacção de ALDERHALD. Foi demonstrado aos pais, num exame pseudocientífico totalmente insustentável, o que devia ser injectado ao filho. P. BRUCKE, J. PISCHINGER, R. BAUER e outros disseram de forma muito clara o que deve ser dito sobre este método; a injecção das chamadas células orgânicas toma-o ainda mais absurdo.
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Mas também são aplicados outros meios de tratamento. Vão desde as drogas miraculosas, através da diálise, até às radiações com radiações de alta frequência com o fundamento de que se deve «eliminar um vírus». A tragédia de tais terapeutas é que eles acreditam, e querem fazer acreditar, que os seus métodos podem curar «tudo» desde o reumatismo, passando pelo carcinoma até às lesões cerebrais de infância. Assim são tratadas e submetidas a radiações, sem critério, crianças espásticas, mongolóides, epilépticas, com encefalopatias degenerativas e metabólicas, sem diagnóstico e sem conhecimento dos seus sintomas. Aconselham-nos mesmo a deixar todos os medicamentos receitados até então, eventualmente até os anticonvulsivantes. Os resultados não chegam ao conhecimento do terapeuta porque ele nunca mais volta a ver o «falhanço» dos seus métodos e nem está interessado num controlo posterior destes.
Quanto menores forem as possibilidades do ensino da medicina nesta área, maior é a tendência para recorrer a métodos pseudocientíficos. Portanto, a tarefa do ensino da medicina é encontrar meios através da avaliação e investigação e chamar a atenção para isso.
Na área das lesões cerebrais da infância, nota-se a correcção da opinião que métodos terapêuticos importantes e eficazes são sobretudo baratos mas podem significar também ausência de encargos financeiros, porque, quando são de facto bons, amplamente aplicados, são pagos também pelo seguro social. Antigamente muitos pais pensavam que apenas o que era mais caro poderia ser bom. Um erro tremendo. Quanto mais caro for um tratamento, mais cépticos os pais devem ser perante este.
Hoje em dia, o tratamento de deficientes continua a inserir-se no âmbito da pedagogia terapêutica e da medicina escolar. De igual modo, tomou-se mais fraca a corrida para os charlatães. No entanto deve ser acentuado que a crença dos pais no milagre, nas drogas milagrosas e nos métodos milagrosos só pode ser posto de parte se se conseguir aplicar de facto os métodos pedagógicos e terapêuticos adequados, e isto só pode acontecer se falarmos com os familiares, se os informarmos e conseguirmos motivá-los deforma convincente.
Capítulo 26
PEDAGOGIA TERAPÊUTICA
26.1 O TRIÂNGULO TERAPÊUTICO-PEDAGÓGICO
A investigação médica, psicológica e terapêutica a nível mundial,'\que tem sido intensiva nos últimos anos, revelou-nos de forma expressiva que o nosso conhecimento das possibilidades e limites do desenvolvimento da criança deficiente já aumentou muito, e que a medicina em conjunto com uma pedagogia moderna poderiam alargar ainda muito mais os limites do possível, como já foi referido atrás. Mas também sabemos hoje em dia que não existe um medicamento, cujo efeito farmacológico possa alterar de forma extraordinária a realidade actual, e que infelizmente o método milagroso com esse efeito não foi ainda descoberto. Mas estamos em condições de influenciar, através de medicação, sintomas parciais, retirar-lhes a intensidade, por exemplo, no caso da Apatia (falta de iniciativa) estimular a iniciativa, e no caso do Eretísmo (agitação excessiva), acalmá-lo. Negar o valor dos psicofármacos modernos é um erro, tal como será um erro sobrevalorizá-los. O seu valor é, sem dúvida, extraordinário, mas somente no âmbito da terapia sintomática e de modo nenhum no sentido da terapia causal. É um facto determinante, do qual deve derivar, naturalmente, a exigência de um tratamento complexo, que defeitos orgânicos mínimos no encéfalo têm também, em princípio, efeitos complexos em vários circuitos funcionais do sistema nervoso.
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No entanto, o termo complexo pode significar neste contexto que devem ser estimuladas, em simultâneo, áreas físicas e intelectuais, e que se deve melhorar deste modo o comportamento da criança deficiente mental no seio da famíla e da sociedade, de tal modo que as suas deficiências e sintomas específicos garantam um desenvolvimento normal e assim uma vida quase normal. A palavra «Normal» foi escolhida aqui, porque «Normalidade» é uma das condições mais importantes para que a família consiga aceitar a deficiência da criança.
A criança saudável está, no decurso do seu desenvolvimento, no essencial, sob a influência dos pais e, a partir de certa idade, sob a influência dos professores, nos quais estamos a incluir os educadores de infância, os professores, isto é, os professores oficiais para aquelas idades. A criança deficiente mental, tratada de forma consequente e correcta, tem, no entanto, um factor terapêutico-p dagógico complementar no seu desenvolvimento, designadamente o médico. A lesão cerebral retira a educação da esfera normal habitual para áreas patológicas, que estão marcadas pelos sintomas da doença, e atingem por isso dimensões complementares especiais.
Por isso se altera a posição dos pais e do professor. O ponto de partida alterado de todas as funções psíquicas e físicas exige métodos especiais, critérios de apreciação diferentes e sobretudo conhecimentos sobre a origem, formas, sintomas e consequências das lesões organo-encefálicas. O outro pólo «médico» inclui todas as acções médicas, de diagnóstico, terapêuticas e de prognóstico, que resultam da sintomatologia patológica. Este pólo influencia também a posição dos pais, bem como a dos professores, e recebe o seu peso das estruturas patogénicas do defeito cerebral. O triângulo aqui apresentado procura tornar significativa a posição central da criança e demonstrar a sua posição em relação aos 3 pólos.
Médico
CriançaPais Pedagogo
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Mas relativamente à criança existem não só vias aferentes mas também eferentes, A questão que se coloca é a de avaliar se a criança toma a sua posição central ou num dos ângulos do triângulo, sob a influência unilateral de um pólo, ou mesmo fora do-triângulo e por isso fora da área de influência de todos os 3 pólos, se a influência é idêntica e contínua ou se os 3 pólos garantem um equilíbrio. Para a criança de uma instituição com internato, por exemplo, o triângulo já não se aplica, a família já não tem possibilidade ou intenção de cuidar da criança; assim, tomam também realmente os cuidados complexos no sistema constituído por nós, acontecendo mesmo que um professor com personalidade rica e autêntica toma o lugar dos pais, substituindo-os.
Mas o triângulo tem também significado indirecto, e mesmo na sua representação gráfica, se considerarmos o modelo de um pólo, por exemplo o dos pais, então dá-se a ligação por um lado com o médico e por outro lado com o professor, e sob esta designação, no caso da criança deficiente, deve estar incluído o terapeuta pedagogo e todo o sistema terapêutico-pedagógico e os seus métodos.
Deve tratar-se naturalmente de um triângulo simétrico, isto é, o significado dos 3 pólos, e o seu peso no tratamento da criança devem manter-se em equilíbrio, uns em relação aos outros. E esta relação dos pólos, de uns relativamente aos outros, está dependente em primeira linha, acentuamos isto de forma bem clara, da confiança mútua, de uma sensação a definir nem sempre de forma simples de tal modo que cada um trate, eduque ou cuide de maneira óptima da criança entregue aos seus cuidados. Esta consciência colocará os pais em condições de compreender todas as medidas terapêuticas aconselhadas pelo médico e pelo professor e a confiar nos seus conselhos. Este comportamento surgirá apenas se os pais estiverem profundamente convencidos de que o médico ou o professor conhecem bem o filho, revelam perante eles a indispensável dedicação, sentem afeição e estão actualizados na metodologia que aplicam.
Relativamente ao professor, é igualmente importante a sua relação com os pais e com o médico. O professor nunca deve ter a sensação de ser o único a educar a criança. Ele necessita dos pais, do feedback* indispensável aos seus esforços terapêutico-pedagógicos,
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* Tradução: «da cooperação».
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da certeza que em casa tudo é feito para continuar o trabalho com a criança e para a criança. Também para este lado do nosso triângulo é indispensável a confiança mútua. Nada é mais deprimente para o terapeuta pedagogo do que trabalhar em vão, saber que os familiares, por incompreensão, fazem mal ou o contrário daquilo que foi por ele iniciado.
É indispensável uma colaboração estreita entre o professor e o médico. Qualquer médico com experiência nesta área sabe que, sem cuidados terapêutico-pedagógicos, não é possível conseguir progressos reais. Mas também qualquer professor sabe que os conselhos médicos e as terapias adequadas, incluindo a terapêutica medicamentosa, como por exemplo medidas anticonvulsivantes e psicofarmacológicas, têm uma importância enorme. São de igual modo indispensáveis exames clínicos, electroencefalográficos e bioquímicos e toma-se necessário, no decurso do crescimento, uma grande quantidade de exames médicos. O aspecto médico do sistema assenta também na confiança. Muitos pais esquecem que não só devem confiar no médico assistente da criança mas tam ém devem convencê-lo realmente que compreendem, aceitam e põe prática o seu parecer, os seus conselhos e recomendações. Mas isto não deve ser um acto isolado mas um processo longo, por vezes, durante dezenas de anos, no qual devem ser alcançados sempre e em conjunto os objectivos. Sobretudo a dinâmica do desenvolvimento e o percurso das várias fases de maturação exigem novas orientações. As contrariedades podem ser dominadas e ultrapassadas somente em conjunto. A frase «filhos criados, trabalhos dobrados» é uma realidade e então surgem as perguntas sobre o futuro. «O que acontecerá quando morrermos?» Somente conhecendo a situação familiar, especialmente os irmãos, se pode dar um conselho médico adequado.
A relação médico-pais assenta no conhecimento das possibilidades pedagógicas. Saber qual o currículo terapêutico-pedagógico adequado à criança, onde estão as suas oportunidades e qual o professor que obterá o óptimo resultado, é condição indispensável para colocar correctamente os «problemas pedagógicos». Também neste caso, é indispensável o feedback'* e o estabelecimento de um plano de educação prospectivo e consequente.
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*Tradução: «cooperação».
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O modelo gráfico do triângulo com todos os lados iguais deve ser transcrito para o plano ideal. Mas qualquer pessoa experiente nesta área sabe, se considerar o tipo de doentes que trata, que há casos que têm bons resultados que ficam na área de acção de um triângulo intacto. Que nem sempre funcione de forma ideal é compreensível, pois a harmonia das forças deste triângulo é perturbável não só por parte da criança e da sua deficiência, mas também devido a alterações num ou em dois dos três pólos (p. ex.: mudança de professor). No entanto, deve ambicionar-se esta representação ideal, pelo que deve pretender-se sempre alcançá-la e por vezes lutar contra várias resistências endógenas (da parte da criança) e exógenas.
Parece-nos difícil a função do médico, devido a factores banais aparentes como a desconfiança, fuga à realidade para novas esperanças (mudança de médico), desespero, esgotamento ou perda de ligações familiares.
Diferençastes métodos pedagógicos influenciam menos este equilíbrio sensível do que a falta de frequência, contacto e relação no tratamento. Mesmo na área terapêutica médica as diferenças metodológicas não são assim tão importantes. É muito mais decisiva a actuação conjunta, harmoniosa, de todos e a realização consciente do necessário. A criança deficiente mental torna-se num adulto deficiente mental. O caminho até lá é difícil e cansativo. Se o adulto vai alcançar o máximo das possibilidades terapêuticas e pedagógicas, como e onde vai viver a sua vida, em que posição e em que condições, depende, em última instância, do que foi investido nesta criança: amor, força, saber, tempo e dinheiro.
O triângulo descrito como representação ideal do acompanhamento da criança deficiente mental está ligado ao funcionamento, isto é, ao trabalho conjunto dos 3 pólos. Mas sabemos muito bem que existem também na nossa sociedade, altamente civilizada, regiões onde falta ainda o pólo terapêutico-pedagógico.
Igualdade de oportunidades - a frase chavão da nossa sociedade de beneficência - em qualquer dos casos não é dada ainda aos deficientes. São demasiado grandes as diferenças, por exemplo, entre as zonas rurais e as grandes cidades.
Representações ideais existem, e mantêm-se, para um dia se tornarem realidade. Isto exige confiança na correcção de actuação e necessidade de mobilizar todos os interessados no problema e meios
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económicos e financeiros. Uma sociedade está mais ou menos voltada para o social pela maneira como procede em relação aos seus membros mais desfavorecidos. E quem poderá afirmar que a criança deficiente não está entre os grupos mais desfavorecidos?
26.2 BASES DA EDUCAÇÃO
Nos capítulos anteriores, foram sendo apontadas dificuldades de comportamento que agravam a educação das crianças com lesão cerebral.
As possibilidades de desenvolvimento de uma criança com lesão cerebral estão ligadas a três factores:
1. Natureza e gravidade da situação clínica.
2. Possibilidades terapêutico-pedagógicas.
3. A educação dada pelos familiares e por outros acompanhan
tes da criança. _~
Os pontos 1 e 2 estão interligados, o ponto 3, pelo contrário, deve ter um tratamento pormenorizado. O conflito com a deficiência da criança é um longo processo que alberga em si toda a profundidade da doença humana. O que vai resultar deste processo continua a condicionar a vida da criança. Se se está decidido a tomar ou não esta dura condição com todos os esforços, privações, holocaustos, cuidados e renúncias, se se procura alcançar o máximo do possível ou se se «deixa andar a carruagem», tal dependerá de muitos factores por vezes até imponderáveis. Sabemos muito bem que a educação tem uma grande importância no desenvolvimento da criança e, por isso, deve esclarecer-se e tornar compreensível o papel dos pais. Da nossa experiência de 30 anos, que nos permitiu seguir uma grande parte dos nossos deficientes durante muitos anos, podemos dizer que se trata de conselhos no fundamental muito simples que devem ser dados e que deveriam ser seguidos. A seguir, são referidos os falsos conselhos, como são emitidos isoladamente e seguidos.
Trata-se do conselho - a criança deve ser educada somente com «Amor», indulgência, sem rigor, sem castigos, enfim deixar
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fazer tudo. Qualquer criança educada assim, saudável ou doente, passado um curto espaço de tempo já apresenta a «conta» a este médico do «Amor», nomeadamente através de uma obstinação progressiva, rigidez e tirania sobre todos os que a rodeiam. Ela não consegue compreender o objectivo dos que a rodeiam, habitua-se ao amor e aproveita-se, com uma certeza ligada ao instinto, da falta de resistência dos adultos. É francamente errado, sob a capa do amor à criança, ocultar a sua habituação sem limites. Este é o maior erro que pode haver na educação. Prejudica qualquer criança e ainda mais a criança com lesão cerebral, muito mais do que os familiares possam pensar; mais tarde ou mais cedo, tornam-se evidentes as consequências da sua actuação.
Também é um erro, e é incompreensível para a criança, a dureza excessiva, o comando constante, os ralhos ou mesmo os castigos. Aqui temos de acentua e bater de qualquer forma, tanto na criança saudável como na criança com lesão cerebral, nunca deve ser o objectivo final. Sabe-se que são castigadas sobretudo as crianças nervosas, hipercinéticas e teimosas. Há familiares ou educadores que acreditam e estão convencidos que castigar é o único meio de levar a criança com lesão cerebral a compreender, «de tal modo que são elas próprias que já pedem castigo». Esta conclusão é errada, tal como se deduz de um questionário recente sobre o efeito destes castigos. Quando as crianças deficientes mentais, depois de terem feito alguma asneira, estendem a mão para receberem o castigo, isto não significa outra coisa senão um comportamento condicionado, não é, de modo nenhum, a consciência de um processo educativo. O condicionalismo do bombom, no caso do comportamento desejado e adequado, é o pêndulo para este padrão de comportamento. No caso de crianças deficientes mentais, o castigo pode consistir quase exclusivamente na retirada consequente de certos direitos (por ex.: ver televisão), mas nunca pode significar retirada do amor, carinho e dedicação.
A educação de crianças com lesão cerebral pode ter êxito apenas sob o lema «consequência amorosa», através do qual se dá realce à consequência, isto é, a perseverança na tradução de acções necessárias à criança, do que nós podemos esperar ou exigir dela. Um pequeno exemplo para esclarecimento: deve-se esperar tanto tempo, arranjar paciência até que a criança consiga vestir o casaco sozi-
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nha e não se deve retirar este trabalho à criança porque «estamos com muita pressa». Mais tarde a criança espera que a mãe, sob a pressão do tempo, a venha ajudar. No jardim infantil, entregue a si própria, ela veste o casaco muito bem sozinha e até o abotoa. A criança com lesão cerebral descobre assim facilmente os pontos fracos do seu sistema educativo. Aproveita, com requinte mal compreendido pelos familiares, discrepâncias no comportamento educativo. Mães que trabalham deixam a educação muitas vezes entregue a avós, tias, que geralmente não opõem resistência aos desejos da criança: muitas vezes vangloriam-se de tratar com mais carinho o neto, disputando entre si esse carinho. Também surgem as censuras de estranhos aos pais porque são demasiado rigorosos. Tais censuras são retiradas logo que o comportamento da criança se toma insuportável. Se do carinho resultar comportamento tirânico, diz-se que a educação não está a ser suficientemente eficaz.
É evidente que a criança saudável tem tendência para assumir um comportamento semelhante. A diferença relativamente à criança deficiente está no facto de a criança saudável reconhecer com inteligência progressiva e com senso crítico crescente a inutilidade do seu comportamento irritante e sem sentido. A criança deficiente mental, pelo contrário, procede assim durante anos, por vezes a vida inteira. Devemos acentuar que, para uma educação eficaz, deve introduzir-se uma grande percentagem de amor, mas nunca em exagero de modo a correr o risco de excesso de mimo. É interessante também a reacção diferente das crianças em relação às várias pessoas que intervêm na sua educação. Sabe-se que se verificam também sinais de desgaste, por exemplo, relativamente à voz. A mãe, que está sempre a falar de horários, dá ordens, corrige, explica, educa, por vezes, à medida que o tempo passa, só se consegue fazer ouvir, aumentando o tom de voz. Pelo contrário, as vozes, que raras vezes são ouvidas pela criança, são melhor aceites. Sabe-se também que a distância em relação à criança facilita a compreensão das ordens. A mãe, que está ligada a emoções mais fortes, quase nunca consegue ter aquela distância interior que seria necessária. É de realçar que crianças deficientes mentais respeitam mais aquele que é eficaz na sua educação e seguem-no com amor, melhor do que aquele que só lhes dá mimo. Este é explorado, a maior parte das vezes, até ao esgotamento, e por isso se torna ineficaz no aspecto educativo. Em
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princípio, uma criança com lesão cerebral devia ser educada tal como uma criança saudável sem favoritismos, mas tendo em consideração a sua deficiência, com elogios e repreensões, estímulo e protecção perante incapacidades e sobrecargas, inserindo-a no mundo normal e confrontando-a com as suas dificuldades e alegrias, tal como H. BACH afirma no seu livro sobre Educação das crianças deficientes mentais. Em muitos casos basta para isso o «conselho pedagógico», ele está de acordo com as exigências terapêutico-pedagógícas.
Nos capítulos anteriores foram referidos e esclarecidos muitos pormenores sobre a educação. Não vamos referi-los de novo, mas temos que acentuar que com a expressão «relação afectiva» está definido o princípio da educação. É errado exigir demais à criança, mas também devemos pensar que ef de dar mais do que está disposta a dar. Mas não se pode exigir da criança pequenas obras de arte que ela terá de realizar, em cada momento, como sinal das suas capacidades. Existe sempre o perigo de adestramento. No entanto para várias crianças existe apenas um caminho - compensá-las da falta de inteligência através do treino de determinados actos, através da disciplina. Se hoje em dia esta palavra se tornou antiquada, e se para muitos educadores modernos soa mesmo como repressiva, então somos simplesmente antiquados; existem mesmo crianças que só podem ser orientadas desta maneira. A terapia do comportamento, com os seus processos condicionados, trabalha com meios, que eventualmente podem levar ao adestramento, mas não está contra a disciplina no tratamento de casos mais difíceis. Estamos convencidos que a terapia do comportamento pode ser aplicada com êxito em vários casos. Afinal orientar toda a educação assim, pode levar a dificuldades que o terapeuta do comportamento, levado por vezes por uma visão unilateral, gostaria de ter presente acima de tudo. A maior parte dos deficientes são chamados à atenção para os resultados positivos da educação. Apenas através destes conseguem alcançar o conhecimento e o progresso. Se a criança experimenta e sente dentro de si própria que é mais fácil, mais simples e mesmo mais feliz com as tarefas que lhe são exigidas, aceitará melhor as funções e actividades que está a aprender. É perigoso quando o meio ambiente reage mal às acções da criança. quando ri de determinadas acções, por vezes até proibidas ou, não faz caso destas acções, porque a criança «não compreende nada».
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A reacção do meio ambiente deve centrar-se somente no reforço positivo e reforço negativo, não deve surgir de um capricho do momento.
Em todas as áreas da educação não se deve esquecer que a criança com lesão cerebral também necessita de mudança e alteração no programa. Mas esta mudança não deve ser irreflectida e demasiado frequente de tal modo que, por exemplo, uma criança, e isto acontece com frequência, só se sinta calma no carro (como veículo da mudança constante do programa).
Na educação também não existem receitas. Está em primeiro plano a adaptação do indivíduo. No entanto é importante que se consiga, com os métodos aplicados, tornar a criança sociável, sem reprimir as possibilidades positivas da sua personalidade, mas dificultando os factores de comportamento patológico.
Ambicionamos, como meta da educação, que a criança deficiente desenvolva, logo nos primeiros anos, as suas capacidades de iniciativa, de reacção e de adaptação social, e possa também viver e participar na família e na sociedade. Este é, pois, um processo mais cansativo e mais longo que exige um grande esforço, paciência e conhecimentos por parte do educador.
Adaptação ao meio ambiente normal é uma exigência fundamental, e quanto melhor este for, menos penoso será o desenvolvimento da criança. Inserir na vida familiar, evitar o «deslizar» para uma marginalização, são metas imprescindíveis da educação. Devese dificultar, sobretudo, que a criança se transforme no tirano da família, que imponha a sua vontade, o seu ritmo, e condicione a vida e até o futuro dos restantes membros da família.
Educar significa esforços constantes. Para isso não podemos contar, no caso da criança com lesão cerebral, que se consiga sempre a compreensão e o conhecimento das necessidades da vida, que lhe permita sujeitar-se conscientemente às necessidades educativas. Os esforços devem começar em bebé e nunca devem terminar. Certamente, ninguém consegue fazer tudo bem e continuamente sem fracassar dias, meses, anos e dezenas de anos. Mas devemos procurar, pelo menos, evitar erros graves. É uma tarefa médica, psicológica e pedagógica aconselhar os educadores directos e apoiar as suas medidas educativas. De fora podemos criticar facilmente, não estamos a suportar os esforços constantes. É simples dizer que se deve ser forte,
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quando se vê, somente de vez em quando e por pouco tempo, a criança deficiente mental. Mas educar o melhor possível uma criança, por vezes com uma deficiência muito grave, de manhã à noite, é uma tarefa heróica que exige grande apoio. Só deve dar bons conselhos aquele que está disposto a ajudar de forma eficaz. Qualquer pessoa que trabalhe nesta área sabe que actualmente existe uma grande quantidade de livros sobre esta questão da educação e que, sem dúvida, se fala, se reclama e se prega com muito saber e inteligência. Estas ajudas podem somente dar pistas, devendo cada um encontrar por si próprio, após experiências exaustivas, o caminho para chegar ao filho. Se, hoje em dia, há sistemas de educação recentes que, orientados para certos objectivos, procuram atingir uma aproximação à normalidade, não devemos forçar e viver escravizados por tais sistemas. Integrados no dia a dia, estes programas fazem parte da vida quotidiana.
O objectivo base de todas as medidas e educação deve ser uma existência física e mental normal da família, independentemente do número de pessoas que a compõe. A melhor educação do deficiente perde sentido se, devido a isso, a família se desfizer. À existência da família, como princípio mais importante, tem de se subordinar também a criança deficiente e o trabalho necessário para a sua educação e formação. Neste caso, é de referir um outro objectivo da educação que hoje em dia pode parecer antiquado, numa era de ideologias sobre a deficiência mais diversificada: Normalidade - Nem a criança nem a sua família podem ser «anormais».
O objectivo do ensino «Normalidade» deve ser interpretado e compreendido neste sentido. Demasiados disparates confundem hoje em dia a mente dos interessados que, por vezes, não reconhecem que, por detrás das ideologias e sistemas apregoados, somente se pretende dar nome aos seus autores. A realidade é outra - muito mais difícil.
26.3 OS JOGOS
26.3.1 Brinquedo
Tal como a criança saudável, a criança com deficiência descobre o seu meio ambiente e o seu próprio corpo. A observação das
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mãos e pés, a sua própria voz e as experiências que constituem o seu meio ambiente com os objectos mais próximos, tudo isto são descobertas e processos de aprendizagem naturais e evidentes.
A criança deficiente física, por exemplo, pode não ver as mãos mas provocando a sua movimentação, desenvolveremos a necessidade de as seguir. Há não só a falta de vivência do movimento mas também o jogo de luz e sombra das mãos com os impulsos resultantes daí, para o desenvolvimento da noção de espaço e de coordenação.
No caso da criança deficiente mental profunda, existe sempre o perigo que não se chegue a incluir objectos do meio ambiente no seu jogo, e que a rotação e movimento das mãos, vivido como primeiro estádio primitivo da brincadeira, persista como única acção motora. Sabe-se que este quadro de padrões estereotipados motores, que uma criança pode manter a vida toda, tálvez só com ligeiras variações, se verifica sempre em períodos de aborrecimento, cansaço excessivo e irritação.
Muitas crianças afeiçoam-se, com tenacidade indiscutível, a um único objecto - uma fitinha, uma roda; são sobretudo coisas que não são valiosas para uma brincadeira autêntica e que pertencem ao dia a dia da criança de tal modo que, se se retirar este objecto especial, chora muito, grita e recusa-se a comer ou algo semelhante até que lhe devolvam o objecto querido. Parece que, de acordo com a natureza da deficiência, existem motivos reais que devemos compreender como reflexos ou reacções a estímulos ópticos, acústicos ou tácteis.
Jogos orientados assim unilateralmente são um indício patológico, revelam um comportamento autista (aqui, como sintoma de atraso mental acentuado ou como sintoma principal do sindroma do autismo), que, por vezes, pode ser um primeiro indício para diagnóstico desta perturbação.
O objectivo da terapia deve ser, neste caso, abrir estas limitações e alargar o interesse da criança através da oferta de outros brinquedos. Compreende-se que tal brinquedo deve ter grande impacto afectivo. Também é evidente que, tal como a exigência que, a certa altura, não pode ser substituída completamente e para «sempre», tal brinquedo consiga alargar o mundo e o horizonte da criança.
Deve criar-se, pois, determinadas condições para as quais é importante, sobretudo, além do carácter de desafio forte referido, o seu manuseamento. Mas devem facilitar-se à criança também novos
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aspectos, isto é, novas funções, contactos, movimentos, experiências, sensações ou vivências, que são indispensáveis como contributo para o seu desenvolvimento.
Deve ainda realçar-se que o brinquedo terapêutico-pedagógico não deve ser aborrecido e não esquecer a importância do brinquedo convencional. Deve-se mesmo responder à questão se o significado de um brinquedo deve corresponder não só ao ponto de vista terapêutico-pedagógico dos adultos mas, pelo contrário, deve ser ao gosto da criança deficiente.
26.3.2 Companheiros de brincadeira
Os companheiros de brincadeira são, de início, a mãe, os irmãos saudáveis, de vez em quando o pai, mais tarde a educadora no jardim de infância ou as visitas e os amigos. Só quando o companheiro de brincadeira está, de algum modo, informado da situação da criança deficiente é que brinca com ela de modo adequado e útil. Mimar é ceder, por princípio ou de momento, para satisfazer qualquer desejo à criança, e assim, sob a capa do grande amor, perder-se a eficácia. O empenho em ceder sempre à vontade da criança, por vezes só para que finalmente haja sossego em casa e reine a paz familiar, leva mais tarde ou mais cedo ao referido «excesso de mimo». Desde que se chegue a tal situação é impossível uma brincadeira adequada, construtiva e favorecedora do desenvolvimento da criança.
Verifica-se durante a brincadeira com crianças saudáveis uma situação especial. Acontece talvez primeiro com os irmãos saudáveis, mais tarde com os companheiros do jardim de infância, bem como com o grupo das restantes crianças em casa, no parque, com os parentes, com as crianças na rua, etc.. Nestes casos surgem com frequência situações críticas, conforme a idade da criança deficiente e do companheiro saudável.
Se a criança saudável é mais velha do que a criança deficiente, então esta integra-se na sua própria brincadeira como substituta da boneca, anula-se num papel de paciente submissa, ela é vestida, despida, mimada e cuidada, deve ser obediente em tudo. Tudo vai bem, mas apenas enquanto a criança deficiente não toma a iniciativa
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nem manifesta desejos e iniciativas. Quando as apresenta, é imediatamente expulsa, por vezes até violentamente, da brincadeira da criança saudável. Neste processo de rejeição, a criança deficiente só consegue reagir com complexos de inferioridade, perante os quais há duas possibilidades de reacção: de forma agressiva ou depressiva - a criança deficiente perturba então, por seu turno, a brincadeira da criança saudável ou então retira-se. Da depressão surge o isolamento que leva mais tarde, com frequência, à tristeza.
Se, pelo contrário, o companheiro normal é mais novo do que a criança deficiente, então surgem outros problemas. Verifica-se, num grande número de crianças, de início o fenómeno «corrente de água», isto é, o desenvolvimento espontâneo normal da criança saudável arrasta consigo também a criança deficiente. Ela está disposta, em tais fases mais ou menos prolongadas, a fazer tarefas que, exigidas por um adulto, nunca faria. O conselho dado ainda hoje aos pais com um filho deficiente - «arranjem uma criança saudável para que a criança deficiente não fique sozinha» - baseia-se neste fenómeno interessante do «companheirismo». Mais tarde ou mais cedo, verificar-se-á um outro fenómeno interessante, o do «atropelamento», designadamente quando o desenvolvimento da criança saudável ultrapassa o da deficiente, quando já não funciona a brincadeira inicial e a criança saudável brinca de um modo mais evoluído com outros companheiros saudáveis e já não quer ser perturbada nesta brincadeira pela criança deficiente. Por parte da criança deficiente então têm lugar, forçosamente, os tipos de reacção descritos acima.
26.3.3 Meio ambiente e comportamento
O comportamento das crianças deficientes durante a brincadeira continua a ser um reflexo do meio ambiente e da questão até que ponto a mãe está em condições de brincar com a criança deficiente, quanto tempo, quanta força, paciência e fantasia tem à sua disposição durante o dia. Por exemplo, a casa é suficientemente grande para garantir à criança deficiente o seu próprio espaço ou toda a vida da família decorre num único espaço? Quanto tempo necessitam os irmãos saudáveis para satisfazer as exigências das suas
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tarefas e interesses? Tem de ser muito o tacto e a táctica necessárias nestes casos.
Assim a mãe, por seu turno, não deve-acentuar demasiado ao deficiente as suas incapacidades e o seu atraso em relação aos outros filhos, mas sim apoiar os seus progressos diminutos nos jogos e na aprendizagem, aproveitando as experiências bem sucedidas para favorecer os progressos. Por outro lado, deve também esclarecer os filhos saudáveis sobre o motivo pelo qual eles não devem demonstrar claramente, perante o irmão deficiente, a sua superioridade. Esta tarefa ultrapassa às vezes a força de uma mãe.
A organização de tempos livres adequados é talvez a tarefa mais difícil e mais dura no seio da família. No caso presente, esta só pode ser eficaz com a coQbór_ação de toda a família, tornando-se necessária a inserção também do pai e dos irmãos mais velhos para conseguir o objectivo global, com frequência apenas como uma simples necessidade de passar um dia sem dificuldades, conflitos e aflições.
26.4 JARDINS DE INFÂNCIA ESPECIAIS
Quando consideramos a noção de pedagogia terapêutica no sentido lato, fazemo-lo conscientemente, pelo que o seu âmbito começa logo após o diagnóstico, na consulta e independentemente da necessidade de exames complementares. Tal como para a criança normal, as exigências pedagógicas oficiais começam com o jardim de infância, o trabalho terapêutico-pedagógico, para a criança com lesão cerebral, começa também no jardim de infância especial. filas corresponderia muito mais à realidade, se se dissesse «deveria começar de facto», pois o número de jardins de infância especiais existentes é ainda insuficiente, de tal modo que não se pode falar actualmente de um ensino que abranja todas as crianças com lesão cerebral. Por isso é evidente, tanto no âmbito das escolas como das oficinas de educação especial, como são necessários os jardins de infância e como dão bons resultados, pressupondo que as educadoras do jardim de infância têm a formação adequada e estão convictas do seu trabalho.
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O trabalho nos jardins de infância especiais pode e deve ser orientado, tendo em conta as perturbações específicas de cada criança. À semelhança das várias orientações da escola de educação especial, as crianças com deficiências físicas, visuais, auditivas e da fala, bem como as deficientes mentais, devem ser tratadas de acordo com a sua deficiência, mas nota-se também, neste nível etário, que a multideficiência tende a aumentar, estando a regredir na mesma proporção o número de deficiências isoladas.
Relativamente às educadoras dos jardins de infância especiais, são válidas todas aquelas exigências que devem ser feitas também aos professores das escolas de educação especial. Se no jardim de infância estão no programa funções muito mais simples, por exemplo, hábitos de higiene, assoar o nariz, vestir e despir, estar sentado, hábitos de jogos colectivos, comer sozinho, etc., também têm como objectivo conseguir uma aproximação àquelas tarefas de autonomia que são consideradas normais. Devido ao número reduzido de tais instituições, existem naturalmente grandes diferenças nas capacidades das crianças aí educadas. Neste grau de ensino terapêutico-pedagógico, o quociente de inteligência não deve servir como único critério para a admissão. Pode-se decidir mesmo, após alguns dias de avaliação, se se deve ou não admitir a criança. No jardim de infância especial, a professora deve ter a possibilidade de exigir um currículo terapêutico-pedagógico.
Na idade do jardim de infância é muito difícil avaliar o tipo de exigências a fazer, conhecer os limites máximos e mínimos. A criança tem, por vezes, uma série de aquisições resultantes da experiência de actividades desenvolvidas sem orientação, que só podem ser arrumadas com muito trabalho, para que se possa reconhecer quais as capacidades que de facto existem. Além do trabalho do terapeuta da fala, musicoterapeuta e fisioterapeuta no jardim de infância, a pedagoga deve prestar também ajudas muito simples, isto é, desenvolver uma grande quantidade de tarefas que exigem uma personalidade adequada para conseguir realizar a integração total.
A educação de uma criança com lesão cerebral, num jardim de infância normal, deve ser aconselhada apenas quando a respectiva professora considera essa criança não uma sobrecarga mas uma tarefa pedagógica. Embora se possam integrar crianças com lesão cerebral nos grupos de crianças normais, por vezes até de forma sur-
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preendente, existe, no entanto, com frequência o perigo que a criança deficiente seja demasiado mimada e superprotegida, pelas outras crianças. A disposição natural da criança normal_ para proteger, o seu instinto para jogos de pai-mãe-filho levam a que a criança deficiente seja cuidada com amor, mas tem como consequência que esta goste demais e se deixe mimar, vestir, despir, alimentar, de tal modo que não sejam assim atingidas as exigências de um jardim de infância normal, relativamente aos objectivos da terapia. Tais experiências contrariam as opiniões que, por vezes, ouvimos - que as crianças normais são brutais e cruéis com as deficientes. Só serão assim, quando ouvem observações depreciativas dos adultos ou são levadas a afastarem-se da criança deficiente. Através de orientações correctas, a predisposição da criança normal para ajudar pode ser conduzida por vias que sirvam os objectivos a alcançar para ambos. Também se depreende que depende sempr da personalidade do pedagogo terapeuta o rumo a percorrer por ummcriança com lesão cerebral.
Muitas crianças, depois de atingirem os 6 ou 7 anos de idade, não têm ainda a maturidade para a frequência de uma escola de educação especial - aqui queremos englobar os vários tipos de escolas de educação especial, segundo o grau de maturidade da criança, nas quais ela pode ou deve ser matriculada. Dado que o número de candidatos aos lugares nos jardins de infância especiais é grande, muitas crianças podem não ter a possibilidade de continuar muito mais tempo nos jardins de infância especiais. Ao deixarem o jardim de infância especial e não serem admitidas nas escolas de educação especial, o trabalho terapêutico-pedagógico desenvolvido até então vai perder-se. Portanto, tal como foi experimentado em Viena, deve ser criado um outro grau de ensino terapêutico-pedagógico, entre o jardim de infância especial e a escola de educação especial, no qual estas crianças possam continuar o tempo necessário até atingirem a maturidade escolar.
A questão por que razão se fala sempre neste livro em Pedagogia terapêutica e não em Pedagogia especial deve ser esclarecida a partir da evolução histórica da educação especial na Áustria, em cuja Associação terapêutico-pedagógica estão empenhados, em pé de igualdade, há mais de 70 anos, professores, médicos, psicólogos. Nomes como H. HELLER, H. LAZAR, H. ASPERGER, H. RADI. e outros, têm marcado este trabalho conjunto que, hoje em dia, inclui, em larga medi-
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da, os professores do jardim de infância especial, das escolas de educação especial, de fisioterapeutas, musicoterapeutas e terapeutas ocupacionais bem como assistentes sociais, audiometristas e optometristas. Colaboram também nesta associação os representantes das associações de deficientes, tal como se deduz da sua própria concepção. Por isso, se aceita que possa ser posta à discussão a segunda parte da designação «Pedagogia terapêutica»; ela exprime o objectivo que se deve ambicionar, mesmo que nem sempre se consiga alcançar, à semelhança do que se procura hoje em dia com a noção «Normalização».
26.5 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
Não há dúvida que a Pedagogia terapêutica é a base do tratamento da criança com lesão cerebral. A evolução que a Pedagogia terapêutica sofreu nos últimos anos foi extraordinária pelo facto de os problemas especiais, que resultam dos vários tipos de perturbações, serem analisados e reconhecidos de modo que se tornou possível a consideração de cada caso individualmente.
A pedagogia especial, reconhecida e estabelecida já há dezenas de anos, e parcialmente há cerca de 100 anos, sofreu esta mudança de estrutura. Os surdos-mudos de então que, devido a uma inflamação purulenta do ouvido médio na primeira infância ficavam surdos e posteriormente mudos devido a surdez precoce, já não existem actualmente. O tratamento de otite serosa com antibióticos impede quase totalmente esta deficiência que anteriormente era frequente. De igual modo os cegos, devido a infecções durante o parto, já não existem. As crianças tratadas, hoje em dia, em instituições de ensino especial sofrem de anomalias dos olhos, da retina, lesões do nervo óptico (nervos opticus - feixe nervoso que liga o olho e o cérebro), isto é, de perturbações na via óptica.
Enquanto em épocas anteriores as crianças destas instituições tinham perturbações, quase exclusivamente. num único órgão dos sentidos, actualmente evoluí-se cada vez mais para deficiências múltiplas.
No primeiro plano das perturbações está a lesão do cérebro que pode afectar um ou vários órgãos dos sentidos. Mas mais grave é a
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combinação de vários graus de atraso mental, com perturbações dos órgãos dos sentidos em primeiro plano. Paralelamente a esta evolução, apareceu uma alteração significativa do tipo de perturbações das crianças, nas escolas para deficientes físicos. Com a diminuição radical do número de crianças com poliomielite e da presunção genética nos casos de distrofia muscular, houve um predomínio das crianças com lesão cerebral primária, isto é, com paralisia cerebral. Dado que nos grandes grupos de crianças, com paralisia cerebral espástica e com perturbações de movimentos extrapiramídais, só cerca de 30% são crianças normais intelectualmente, cada vez é maior o número de deficiências múltiplas nas escolas de educação especial para deficientes físicos e que revelam uma combinação de perturbações mentais e motoras.
Quem lida com este tipo de situação ,clínica, sabe muito bem que raras vezes se encontra uma deficiência' isolada, porque resultam com frequência de um sintoma principal com repercussões noutras zonas que vão alterar e perturbar a motricida , o comportamento e o desenvolvimento cognitivo. A frequência do aparecimento de convulsões, com as suas consequências e todas as variantes das lesões cerebrais infantis (desde o deficiente motor até ao atraso mental com lesão grave), é apenas um exemplo que demonstra que raras vezes existem perturbações isoladas que atinjam só uma área.
A questão da matrícula na escola é um problema específico que só será resolvido com base nos resultados de um exame pormenorizado e considerando as possibilidades terapêutico-pedagógicas existentes. Em muitos casos uma criança deficiente pode, isto é, deve ser integrada na escola oficial. Mas é necessária uma série de condições das quais depende o seu desenvolvimento:
A criança deficiente deve ser capaz de se integrar no trabalho físico, mental e intelectual.
A escola (isto é, o conselho escolar, os professores e os alunos) deve ser capaz de aceitar essa integração.
É de salientar, relativamente ao ponto 1, que são capazes de se integrar sobretudo as crianças deficientes físicas, pois normalmente conseguem compensar as suas deficiências físicas, com habilidade ímpar e recebem, sem dificuldade, as ajudas eventualmente necessárias
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da parte dos colegas' ou dos professores, desde que existam as condições referidas no ponto 2.
Temos de chamar a atenção que, naturalmente, o número de crianças deficientes integradas numa classe da escola oficial será limitado. A naturalidade com que esta integração se processa, após dificuldades iniciais que surgem de todos os lados, é sempre espantosa e entusiástica. Mesmo crianças deficientes auditivas e visuais podem ser integradas, nas condições favoráveis descritas atrás.
Pelo contrário existem grandes obstáculos, quase inultrapassáveis, sobretudo no caso das crianças deficientes mentais, as quais se apercebem, por vezes demasiado depressa, da discrepância entre as suas próprias capacidades de aprendizagem e as das restantes crianças da classe. Assim, uma integração só pode ser possível e favorável, se a deficiência for compensada através de apoio intensivo e adequado mas, neste caso, tem de se lhe dar muita atenção logo no início da escola.
Em princípio, as crianças deficientes mentais a integrar na escola oficial, como é o caso em certas zonas da Itália, não podem corresponder ao que se pretende, porque a ideia original de integração total de deficientes mentais em elevado grau é impossível, não só da parte da criança, mas também da classe. A criança deficiente mental sofre perante a sua inferioridade e, à medida que vai crescendo, esta cada vez se torna mais acentuada devido à complexidade do ensino. Resvalará forçosamente para problemas de comportamento, durante os quais os tipos de comportamento mais frequentes são a agressividade e a depressão. De igual modo, supondo que o contacto com crianças deficientes mentais desse resultados pedagógicos positivos, para as crianças normais será apenas relativamente favorável pois nenhuma criança «se coloca voluntariamente na sombra» apenas para não revelar ao companheiro deficiente o que este não consegue realizar. Também somente poucos professores conseguem ter o tacto suficiente e até a táctica necessária para evitar tensões latentes.
Quem segue de perto as pesquisas iniciadas com demasiada publicidade e cobertura ideológica, vê e reconhece que mesmo nestes casos há limites. Se não se reconhecem estes limites, somente podemos atribuir isso a falta de intuição ou a falta de experiência.
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Hoje em dia acontece cada vez com mais frequência, pois com a diminuição da taxa de natalidade diminui também o número de alunos das primeiras classes da escola oficial, que, por diferentes motivos, as crianças deficientes se mantêm demasiado tempo na escola oficial, embora pudessem obter aqueles conhecimentos numa classe especial, adequada para alcançar maior sucesso sob determinadas condições. Afirmamos também que a integração, para um certo número de crianças, é e deve ser uma exigência e um desafio terapêutico-pedagógico aos professores, colegas e à criança. Contudo naqueles casos em que existem as condições de aprendizagem adequadas numa pequena classe com mobilização de medidas terapêutico-pedagógicas especiais, esse passo deve ser dado na escola de educação especial.
É um erro grave o facto de as escolas d educação especial e classes especiais serem abertas no nosso país m lugares longe das escolas oficiais, o que só é compreensível através evolução histórica. Elas deviam, em princípio, ser integradas espacialmente na escola oficial, de tal modo que, sob condições psicológicas e sociais adequadas - o que poderia ser uma coisa natural da nossa época - fosse possível uma integração parcial, isto é, por fases.
A integração atempada da criança isolada no tipo de escola mais favorável às suas capacidades e sintomas tem um enorme significado e pode influenciar decisivamente a sua vida.
Embora seja lamentável, temos de afirmar que as possibilidades terapêutico-pedagógicas por vezes são condicionadas devido à falta de escolas de educação especial. Faltam, sobretudo, nas zonas rurais, escolas de educação especial orientadas para disciplinas diferenciadas, isto é, várias disciplinas especiais. É frequente as classes especiais, anexas às escolas oficiais, serem alojadas geralmente nas áreas menos favorecidas do edifício escolar.
Tentativas de solução de entregar a «instituições com internato» crianças com lesão cerebral, quando não é possível um tratamento terapêutico-pedagógico, não podem ser aceites como soluções ideais, pois a instituição, por muito bem que seja dirigida, não pode substituir a família.
Felizmente, existem ainda professores com tal personalidade que conseguem trabalho positivo com aquelas crianças que, segundo as disposições da legislação escolar, na realidade não pertencem à
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sua classe. Isto é uma bênção para essa criança, mas no entanto um certo número de crianças, talvez capazes de corresponder ao que lhes for exigido, continua sem apoio pedagógico. Dói sempre aos mais experientes ter de constatar que há crianças que têm poucas possibilidades de ser educadas porque não existem classes ou professores de educação especial, embora elas fossem capazes de corresponder no espaço do ensino escolar especial. Segundo a legislação escolar, toda a criança capaz de corresponder ao ensino é obrigada a frequentar a escola.
Um outro problema no acompanhamento pedagógico de crianças com lesão cerebral é a composição das classes especiais, isto é, daquelas classes que são anexas às escolas oficiais. É natural, por motivos geográficos e organizativos, que, por vezes, não se consiga evitar a frequência de uma classe especial ao mesmo tempo por crianças com idades entre os 6 e os 17 anos. Infelizmente, encontramos nas classes das escolas de educação especial não só crianças com dificuldades de aprendizagem devido a lesão cerebral mas também, por vezes até em número superior, crianças abandonadas, inadaptadas, as quais, com inteligência normal ou pouco inferior à normal, revelam apenas falta de adaptação social. Que os filhos de emigrantes, em número cada vez maior, nos últimos 10 anos sejam enviados com frequência para escolas de educação especial somente devido à falta de conhecimentos da língua alemã, é ao mesmo tempo injusto, triste e grave tanto para estas crianças como para a classe. Os problemas sociais e pedagógicos daí decorrentes não são certamente uma folha de glória para os países industrializados da Europa central.
Um problema especial, e em muitos casos aparentemente insolúvel, é a integração escolar de crianças normais intelectualmente, mas com perturbações do comportamento, que são integradas na escola de educação especial porque são insuportáveis para a classe escolar normal. Nestes casos, tem de se discutir a questão sobre os limites da sobrecarga para a classe e naturalmente para o professor. No entanto fala-se tão pouco disto, porque é que uma tal criança se porta tão mal na escola normal de tal forma que se torna insuportável. Se funcionasse melhor o contacto entre o psicólogo e o médico, por um lado, e a escola e os pais da referida criança, por outro lado, mas também com os pais dos restantes alunos, existiria um campo maior de colaboração interdisciplinar e intra-social. Uma
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tentativa deste género decorre desde 1976 em Viena. Existe um projecto «Tratamento integrado de crianças inadaptadas», sob a direcção de W. SCHINDL e de uma equipa de psicólogos e professores envolvidos, que já interveio até agora em cerca de 30 escolas oficiais e tem tido muitos bons resultados.
As crianças com inteligência somente ligeiramente inferior à normal representam outro problema porque, por vezes, são reconhecidas demasiado tarde como disléxicas e nem sempre integradas a tempo na escola especial geral.
Também acontece muitas vezes que o professor é absorvido por uma parte da classe, pela actividade pedagógica, de tal modo que fica com muito pouco tempo para o trabalho intensivo com as crianças com dificuldades de aprendizagem. A questão, qual o tipo de escola para uma criança deficiente, é resolvida ainda- nalisando a situação social, psicológica e pedagógica. É evidente que a r sposta decisiva à questão sobre o tipo de escola deve ser respondida\pelo pedagogo, que pode reconhecer no trabalho diário com a criança as suas capacidades reais. A frequência, isto é, a admissão numa escola de educação especial, na qual incluímos a escola de educação especial para deficientes mentais profundos, crianças deficientes físicas, visuais, da fala ou auditivos, deve basear-se também na análise pedagógica, médica e psicológica.
Os exercícios de canhotos realizados ainda isoladamente com veemência e «violência», com todas as complicações daí resultantes como gaguejar, fazer chichi na cama, perturbações na concentração, no sono e outras semelhantes, são ainda motivo para mudança de escola e até porque os erros característicos na escrita e na leitura são reconhecidos sempre como falta de aptidões e não condicionados pela situação especial do canhoto, isto é, do canhoto sujeito a exercícios. Que se mude de escola ou se admita também crianças, com inteligência normal, com epilepsia nas escolas de educação especial para deficientes físicos, pode considerar-se válido apenas num caso isolado ou apenas considerando a intensidade e a frequência das crises. As condições necessárias para unia integração de crianças com crises nas escolas oficiais são referidas em pormenor no capítulo sobre as epilepsias.
A experiência tem-nos revelado que as crianças com lesão cerebral estão dependentes de factores afectivos e emocionais. A disposi-
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ção e as capacidades da criança com lesão cerebral continuam ligadas à personalidade do pedagogo. Se este for capaz de despertar o interesse pelo trabalho, então será possível obter os resultados positivos correspondentes. Mas se isto não acontecer, resultará daí não só uma função diminuída mas também com frequência o bloqueio total do interesse pelo trabalho.
As capacidades do professor de ensino especial têm de ser de natureza variada: orientação, calma, sensibilidade para a sintomatologia da criança isolada e para a estrutura da classe ou do grupo, compreensão das perturbações do comportamento resultantes da lesão cerebral, uma grande energia para impor as suas exigências à criança ou ao grupo, sensibilidade, psicologia e certeza em todas as afirmações perante os familiares, sobretudo aptidão terapêutico-pedagógica determinada não só pelos conhecimentos terapêutico-pedagógicos adquiridos, pela idade e pela experiência mas também pela compreensão intuitiva da situação.
A criança com lesão cerebral não é um problema estático no aspecto terapêutico-pedagógico que revela sempre a mesma deficiência. Maturidade física, família, meio ambiente, tempo, reacção, sistema nervoso vegetativo e muitos outros factores levam ao facto de os vários sintomas poderem variar nos aspectos qualitativo e quantitativo. A criança que parece equilibrada, e dum momento para o outro irritável, pode ficar poucos minutos depois hiperactiva, isto é, com inquietação exagerada. A criança autista grave pode, passado pouco tempo, retomar contacto com o meio ambiente. Como já foi acentuado, isto é um sintoma base de quase todas as lesões cerebrais infantis que estão dependentes em larga medida dos factos referidos e quem não compreende este tipo de reacções muito diversas conforme as causas possíveis não fará justiça à criança com lesão cerebral.
O facto de muitos países do mundo se encontrarem no princípio da instalação das escolas de educação especial, é conhecido. Que, hoje em dia, as nossas escolas de educação especial atingiram um padrão elevado, temos de agradecer em primeiro lugar a alguns pioneiros, dos quais queremos referir aqui apenas H: RADL, H. BACH e F. GASSE. O sistema do ensino especial foi alargado e diferenciado consideravelmente pelo que puderam ser postos de lado, sobretudo nas zonas rurais, de forma quase satisfatória, questões como dificuldades de transporte.
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Apesar disso, o número de crianças com lesão cerebral não matriculadas é ainda demasiado elevado no nosso país. A questão da capacidade da formação não pode nem deve orientar-se, hoje em dia, pelo critério da dificuldade na aprendizagem da leitura e da escrita. O tratamento terapêutico-pedagógico deve ser abrangente e incluir também muito mais: terapia musical, terapia ocupacional, terapia da fala e fisioterapia. Que estas exigências sejam difíceis de pôr em prática é, pois, compreensível porque a colaboração entre os terapeutas mencionados e os professores, bem como trabalho de equipa na classe devem ser primeiro aprendidos.
Para conclusão deste ponto sobre os 'ardins de infância especiais e as escolas de educação especial, quere os dizer apenas algumas palavras sobre aquelas dificuldades qu na generalidade afectam pouco, mas apesar disso podem influenciar a motivação e assim o sucesso do trabalho terapêutico-pedagógico. Trata-se de problemas que, em princípio, são de natureza humana e por isso podem provocar no professor de ensino especial fases de cansaço ou resignação, durante as quais ele duvida das suas capacidades e possibilidades. Quem não tomou conhecimento, através dos pais de crianças com lesão cerebral, que também eles passaram por tais reacções, talvez ainda mais graves e deprimentes? Por vezes acontece que o contacto com a criança nem sempre é tão estreito como gostaríamos. Por isso, somos de opinião que não é favorável, sob todos os pontos de vista, quando um professor tem sempre ao seu cuidado uma criança com lesão cerebral durante toda a fase escolar. Verifica-se que, a título comparativo, se limaram demasiado as «arestas» entre o professor e a criança, e que ambos já se conhecem demasiado bem para conseguirem ultrapassar directamente todas as dificuldades. Às vezes aumentam os preconceitos, assentes na reciprocidade, de classe para classe e vão perturbar o clima terapêutico-pedagógico eficaz necessário.
Uma questão que é capaz de «lançar poeira nos olhos» é a disposição para o trabalho, variável na criança cone o crescimento. Como às vezes os pais se entusiasmam no l.° ano da escola com os progressos do filho, mas mais tarde esquecem esses progressos espectaculares quando, com as exigências maiores, surgem mais dificuldades, culpando pelo insucesso não a criança, isto é, a lesão cerebral que a afecta, mas o professor. De igual modo. temos de
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referir o facto imprevisível da personalidade do professor ser a mais indicada para certas crianças e menos adequada para outras, e, o facto de haver professores que são de opinião que devem exigir somente o mínimo aos seus alunos e outros que devem exigir o máximo.
Quando mães de crianças de diversas escolas ou classes comparam as capacidades dos filhos, verificam por vezes grandes diferenças nas exigências que são feitas e por isso no desenvolvimento cognitivo. Como se vê, temos uma quantidade de problemas que não são considerados questões de princípio mas questões humanas.
O contraste das afirmações de um professor ou psicólogo em relação às de outro, a tentativa dos familiares em experimentar outra opinião diferente daquela que lhe tem sido transmitida sobre o filho, o medo que lhes tenham escondido a verdade, tudo isto são fraquezas do comportamento humano que devem ser compreendidas e são aceites pelos mais experientes.
É compreensível que a educadora de infância e o professor, isto é, o pedagogo, seja informado sobre as medidas terapêuticas, medicamentosas e médicas a que a criança está sujeita, uma vez que têm de estar atentos aos seus efeitos no comportamento da criança durante as aulas. A longa experiência destes anos revelou que geralmente os professores do ensino especial não são suficientemente esclarecidos sobre os efeitos da medicação aplicada. Infelizmente pode verificar-se também que, por vezes, aconselham os pais a porem de parte determinado medicamento. Outros professores aconselham os pais a irem ao médico para que a criança tome qualquer coisa. Só quando o professor está bem informado sobre as possibilidades e os limites do tratamento medicamentoso, consegue colaborar na terapia, designadamente através da apreciação dos efeitos da medicação no comportamento e na capacidade de aprendizagem da criança.
A ideia que existe nalgumas instituições que qualquer medicamento prejudica, não está de acordo com os conhecimentos actuais da fármaco-psicologia. Mas quando põem de parte medicamentos para tratamento de crises epilépticas por razões «superiores», então excedem os limites do razoável no aspecto biológico.
O trabalho das instituições de educação especial não é de modo nenhum fácil, ainda exige, para além de conhecimentos especializa-
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dos e aptidões terapêutico-pedagógicas, uma orientação para o tratamento de doenças crónicas, como no caso de lesões cerebrais infantis, as quais nunca serão eliminadas, isto é, nunca serão curarias.
No tratamento de crianças com lesão cerebral não se devem estabelecer prioridades. Pais, professores, pedagogos, terapeutas e médicos têm as suas tarefas que devem cumprir o melhor possível. Sucessos reais só podem ser alcançados com espírito de colaboração.
26.6 PROBLEMAS DA SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO
26.6.1 A puberdade do deficiente mental
A apresentação deste tema exige, desde logo, uma definição de conceitos. Puberdade será, antes de mais, uma qualidade temporal que deve ser situada entre os 10 e os 16 anos de idade, tendo em conta a situação actual da média da população. Do ponto de vista qualitativo, será necessário entender por esse conceito o desenvolvimento da maturidade sexual, devendo a maturidade dos caracteres sexuais primários e o desenvolvimento dos seus caracteres sexuais secundários ser considerado do ponto de vista externo e, como critério interno, as experiências da excitabilídade sexual e a elaboração das sensações físicas e psíquicas daí resultantes.
Este arco temporal é tão amplo, certamente, porque dentro dele devem caber, tanto condicionalísmos dominantes de um ponto de vista genético, como factores de constituição familiar, de higiene, factores condicionados pela nutrição e muitos outros condicionados pelo meio.
A questão da definição do que deve ser entendido por deficiente psíquico é de resposta mais difícil, exactamente porque, no que respeita à puberdade, apenas de modo limitado são possíveis classificações esquemáticas como, por exemplo, entre pessoa com dificuldades de aprendizagem e deficiente mental, normal, débil ou com atraso profundo ou segundo um determinado limite do QI.
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Se se adoptar como limite um QI de 70, isso não significa que uma criança com um QI de 75 ultrapasse melhor os problemas da puberdade que uma criança com um QI de 60. Se incluirmos no tema puberdade também a capacidade de desenvolvimento de uma relação e de responsabilidade sexual, tal limite do QI é forçosamente problemático.
Em princípio, na questão que acaba de ser enunciada, há que observar que no quadro das formas de debilidade mental de base genética há muito poucos sindromas de lesões cerebrais originadas por perturbações do metabolismo ou pré- peri- ou pós-natais, que permitam reconhecer nítido atraso na maturidade sexual. Em termos gerais, na maioria dos casos de quadros patológicos, a idade sexual corresponde à idade cronológica, devendo entender-se por idade sexual o aspecto externo dos caracteres sexuais primários e secundários, e não necessariamente a capacidade de procriação. Adicionemos aos conceitos de idade sexual e idade cronológica também o conceito de idade mental. Trata-se, aliás, de um termo pouco rigoroso e global, que, no entanto, é de grande ajuda para a compreensão desta problemática.
É claro e compreensível que o problema da puberdade dos deficientes mentais se deva procurar principalmente na discrepância entre idade sexual e idade mental. Que também na puberdade da pessoa normal as faltas de segurança nas sensações físicas e psíquicas se devam a deficiências de cobertura nestas duas dimensões é o que sentimos nós, ditos saudáveis, se nos recordarmos, ainda que com alguma inexactidão, da nossa própria puberdade. Pelo contrário, a criança deficiente mental não pode, por si própria, encontrar uma explicação para os fenómenos que se passam nela e com ela. Ela sente as alterações mas não as consegue interpretar, pelo que elas são sentidas, antes de mais, como «naturais». Ao contrário do não deficiente mental, ao qual a educação, a moral e a necessidade de adaptação ao meio e à sociedade impuseram rapidamente os comportamentos adequados e os tabus correspondentes, a criança mentalmente deficiente não aprende por si só o significado de tais exigências. Ela apenas aprende e vive a proibição de se ocupar da região genital, num processo lento e muitas vezes penoso. O que para a criança não mentalmente deficiente era, até há pouco tempo, um processo mais ou menos doloroso e alegre de auto-aprendizagem, devido a uma
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informação insuficiente e a falta de esclarecimento sexual e de educação, mantém-se para o deficiente mental, muitas vezes, durante toda a vida: um sentimento proibido ou tolerado com todas as acções e reacções resultantes da proibição. O seu nível de informação é mínimo, condicionado pelo défice de inteligência. A informação e a sua elaboração é impossível em muitos casos, de tal modo que é a atitude do meio ambiente que determina quase exclusivamente a forma de comportamento.
Se se considerar que, ao contrário da maturidade sexual da maior parte dos não deficientes mentais, no deficiente mental não se concretiza o objectivo da evolução pubertária pela relação com um parceiro, reconhece-se como é dramática a importância da educação sexual do deficiente mental.
Conjuntamente com H. SPIELHOFER, pudemos de onstrar que o comportamento sexual do jovem deficiente mental está dependente, em grande medida, da atitude pedagógica dos familiares. Quanto maior for a tendência para aplicar castigos em caso de comportamentos desajustados, tanto mais difícil se apresenta a elaboração de,estados de excitação sexual do deficiente mental. Quanto mais reduzidas as sanções, tanto mais normalmente se desenvolverá o comporta
mento sexual (H. SPIELHOFER e A. REU).
É particularmente notável que isto se aplique também à utilização da linguagem: é conhecida a tendência dos deficientes mentais para a utilização de palavras obscenas. Trata-se de um comportamento que a maior parte das vezes é utilizado muito intencionalmente, pretendendo desse modo chocar, provocar ou fazer chantagem com os familiares. Sabemos que os deficientes mentais não compreendem o significado de tais palavras ou termos técnicos, mas sentem, de modo como que instintivo, que este é um tipo de acção que atinge o meio ambiente numa zona da esfera íntima, afectiva e emocional.
Quanto mais violenta for a punição contra tais actos verbais, tanto maior a tendência para a repetição e para atingir o objectivo pretendido. Quanto maior a tolerância, quanto menor a agitação no grupo-alvo, tanto menor o sucesso da experiência, para o deficiente mental, de conseguir provocar «algo» através deste método. O desenvolvimento em termos de tamanho do pénis e testículos, o aparecimento de pêlo púbico é acompanhado pelo rapaz com interesse.
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O mesmo acontece, na rapariga, quanto ao peito e ao pêlo púbico. Brincar com os órgãos genitais, um comportamento habitual já desde a primeira infância, transforma-se agora numa experiência com acentuado prazer.
O conhecimento de que a região genital é mecanicamente excitável conduz a variadas formas de masturbação, encontrando-se a manipulação do aparelho relacionada com o grau de atraso mental. Quanto maior o nível de inteligência, tanto mais cedo há que contar com a utilização da mão como instrumento. Quanto maior o atraso, tanto mais primitivo será o processo e tanto mais frequente a acção com objectos, sobretudo brinquedos, ficando-se, por vezes, pelo roçar dos órgãos genitais pelo chão e móveis. Com o aumento da experiência são utilizadas, não raramente, peças de vestuário do progenitor ou de um irmão de sexo contrário ao seu. Para muitos familiares, a masturbação só é reconhecida como tal decorridos alguns anos; muitas vezes, é erradamente interpretada como «crise convulsiva», sendo o estado subsequente ao orgasmo confundido com um estado de esgotamento pós-convulsivo. É muito importante notar que a tendência para a masturbação resulta de acontecimentos negativos, isto é, segue-se a castigos, a recusas na satisfação de desejos seus, em caso de tédio, de falta de actividade e de distracção, bem como em caso de mal-estar, de irritação, de frustração, de decepção.
26.6.2 Sexualidade e comportamento sexual
De entre os variados problemas dos deficientes, a sexualidade assume um lugar indubitavelmente importante. É portanto estranho que, apesar da abundância de publicações sobre educação sexual, sejam relativamente raras as que tratam da sexualidade dos deficientes. A liberalização da postura da nossa sociedade perante a sexualidade, comparativamente ao que acontecia no passado, mal conseguiu alterar a problemática directa e indirecta, ou seja, pessoal e social da sexualidade dos deficientes.
Enquanto o campo da sexualidade do deficiente físico ainda recebeu alguma atenção, manteve-se pobre a atenção dada ao deficiente mental, tendo em conta uma adequada orientação na prática do dia a dia.
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No que respeita ao domínio dos problemas sexuais do deficiente mental, actualmente há na prática apenas dois extremos: por um lado, total repressão na base de conceitos morais incorrectamente interpretados; por outro lado, acentuada permissividade com motivações ideológicas, cuja realização careceria de um «universo são para deficientes», que, todavia, ainda não existe. É fácil exigir liberdade sexual para todos os deficientes, se não se conhecer a realidade diária e se não se for obrigado a viver com ela. Soluções mais ou menos satisfatórias apenas se conseguem se se conhecerem as realidades psíquicas e físicas, se elas forem projectadas no plano de fundo da situação psicossocial e se forem transpostas para o caso em questão e respectivas condições particulares. Soluções práticas não há - e neste campo dificilmente existirão. Entre os problemas a que é dada pouca atenção e se encontram mal investigados do ponto de vista psicológico, há que incluir o início da primeira menstruação.
Menarca: A menarca é um acontecimento aguardado a maior parte das vezes com tensão angustiante pelas mães de raparigas mentalmente deficientes. Uma vez que uma explicação biológica do fenómeno só é possível de modo muito condicionado, as crianças reagem em princípio com espanto e não poucas vezes com certa aversão. Após a segunda ou terceira repetição, a hemorragia menstrual é aceita quase sempre com naturalidade. A primeira menstruação anuncia-se com semanas de antecedência através de espasmos, facto que deve ser do conhecimento das mães. Por motivo das dores abdominais, muitas vezes definidas de modo apenas impreciso, é justificada a apendicectomia, com o diagnóstico de pseudo-apendicite. Deve ser mencionado, a título de informação, o facto de, na fase pré-menstrual, se poder verificar muitas vezes aumento do sintoma de fundo com uma duração de até uma semana. Não raro surge nesta fase a primeira crise convulsiva ou nova crise após anos sem problemas. Com o início da menstruação, desaparece quase sempre uma certa tensão no comportamento da rapariga, que anteriormente era motivo de aumento de agitação psicomotora. agressividade ou hiperactividade.
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26.6.2.1 Experiências com pessoas com sindroma de Downn
Em trinta anos de trabalho com pessoas com o sindroma de Down, tivemos inúmeras oportunidades de acompanhar, durante longos períodos, o seu desenvolvimento e comportamento sexual. Com o início da puberdade, encontramos no sexo masculino todos os pontos de interesse e comportamentos que se observam também durante a puberdade dos rapazes saudáveis. A diferença está apenas no modo de elaboração, uma vez que o jovem mongolóide está menos em condições de «disfarçar» os seus sentimentos, sensações e excitações: o insuficiente desenvolvimento do chamado «sentido do pudor» está aqui, obviamente, em primeiro plano. A noção de que «isso não se faz», um produto da educação, de castigos, do ajustamento e da razão não existe, dadas as reduzidas possibilidades intelectuais. Frequentemente o mongolóide procura chocar os adultos ou mesmo fazer chantagem com eles. Ele sabe com que gestos ou palavras consegue ferir o seu meio ambiente. O receio que a famíla tem de que o seu filho deficiente se exponha desse modo, pois «em casa não aprendeu ele isso», é grande e compreensível.
É impressionante a capacidade de os deficientes mentais fixarem expressões obscenas, cujo conteúdo e significado mal apreendem. Eles utilizam-nas tão frequentemente, provavelmente porque os diverte a reacção de «espanto» dos adultos e eles, muitas vezes, talvez os queiram provocar. Como já se sublinhou, é desconcertante o facto de os mongolóides, como a maior parte dos deficientes mentais, fixarem «tais» palavras à primeira vez que as ouvem.
O onanismo não é, nos deficientes do sexo masculino, o único método de elaboração da excitação sexual. Observa-se muitas vezes a masturbação com brinquedos; o arrastar-se e o roçar-se pelo chão, por exemplo. Segundo a nossa experiência, as raparigas masturbam-se com menos frequência que os rapazes. Encontramos este tipo de auto-satisfação apenas em atrasos mentais profundos, e, de entre estes, principalmente nos autistas. Esta diferença especificamente sexual deve-se provavelmente ao facto de as raparigas deficientes mentais, em termos gerais, serem mais fáceis de conduzir que os rapazes. Estes aprendem a brincar com os órgãos genitais e experimentam-no muito cedo.
O pico do problema situa-se entre os 12 e os 25 anos de idade.
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A partir daí observa-se com certa frequência um abrandamento da excitabilidade sexual, no quadro de um empobrecimento geral dos impulsos, de certa inércia e frequentemente de isolamento de tipo autista.
Depois dos 30 anos de idade já não se observa, praticamente, excitabilidade sexual. O medo dos pais de que o seu rapaz «faça alguma» não tem fundamento. Durante todos estes anos apenas 6 vezes observámos mongolóides, jovens ou adultos, que se evidenciaram com agressões aparentemente sexuais. Um exame mais atento revelou que, como tantas vezes acontece nos chamados delitos sexuais de deficientes com lesões cerebrais, se tratou em todos esses casos, de evidentes más interpretações, em parte inconscientes, em parte também conscientes, de tentativas de aproximação ou de dar um abraço. Segundo a nossa experiência, não há conhecime o de qualquer caso no qual um mongolóide do sexo masculino tenha efectivamente consumado um coito, e muito menos o tenha forçado recorrendo à violência. Muitas vezes, foi-nos contado por pais de pacientes oriundos de países do sul que o pai levou o filho mongolóide a um bordel, por razões relacionadas com uma noção de masculinidade e sexualidade tipicamente meridional. No entanto foi-nos informado de modo unânime que, sem excepção, apenas houve masturbação passiva, e mesmo esta só raramente levou a orgasmo. Pelo contrário, conhecemos algumas mulheres mongolóides, quer jovens, quer adultas, que muitas vezes foram vítimas de abuso sexual durante anos consecutivos. Na esfera de acção de instituições para deficientes detêm-se, como é sabido, pessoas que não raramente exploram em seu proveito o intelecto diminuído e a falta de capacidade crítica de raparigas mentalmente deficientes. Até agora não registámos, nós próprios, qualquer gravidez em mongolóides do sexo feminino.
F. VOGEL elaborou em 1961 um relatório sobre sete mães mongolóides com oito filhos. Cinco filhos eram também mongolóides, dois dos quais normais e um com atraso mental. VOGEL chama a atenção para o facto de estas crianças nascerem muitas vezes de relações incestuosas ou de os próprios pais serem débeis mentais. Uma mulher mongolóide engravidou de um cego, epiléptico, com 59 anos de idade. Acaso ou não, a criança nascida desta união era, em princípio, aparentemente normal.
D. KLEIN, em 1975, refere que de vinte e dois casos bem docu-
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mentados, nos quais mongolóides deram à luz crianças viáveis, nove delas apresentavam trisoma 21, portanto mongolismo; treze, pelo contrário, eram consideradas normais. Quanto ao futuro destes casos nada se sabe.
Deve pôr-se aqui a questão de como conseguem mães mongolóides criar os seus filhos; é necessário discutir até onde levará o confronto de tal criança com a sua mãe, com o seu intelecto diminuído, a sua linguagem reduzida, o seu comportamento e o seu aspecto. Somos de opinião que, perante semelhante problema e sobrecarga de uma mulher mongolóide - ou mesmo de deficientes mentais de outra etiologia - não se deve aguardar a possível experiência crucial de uma gravidez. Devia ser efectuada atempadamente uma laqueação das trompas, o que é perfeitamente legítimo no âmbito da actual legislação e é válido para todas as formas de deficiência mental grave.
26.6.2.2 Sexualidade em caso de psicosindroma orgânico
O psicosindroma orgânico, que nós pudemos observar frequentemente no quadro da lesão cerebral orgânica, actua também no âmbito sexual. Manifesta-se, segundo G. GOLLNITZ, 1972, em excitabilidade mental, em consequência de um controlo superior defeituoso. Muitos estímulos não podem ser suficientemente seleccionados, e falta a compensação psicológica, calma, harmónica da resposta ao estímulo. Isto tem forçosamente que conduzir a um exagero nos afectos, sendo a relação entre estímulo e reacção mais elementar, desajustada e sem controlo.
Em caso de lesões cerebrais graves, que surgiram muito cedo, é evidente um acentuado empobrecimento afectivo. O impulso psíquico, visto no seu todo, é mais reduzido que aumentado. Em caso de lesões do sistema nervoso central, de grau ligeiro, é mais frequente aumento deste impulso; isto pode conduzir a modos de comportamento eréticos. O processo organocerebral não influencia, portanto, directamente, mas de modo secundário, a região sexual através de aumento da excitabilidade vegetativa.
A masturbação, como meio de reacção a estados de excitação de origem não sexual, pode observar-se com frequência.
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26.6.2.3 Sexualidade de deficientes físicos
Em caso de deficientes físicos, intelectualmente normais, com lesão organocerebral, os problemas apresentam-se de modo completamente diferente do que aconteceu com atrasados mentais.
Dado o seu intelecto normal, estão obviamente em posição de compreender e viver o complexo sexualidade em todas as dimensões físicas e psíquicas. A sua capacidade de articular sentimentos, a sua capacidade para a sublimação de sensações físicas, o reconhecimento das necessidades e dependências, mas também o conhecimento da responsabilidade dentro de uma relação com um parceiro, torna-os inteiramente aptos para o que se designa como amor em sentido metafísico.
O tipo e a extensão da deficiência física influencia, como não podia deixar de ser, a escolha do parceiro e também a realização física das necessidades sexuais. É compreensível que esta última questão possa colocar grandes problemas, sobretudo em caso de paralisias espásticas e perturbações da coordenação motora, uma vez que a excitação sexual afecta também a espastícidade central. É aqui de particular importância a atmosfera psíquica, o comportamento do parceiro, a sua compreensão, a sua adaptação e a sua intuição, que constituem só por si os pressupostos para uma vida sexual realizada. Se ambos os parceiros forem deficientes, as exigências a cada um deles são particularmente grandes e também maiores as dificuldades. Um parceiro fisicamente saudável pode resolver estes problemas, se a sua atitude de princípio for adequada. A frustração sexual de ambos os parceiros surge, se a atitude relativamente ao parceiro não contiver toda a indispensável harmonia.
A deficiência física introduz na dinâmica física e psíquica uma quantidade de factores de risco, que prejudicam a evolução do acontecimento, sendo, antes de mais, caracterizada por maior ansiedade. O risco de uma relação e de um casamento de um deficiente físico, intelectualmente saudável, e uma pessoa inteiramente saudável ou de dois parceiros deficientes físicos deve, por isso, ser também visto tendo em conta a dimensão da frustração que surge em caso de insucesso na relação. Conhecemos, pela nossa experiência, muitas ligações e casamentos exemplares e infelizmente, com frequência, pares que não conseguiram uma coabitação harmónica durante lon-
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gos períodos, também no campo sexual. As explicações de cada uma das partes sobre os motivos desse insucesso sugerem com frequência informação deficiente sobre os problemas físicos e psíquicos. Por essa via são iludidas expectativas e esperanças e, não raramente, surge um quadro misto de agressividade e depressão. Se a deficiência de coordenação for tão acentuada que impossibilite uma relação sexual com o parceiro, e mesmo a masturbação por motivos de ordem motora, pode o processo organocerebral, particularmente o comportamento social do jovem ou do adulto, ser fortemente influenciado de modo duradouro sob a enorme tensão sexual. Há mães que nesta fase se queixam que «não reconhecem o seu filho». Violência na expressão mímica, turbulência motora, insatisfação extrema com problemas do dia a dia e com as pessoas que lhe dão assistência, enormes fantasias, ciúme e outras formas de comportamento perturbado são indícios de estados de tensão físicos e psíquicos inimagináveis. Erecções do pénis, que se mantêm durante horas, são consequências visíveis externamente de tais estados de excitação. Em nosso entender, é evidente que em tais situações é imprescindível uma normalização medicamentosa da tensão emocional.
26.6.2.4 Masturbação
A forma mais frequente de satisfazer a excitação sexual é a masturbação, isto é, eliminar a excitação da respectiva região genital com a mão ou com objectos. É sabido que aqui o acaso, sob a forma de ligação a uma determinada situação ou determinado objecto, representa um importante papel; sabe-se que a masturbação pode estar ligada exclusivamente a um objecto (muitas vezes um animal de peluche, mas também arestas de móveis, sapatos, etc., etc.). Muitas vezes a masturbação também pode suceder com o auxílio de roupa interior e outras peças de vestuário de determinadas pessoas. É necessário dizer aos pais de deficientes mentais que a masturbação, como acontece sobretudo em crianças mais jovens, não deve ser entendida primariamente como reacção à exitação sexual, mas que resulta de uma situação especial, sucedendo-se-lhe, quase sempre de imediato, um estado de apatia. Em situações de mal-estar, de medo, de aborrecimento, após castigos, em caso de não satisfação de pedi-
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dos, de tédio e também de fadiga, a criança refugia-se na masturbação que - e aqui reside o verdadeiro motivo - transitoriamente a liberta do confronto com o meio ambiente. A transposição desta reacção para a região genital não tem qualquer relação com uma hiperfunção sexual, como receiam os familiares. A criança apercebe-se, a maior parte das vezes por acaso, que através de compressão, massagem e fricção na região sexual, consegue obter um efeito agradável. As fraldas, vestuário apertado, eczemas e, como nos foi dado observar, a imobilização das coxas em abducção, necessária para tratamento de luxação da anca, constituem alguns dos factores externos.
Seria inteiramente errado falar de perversão neste caso, e por isso seria conveniente esclarecer sempre os familiares sobre os motivos de tais comportamentos sexuais. Também nos parece muito importante chamar a atenção para uma forma de regressão à sexualidade da infância, particularmente em idade adulta e sobretudo em caso de deficiência mental grave. Este processo tem início quase sempre com uma tendência nítida para a obstipação e para o consequente aumento da atenção para a defecação. Os familiares estimulam o deficiente nesse sentido, exortam-no insistentemente e recompensam-no, como em criança, quando «consegue». A introdução de supositórios ou do clister torna-se uma necessidade cada vez mais forte e uma condição para a defecação; o contacto da região anal com o dedo, a introdução de supositórios ou do irrigador transformam-se em experiência sexual. Nas consultas, verifica-se diariamente que tal evolução é mais frequente do que se pensa e quase nunca é reconhecida como tal pelos familiares, isto é, que é uma forma de excitação e satisfação sexual. É compreensível que, apenas através da informação dos familiares no sentido de uma educação sexual orientada, podem ser evitadas situações extremamente anormais.
26.6.2.5 Higiene do sono e sexualidade
A importância de uma correcta higiene do sono não pode ser ignorada. É de assinalar que, num inquérito aos pais dos nossos pacientes, foi possível verificar que, em 62% (sic!) das famílias por nós inquiridas, a criança com problemas não dorme na sua cama, mas na cama dos pais. Quase sempre com a mãe; em mais de metade
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destas famílias o pai deixou o quarto conjugal. Não raramente a criança deficiente dorme na cama da avó (9%) ou na de um irmão (4%). Não se pretende entrar aqui nos problemas e desenvolvimentos inter-familiares daí resultantes. Há aqui, obviamente, já bastantes dificuldades.
Os motivos para a criança não dormir na sua cama são, em princípio, evidentes. É a chupeta que se perde, o medo de ataques epilépticos, o medo dos choros nocturnos, das queixas dos vizinhos, a preocupação pelo sono da família, a necessidade de virar o paciente, etc., etc. Na maior parte dos casos podemos verificar que, se apenas em situações dramáticas, for permitido à criança não dormir na sua cama, então, de um modo geral, nunca mais será possível tirá-la da cama dos pais e levá-la para a sua cama ou para o seu quarto.
26.6.2.6 Orientação sobre os medicamentos
É necessário abordar também a possibilidade de influenciar o comportamento sexual por via medicamentosa. A questão se, quando e durante quanto tempo deve ser utilizada uma tal terapia constitui uma das questões mais importantes relacionada com o problema sexual do deficiente. Nós somos de opinião, e acreditamos poder justificá-lo com o conhecimento prático, que a maior parte dos deficientes mentais graves nunca estará em condições de ter uma vida sexual normal, física e mentalmente preenchida e estamos de acordo com R. LEMPP (1974), no sentido de que «a sublimação de sentimentos e de desejos físicos e sexuais dentro de uma relação amorosa apenas de modo condicionado pode ser realizada pelo deficiente mental». Uma vez que o fundamento de tal relação é a consciência da responsabilidade entre os parceiros, é muito difícil para o deficiente mental dar forma a uma tal relação.
Os limites estreitos traçados à evolução e ao desaparecimento _ da sexualidade permitem-nos, actualmente pelo menos, aconselhar medidas que mantenham a excitabilidade sexual dentro dos limites aceitáveis. Existem tais possibilidades na base de medicamentação: utilizamos extractos de epífise ou suspensões altamente moleculares
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de epífise. Condição «sine qua none» para uma tal medida é que a terapia não tenha lugar, se se verificarem efeitos colaterais noutras áreas funcionais do organismo. Contudo, até agora, conseguimos com frequência orientar o comportamento sexual de deficientes mentais, de tal modo que a torturante e frequente agitação interna e externa do paciente tem sido eliminada, tornando-se, desse modo, tolerável o seu comportamento social. O mal em numerosas discussões e até disputas sobre a solução do problema é que, devido a uma insuficiente definição dos fundamentos conceptuais, demasiadas vezes, de modo demasiado acrítico, falamos uns com os outros sem nos entendermos.
26.6.3 Deficientes mentais como objecto de abuso sexual
É necessário admitir que os deficientes mentais são por vezes objecto de abuso sexual e, neste capítulo, os números obscuros devem ser elevados. De entre os nossos doentes tivemos conhecimento de uma série de acontecimentos perfeitamente macabros. Vão desde o incesto, que durou anos, de um avô - que à data da descoberta do acontecimento tinha 65 anos -com a sua neta mongolóide, até à masturbação, pela mãe, de uma criança com eretismo. Para o médico assistente, a abordagem da sexualidade e dos seus problemas é, por isso, um tema obrigatório, porque só através do diálogo com os familiares pode ser tomada consciência de desenvolvimentos patológicos.
26.6.4 Interrupção da gravidez e esterilização
A esterilização de jovens ou adultos mentalmente deficientes parece-nos, tendo em conta a situação actual do nosso conhecimento acerca dos problemas clínicos, genéticos e sociais de uma gravidez, como uma medida profiláctica ocasionalmente necessária. Também a interrupção da gravidez, à qual deve seguir-se necessariamente a laqueação das trompas, apenas pode ser entendida como consequência lógica do nosso conhecimento e da nossa consciência.
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Os aspectos jurídicos do problema parecem estar solucionados, pelo menos no que respeita à República Federal da Alemanha e à Áustria. Tais medidas exigem obviamente condições prévias adequadas. Parece absolutamente necessário observá-las, dada a enorme responsabilidade do médico.
É evidente uma crescente preocupação com os problemas de deficientes mentais, com os seus sintomas físicos e psicológicos, a sua posição e integração social, e quanto mais intensivas forem as actividades e quanto mais se procurar desenvolver o deficiente mental segundo as suas aptidões, tanto mais evidente será o facto de que estas pessoas têm também numerosas capacidades, pelo menos para tomar parte em determinados campos da vida da sociedade. O direito de o deficiente mental viver com a familia, o seu direito a medidas pedagógicas especiais, bem como o seu direito ao trabalho, são exigências cujo sentido e justiça hoje ninguém contesta. Contudo, é indubitável que a crescente autonomia e integração na vida do dia-a-dia traz também novos problemas para o deficiente mental, que no anterior isolamento total pouca importância tinham.
Segundo a nossa experiência em décadas de actividade com deficientes mentais, são, antes de mais, os problemas da sexualidade que necessitam de discussão intensiva.
Na abordagem que se segue, não se pretende discutir a reivindicação frequentemente exigida do direito ao desenvolvimento sexual, mas a problemática complicada, e por vezes difícil, da gravidez de deficientes mentais. Quando, como é nossa missão, se assistem deficientes mentais e suas famílias ao longo de anos e anos, surge obrigatoriamente a questão, até que ponto estamos dispostos e disponíveis para utilizar a interrupção da gravidez e a esterilização como medidas clínicas. Quando a sociedade, segundo a situação jurídica actual, deixa ao livre arbítrio de cada um, a decisão sobre a gravidez e a interrupção da gravidez, parece-nos que o deficiente mental tem que ficar entregue, em grande medida, à nossa assistência.
Como é colocada esta questão do nosso ponto de vista?
Antes de mais, devemos observar que praticamos a interrupção da gravidez há mais de 20 anos, em deficientes mentais, ainda que a situação jurídica anteriormente em vigor, apenas de modo muito condicionado se adequasse à execução de tais medidas. Por esse
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motivo a interrupção da gravidez foi, por princípio, sempre combinada com subsequente laqueação das trompas.
Nos pontos que se seguem tenta-se expor os factores essenciais, que estão correlacionados com a questão:
1. Visto de um ponto de vista temporal, aumenta o número dos que desejam desde logo a esterilização; a intervenção da gravidez com subsequente esterilização atingiu manifestamente o pico nos anos transactos.
2. A idade das pacientes na altura da intervenção concentra-se entre os 17 e os 21 anos de idade. O número de deficientes mentais, que engravidaram com menos de 17 anos, é relativamente elevado.
3. Na questão acerca do nível de inteligência deve ser tido em conta que não efectuamos interrupção da gravidez e esterilização com um quociente de inteligência acima de 75. As laqueações de trompas que efectuámos recaíram em pacientes com um QI inferior a 70.
4. Os grupos de casos com interrupção da gravidez e esterilização provêm, na maioria, das camadas sociais mais baixas. A noção de saúde das camadas sociais superiores encontra-se, nesta questão, manifestamente mais desenvolvida.
5. A situação familiar das raparigas, que necessitaram de interrupção da gravidez com subsequente esterilização, revela uma taxa acentuada de deficientes com filiação ilegítima, bem como de deficientes provenientes de lares desfeitos. No grupo de deficientes esterilizadas, primariamente as famílias intactas estão em maioria.
6. Quanto à questão da classificação clínica, que apenas deve ser considerada como referência rudimentar, é assinalável o número de multideficientes (atraso mental profundo e deficiência física) de entre as deficientes que engravidaram. A este respeito deve ser dito que, manifestamente, mesmo uma perturbação física visível não impede o abuso sexual da deficiente. Tem que se admitir como altamente provável que uma criança, nascida com vida de uma gravidez assim
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forçada, não tem grande possibilidade de possuir saúde física e psíquica.
7. É compreensível que as modernas possibilidades de evitar uma gravidez, particularmente a pílula anticoncepcional, não possa ter aplicação na maior parte dos casos, se se tiver em conta a necessidade da sua administração rigorosa. O dispositivo de contracepção intra-uterino não pode ser utilizado na maior parte dos casos.
8. O homem que engravida a deficiente é conhecido em menos de 50% dos casos. Não existem exames psicológicos detalhados à personalidade destes homens. É de salientar que a sua idade se situe entre os 31 e os 50 anos.
9. No grupo das esterilizadas primariamente, é de sublinhar que a proposta para tal intervenção parte mais frequentemente dos familiares que do médico. Isto revela que é grande a preocupação dos familiares quanto a uma sobrecarga adicional.
Anamnese ginecológica das jovens antes da intervenção
Tipo de parto Esterilização subsequenteAborto espontâneo11Aborto provocado11Nado morto1-Nado vivo3-Total62Destino dos nado-vivos
Oligofrenia2Microcefalia e oligofrenia1(falecido aos 2 anos de idade)
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Que critérios para a realização de uma esterilização é agora possível fixar?
1. Obtenção da maturidade sexual e da fertilidade da deficiente;
2. inteligência reduzida abaixo do nível 75 (segundo HAWIK);
3. exposição a contactos sexuais, que possam conduzir a uma gravidez;
4. consentimento do representante legal para a realização da interrupção da gravidez ou da esterilização;
5. apresentação de um atestado médico e de atestado de um psicólogo sobre o estado físico e psíquico da deficiente;
6. finalmente o médico assistente deve ter à sua disposição um relatório sobre a actual situação ginecológica da deficiente e sobre a possibilidade de realização da intervenção;
7. deve estar garantida a vigilância do desenvolvimento físico, psíquico e social após a intervenção. Os aspectos jurídicos da questão da interrupção da gravidez não têm, hoje, praticamente dificuldade na República Federal da Áustria. A lei permite a intervenção, desde que haja autorização do representante legal da pessoa em questão ou do tribunal de tutela.
O nível de inteligência das nossas pacientes revela que só um pequeno número podia entender uma informação relativamente à indicação para a intervenção.
26.6.5 Informação sexual
A informação de deficientes mentais sobre a sexualidade e, portanto, a informação sobre a gravidez e contracepção é possível em casos de atraso de grau ligeiro e mesmo assim só em situações particulares. A objecção ouvida com frequência de que raparigas deficientes, mesmo as que têm o sindroma de Down, podem dar à luz crianças perfeitamente saudáveis, que depois podiam ser educadas pelos avós, por pais adoptivos, ou em instituições, deve ser considerada
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como muito problemática do ponto de vista da genética humana. Sem entrar em especial no significado do genotipo e sua relação em função do meio, tal experiência parece-nos injustificável por muitos motivos.
Que personalidade tem um homem que engravida uma rapariga, deficiente mental, em grau médio a elevado? Como é que a criança, mais tarde adulto, se for mentalmente normal, vê a sua mãe, o seu pai? Que oportunidades tem tal criança na sua vida? Que qualidade de vida? Quem aprova tal experiência, provavelmente, nunca esteve em posição de ter que responder a estas perguntas.
Para nós que há tantos anos nos preocupamos com a melhoria da qualidade de vida dos deficientes é incompreensível que não se reconheça, no nosso tempo, a indicação eugénica de uma interrupção da gravidez ou de uma esterilização. Uma citação de uma opinião do «Lebenshilfe fuer geistig Behinderte», da RDA, do ano de 1974, descreve o problema de modo claro e preciso: «uma gravidez e o nascimento de uma criança trazem ao deficiente mental, aos pais e assistentes graves problemas e de difícil solução. A possibilidade de uma gravidez imediatamente após atingir a maturidade sexual, é maior para a deficiente mental do que para uma rapariga não deficiente - pois aquela não conhece os problemas ou não está em condições de actuar de acordo com o seu conhecimento. Devido à sua inexperiência, é consideravelmente maior o perigo de abuso, por outras pessoas».
A interrupção da gravidez ou a esterilização são, por isso, medidas clínicas, cujo significado no âmbito da ajuda e prevenção eficazes não pode ser ignorado, com vista à melhor assistência das raparigas deficientes mentais.
26.6.6 O direito do deficiente mental à sexualidade e ao casamento
Quando hoje se reivindica, para o deficiente mental, o direito à sexualidade, ao casamento ou às chamadas relações maritais, é necessário, obviamente, definir com maior detalhe e exactidão o círculo de pessoas em questão. Sabemos que, sem dúvida, há defi-
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cientes que podem viver numa tal relação, podendo manter-se nessa situação durante anos. Isto é perfeitamente possível em pessoas suficientemente dotadas do ponto de vista intelectual e pode ser também possível no quadro de debilidade limite, mas, certamente, apenas de modo muito raro no quadro de uma debilidade. Nós somos de opinião que o limite é estabelecido pelo grau de atraso intelectual e, com ele, pela dependência social do parceiro ou de ambos os parceiros em relação à sociedade. O chamado casamento «protegido», do qual sabemos que de modo algum exige ou necessita da sexualidade genital como elemento importante, permite a vida em comum de deficientes em grau reduzido. A sua capacidade funcional e, com ela, também a sua duração, depende de inúmeros factores individuais que possibilitem uma interacção suportável, embora, na maior parte dos casos, sob enormes tensões e sobrecargas. O argumento de que isso também se passa com casamentos de parceiros saudáveis é só em parte legítimo. O risco de insucesso é substancialmente maior num casamento «protegido». Pensamos também que tem que existir um mínimo de desenvolvimento da personalidade, da responsabilidade, da capacidade de adaptação. Deste modo, fica praticamente fechado para tais experiências o grupo de graves deficientes mentais. Se se tiver em conta que, com o grau de dependência num tal casamento «protegido» ou numa comunidade marital, é necessário colocar também a questão sobre a pessoa de quem depende essa relação, o risco aumenta mais ainda, nomeadamente os riscos que o assistente representa com a sua própria personalidade. É evidente que aqui é necessário ter também em conta a duração do relacionamento entre o assistente e o par que vive numa relação marital protegida. O desejo de filhos deve ser abordado com o maior cuidado e discrição, mesmo em casais ou comunidades maritais suficientemente dotados do ponto de vista intelectual. Sabemos que, com o desejo de ter filhos, os deficientes mentais querem copiar, de modo compreensível, o casamento das pessoas saudáveis, pois o desejo de ter filhos seus preenche a necessidade de afecto. É compreensível a preocupação pelo próprio filho pequeno, que, como deficiente, o próprio quer e deve ele mesmo tratar, cuidar. Contudo o problema adquire maior acuidade, se, nestas condições, a criança tiver ela própria também lesões, ou, o que também pode ser possível, se, a criança que nasceu saudável, no decurso da sua evo-
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lução se escapar dos país, no real sentido da expressão, tanto física como psiquicamente.
Quem, no trabalho com deficientes, tenha visto a enorme sobrecarga, impregnada de acentos dramáticos, que tais famílias sofrem, sabe como a vida é difícil para todos. Mesmo em casos aparentemente solúveis - por exemplo, filho saudável e um dos progenitores surdo-mudo ou, apenas com acentuada gaguez, ou ainda mãe ou pai epiléptico, cujos filhos presenciem as crises ou os psicosindromas orgânicos - a sobrecarga dos filhos é extremamente grande. Como em muitas áreas do trabalho com deficientes, as questões não devem ter uma resposta geral, mas devem ser resolvidas individualmente. Defender o direito geral à sexualidade é tão insensato e perigoso como manter um mundo de tabus, vergonha, esterilização e punições. Devemos, em cada caso, desenvolveras estratégias necessárias para cada indivíduo e para o possível parceiro. As afirmações que hoje se ouvem em favor de uma sexualidade livre, devem, se, como habitualmente, partirem de gente inexperiente, ser examinadas, tendo em conta também os motivos de quem reclama. Não é por acaso que, aqueles que lutam pelo direito de os deficientes mentais terem filhos, exigem simultaneamente esse direito para si próprios. Neste quadro devemos discutir não só os momentos humanos, sociais, biológicos e psicológicos, mas deve também ser alertado para o aspecto jurídico do problema, aspecto igualmente extremamente difícil.
Seria inteiramente errado admitir que a educação sexual só se deve iniciar na juventude ou até na idade adulta. Pelo contrário, a informação aos familiares deve começar muito cedo, isto é, sendo o deficiente ainda lactente ou uma criança pequena e deve manter-se praticamente ao longo de toda a vida. Educação sexual significa, por isso, antes de mais, esclarecimento da família e do meio. Actualmente, neste campo, experimenta-se muita coisa e as mais diversas vias. Nós pensamos que faz parte das mais importantes tarefas do médico abordar cedo esta temática especial e, mais tarde, de modo regular, com os familiares e o educador.
Um estudo, que H. SPIELHOFER realizou no âmbito do nosso trabalho, revela em que medida a atitude do educador relativamente à sexualidade em si mesma e relativamente à sexualidade dos que assiste influencia o comportamento sexual de jovens deficientes
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mentais. Verifica-se que as variáveis da capacidade de aprendizagem, como por exemplo a inteligência, contribuem relativamente pouco para o esclarecimento dos desvios no comportamento sexual. Pelo contrário, foi possível confirmar estatisticamente que os comportamentos sexuais, com desvios, de jovens com tesão cerebral, são atribuíveis, em parte significativa, à atitude das mães sobre as normas de comportamento no âmbito sexual ou às sanções aplicadas para imposição dessas normas. As mães cujos filhos jovens têm uma atitude mais natural, no que respeita ao comportamento sexual, têm tendência a tolerar certas actividades sexuais como a masturbação. Comparativamente, as mães de «jovens que se evidenciam» tendem a ser repressivas. É também assinalável, neste grupo «difícil», a grande discrepância entre as exigências aos jovens, no que respeita, por um lado, ao domínio e controlo das suas necessidades sexuais e, por outro, o limitado - ou inexistente - auxílio pedagógico que lhes é concedido nesse domínio.
Relativamente à aplicação prática destes resultados pode con- __ cluir-se que, para solução dos problemas sexuais deve, em p lmeira linha, procurar-se influenciar os pais e todas as pessoas que se ocupam com a assistência a jovens com lesão cerebral ou deficientes mentais, no sentido de não os impelirem para formas de comportamento anómalas, através da insistência em normas de comportamento tradicionais, em parte duvidosas, rigorosos tabus e punições por cada manifestação sexual. É necessário, pelo contrário, criar condições de aprendizagem através da aceitação de certas formas de actividades sexuais socialmente toleráveis e do correspondente esclarecimento, incluindo orientações concretas sobre comportamento, por forma a possibilitar uma socialização da sexualidade.
26.6.7 Investigação científica
Na investigação científica da sexualidade dos deficientes mentais, encontramo-nos, indubitavelmente, apenas no início. É necessário analisar uma grande quantidade de detalhes para se conseguirem estratégias educativas que, a partir de um estádio de desenvolvimento ainda precoce, e ao longo de toda a vida, tornem «tolerável» ao
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deficiente mental a sua sexualidade. Por isso, somos de opinião que devem ser analisados os seguintes campos:
1. Fisiologia e patologia do desenvolvimento sexual em todos os níveis etários;
2. capacidade sexual e sua dependência de deficiências hormonais, físicas e neurológicas;
3. possibilidades e limites da capacidade reprodutora, seus riscos e consequências do ponto de vista humano-genético;
4. capacidade ou incapacidade para a criação e educação de eventuais descendentes;
5. possibilidades e limites ou consequências da utilização de contraceptivos, indicações para esterilização e interrupção da gravidez;
6. condicionamento medicamentoso da sexualidade;
7. comportamento sexual e sua dependência da inteligência. Impulsividade e estrutura da personalidade;
8. influência da educação, do meio e da situação social sobre o comportamento sexual;
9. critérios físicos, psicológicos e sociais na escolha de parceiro;
10. capacidade de ganho, domínio da rotina diária social, profissional, financeira e legal; imputabilidade jurídica;
11. desenvolvimento dos filhos de pais deficientes mentais.
26.7 PROFISSÃO, TRABALHO, OCUPAÇÃO
Há já vinte e cinco anos, começou a ser claramente reconhecido que com o envelhecimento das crianças com lesão cerebral, com a sua evolução para a idade juvenil e adulta, se mantinha a necessidade da assistência pedagógica e escolar. Sabemos que, o que se chama capacidade mental, atinge um certo esgotamento entre os 4 e os 14 anos de idade e que depois dos 14 anos de idade já não se verificam
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progressos decisivos na leitura, na escrita ou no cálculo. Inicia-se então, na vida da criança com lesão cerebral, o período em que a actividade física é cada vez mais necessária, a fim de manter, dentro de limites aceitáveis, a possível evolução deficiente da personalidade. As dificuldades da puberdade tornam esta necessidade ainda mais premente.
Tentativas no sentido de colocar jovens com lesão cerebral no mercado de trabalho em competição livre, ou em instituições públicas, falham não só devido a falta de disponibilidade para emprego de deficientes, mas também para os remunerar conforme o contrato colectivo, e ainda, com frequência, igualmente, devido à incompreensão do meio ambiente. Há quem faça troça dos jovens, os leve ao consumo de álcool para depois os ridicularizar; com frequência, as pessoas ficam impacientes com a reduzida capacidade de ,produção do jovem deficiente no início, quando, naturalmente, necessita.-de' maior períodofde aprendizagem de um processo laboral. Reconhecemos rapidamente que por esta via não se conseguia uma solução genérica, e que apenas em casos individuais, em situações particularmente favoráveis do ponto de vista empresarial e humano, havia condições de integração.
Assim, concluiu-se simplesmente pela necessidade de criar grupos de trabalho de jovens com lesão cerebral, dentro dos quais são ensinados e conduzidos por um mestre orientado nos aspectos da pedagogia terapêutica.
As oficinas protegidas, hoje um conceito assente, nasceram, assim, do reconhecimento de que é necessário continuar a acompanhar os jovens deficientes após saírem da escola, devendo, porém, ser-lhes oferecido um meio laboral protegido. Muitos anos de experiência mostraram que esta não é a solução ideal, mas é praticável. As condições para uma ocupação positiva e produtiva são, de resto, muito variadas. É necessário, desde logo, uma pessoa com experiência no campo da pedagogia terapêutica, com habilidade para realizar e ensinar uma tarefa, de maneira que seja tão facilmente compreensível quanto possível. É necessária certa aptidão para ocupar e estimular jovens com lesão cerebral, de modo que o trabalho produzido lhes proporcione a necessária sensação de êxito e que dentro do grupo reine um ambiente equilibrado. As conclusões da investigação sobre comportamentos de K. LORENZ sobre formação de grupos e organiza-
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ção hierárquica (Hackordnung und Revierkaenhpfe - Lei do mais forte e lutas de bairro), são inteiramente aplicáveis a estas instituições. Qualquer pessoa experiente sabe até que ponto é difícil organizar o grupo certo.
A nossa suposição inicial de que os jovens com lesão cerebral apenas podiam executar funções simples, estereotipadas, não se confirmou, felizmente. Pelo contrário, sabemos hoje que a mudança dentro de processos laborais diversificados é possível e até necessária. Produtividade, precisão e quantidade atingem, não raras vezes, as de pessoas saudáveis, sendo espantoso o nível de complexidade que pode atingir o trabalho de jovens com lesão cerebral.
O tipo de trabalho é determinado pela oferta da empresa fornecedora, sendo atribuição do director encontrar encomendas. Em período de conjuntura favorável isso não é fácil, mas é possível. Mas, como pudemos verificar nos últimos anos, em períodos de recessão económica os problemas modificam-se. Esta modificação, contudo, não teve lugar como nós inicialmente havíamos previsto, nomeadamente através da diminuição da oferta de trabalho, o que acontece sobretudo por ordem de estabelecimentos industriais. Pelo contrário, verificaram-se alterações na oferta de lugares no mercado de trabalho, sobretudo a jovens com deficiência ligeira (nos quais está incluída uma grande percentagem de jovens saídos do ensino especial geral), o que implicou que ficasse enormemente dificultada a colocação de deficientes mais graves num lugar de aprendizagem, de formação ou como trabalhador auxiliar. Há hoje muitos jovens com deficiências mais ligeiras que são acolhidos em empresas de trabalho protegido quase com acanhamento.
Na década transacta cristalizaram-se as seguintes variações nas possibilidades de trabalho:
1. Posto de trabalho protegido: este é, em regra, disponibilizado por uma empresa pública ou privada; o empregador tem direito, durante determinado período, a receber, de recursos da Administração do Trabalho, metade do salário e das contribuições para a Segurança Social. O que é lamentável é o facto de ser feito tão pouco uso desta possibilidade, o que se deve a motivos de natureza psicológica, material, social e jurídico-social.
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2. Oficinas de trabalho protegido: o deficiente deve apresentar pelo menos 50% da produção normal. A remuneração é efectuada segundo as tarifas mínimas do mercado do trabalho. As oficinas de trabalho protegido são amplamente subvencionadas pelo Estado. A Administração Social nosso país está a procurar construir em base mais alargada um tal sistema, indispensável para todo o território federal.
3. Terapia ocupacional: oferecida por organizações como 'por exemplo «Jugend am Werk» (Juventude no trabalho) e «Lebenshilfe» (Ajuda na vida), funciona essencialmente com meios públicos. Aqui encontram assistência jovens e adultos que, devido à extensão da sua deficiência, não têm possibilidade de integração no mercado do trabalho nem numa oficina. Não há pagamento de remuneração, mas apenas de-uma importância para pequenas despesas.
Todos os sistemas aqui descritos devem possuir certa flexibilidade em sentido ascendente ou descendente, isto é, possibilidades de transição. Essas instituições de terapia ocupacional não podem, obviamente, manter-se com o produto do seu trabalho. São indispensáveis subvenções dos poderes públicos. Enquanto a produção e a produtividade nestas empresas aumentam de ano para ano, e o sistema se afirma para muitos como a melhor forma de assistência possível, é cada vez maior a necessidade de tais locais de trabalho com possibilidades de alojamento. Cresce continuamente o número de jovens e adultos com lesão cerebral que não podem ser tratados ou não podem ser tratados convenientemente no seio da família. Com o deficiente, também os familiares envelhecem e os problemas aumentam progressivamente. Muitos deixam de poder ir ao trabalho, ficando em casa sem assistência, desocupados, ou são internados em estabelecimentos de assistência devido às crescentes dificuldades comportamentais. É anulado, desse modo, um trabalho de pedagogia terapêutica de décadas, sendo impossível deter a queda no isolamento, na apatia, na falta de interesse e, não raramente, um atraso intelectual quase irreparável. O aumento de alojamentos conjugado com centros de actividades ocupacionais são uma exigência social urgente.
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Não é fácil conduzir uma instituição desse tipo, de tal modo que sejam evitadas dificuldades graves e obtido suficiente êxito no trabalho. Contudo, nessas oficinas conseguem-se prestações admiráveis e podem observar-se acentuadas repercussões no desenvolvimento físico e psíquico dos pacientes, devido à experiência do êxito no trabalho. Não deve ser ignorado que aqui se encontra uma verdadeira alternativa aos estabelecimentos de assistência até agora usuais, a qual se traduz em decisivas vantagens psicológicas e sociais, e que tem, em última análise, efeitos financeiramente favoráveis para a sociedade.
Sobre o futuro social de jovens fracamente dotados, ou com atraso mental moderado, que saem do ensino especial geral para a chamada vida profissional, há que acrescentar ainda algumas observações: não se deve ignorar que o moderno mercado do trabalho coloca grandes exigências. É muito difícil, se não mesmo impossível, colocar, em postos de aprendiz, esses jovens saídos da escola. Eles encontram trabalho, essencialmente, como auxiliares: a mudança do lugar de trabalho é particularmente frequente e fases de desemprego a triste regra. É perfeitamente compreensível que, por motivo desta situação preocupante, as consequências se traduzam, forçosamente, em problemas de comportamento e desintegração social.
Não se pode ignorar que, com este grupo de jovens social, pedagógica e profissionalmente frustrados, se esteja a criar uma situação crítica para a moderna sociedade industrial. Não se deve ocultar que nos chamados Estados Socialistas do bloco oriental este problema quase não existe. Isto tem naturalmente muitas razões. Mas nós queremos e devemos chegar a uma solução satisfatória para o problema, com novas ideias e novos caminhos, também nos Estados industrializados do ocidente. Se não conseguirmos, estaremos um dia perante o descalabro do nosso sistema social e pedagógico.
26.8 O LAR E A ALDEIA PARA DEFICIENTES
COMO FORMA DE VIDA PARA DEFICIENTES
O lar é conhecido na nossa sociedade, há mais de cem anos, como unia forma de vida da criança. Esta instituição limitava-se em princípio a um determinado grupo desprotegido da população, os
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órfãos. Cada vez mais - e a evolução continua ainda hoje nesse sentido - vêm sendo abrangidos outros grupos marginais: cegos, surdos, crianças difíceis, pobres, abandonados, deficientes físicos, portanto, todos aqueles a quem, na vida normal da sociedade, foi ou é negada uma existência integrada. Mas também surgem, cada vez mais, como potenciais candidatos a internamento em lares, grupos de minoria em desvantagem, cuja promoção pedagógica é necessário tenha lugar em condições particulares, não sendo possível efectuar tal promoção no local onde residem, isto é, dentro da família. Em consequência, o lar tem, antes de mais, uma função pedagógica, sendo importante como substituição da família, particularmente no período de formação escolar e profissional; perdeu, portanto;-quas inteiramente, a função de único substitútò da família. Contudo, é necessário exigir que o lar corresponda amplamente à família, na sua organização, na composição do grupo, no trabalho pessoal e humano do educador com as crianças, indo nesse sentido todos os esforços das últimas décadas com vista à humanização destas instituições. Para a criança deficiente, o lar representa, em condições muito especiais, uma forma de vida possível, muitas vezes a única, nomeadamente:
no caso de a assistência e a educação adequadas à sua deficiência apenas serem possíveis num lar, por razões médicas ou pedagógicas:
no caso de já não existir família, de esta não estar disposta ou não ser capaz de assistir a criança deficiente.
São, portanto, duas as situações base que podem conduzir à entrega, ao acolhimento ou ao internamento num lar.
Com o internamento num lar é desencadeada uma série de acções e reacções. Semelhante a reacções em cadeia, tem início uma parte da vida, com uma duração maior ou menor, cuja configuração e desenvolvimento dependem de uma quantidade de factores ponderáveis e imponderáveis.
O argumento de que tais factores influenciam também a vida familiar tem razão de ser, mas apenas em parte; contudo o número dos factores que aqui actuam é infinitamente maior e mais extensa a sua amplitude e casualidade. Deste modo, o lar transforma-se quase
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num terreno permanentemente oscilante, estando tal oscilação sujeita a risco constante.
Anteriormente, sob leis de família frequentemente rigorosas, sujeito a uma ordem rígida, frequentemente obstinada, não permitindo qualquer margem de liberdade individual, independentemente do modo como se apresentasse, quer no desenvolvimento dos internatos, quer nos métodos de cada educador, o lar, como instituição, conheceu nos últimos anos uma mudança em parte liberal. A sua humanização fez seguramente progressos. A criança, os seus desejos, as suas necessidades foram descobertos, e com eles também a possibilidade de desenvolvimento da sua personalidade. Com a queda, pelo menos simbólica, dos muros da cerca, cairam também os muros contra a promoção individual de cada um.
Enquanto, em primeiro lugar, os cegos, alguns anos depois os surdos, obtiveram lares específicos para a sua deficiência, e a escrita Braille bem como a língua gestual se tornaram fundamentais na pedagogia do deficiente, hoje já não conhecemos «cegos» ou «surdos» como os de tempos anteriores. Desapareceram consideravelmente sob a influência de uma medicina moderna, as deficiências específicas «cego» ou «surdo-mudo»; a mudança na origem das perturbações visuais, auditivas e da fala revelou outras formas patológicas, até então parcialmente desconhecidas e, por consequência, outras exigências pedagógicas. A verdadeira perturbação visual ou auditiva, como consequência de uma lesão no sistema nervoso central, surgiu nitidamente em primeiro plano. O deficiente físico foi descoberto, a criança deficiente mental já não é um ser imbecil, sem esperança, mas tornou-se numa criança com um rendimento deficiente, cuja alma e cujas reacções foram reconhecidas e com a qual se podia aprender que tem uma alma, faculdades afectivas e mais sensibilidade do que se quis admitir durante muito tempo. Estes conhecimentos são hoje uma evidência, no entanto, será que a instituição «Lar» promoveu também aquelas adaptações que resultam obrigatoriamente destes conhecimentos? Será que todos os lares para deficientes existentes no nosso país se encontram, na sua concepção social, pedagógica, específica para deficientes, de tal modo executados e aperfeiçoados, que são já realizáveis todas aquelas exigências que hoje têm que ser feitas tendo em conta o moderno conhecimento pedagógico e psicológico sobre lares? Nós somos de opinião que, sem
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dúvida, muito aconteceu, certamente, e a Áustria pode referir com orgulho uma série de lares exemplares. Mas podemos dar-nos por satisfeitos com isso? Não seria, de facto, imprescindível que não houvesse qualquer ponto fraco neste sistema? Não é hoje, ainda, a qualidade humana e pedagógica, a personalidade, o conhecimento especializado, a energia, a capacidade de imposição e de condução, a intuição de cada director de lar o fundamento para a qualidade de um lar? Estes critérios de qualidade não são igualmente válidos para cada educador? Estas capacidades são condições prévias indispensáveis ou tudo é deixado aos numerosos imponderáveis do sistema de preenchimento de vagas?
Uma outra questão importante se impõe ainda - é necessário estender ainda mais o arco: as modalidades e os procedimentos administrativos, com vista ao internamento num lar, são em toda a parte e sempre conduzidos por aquela postura humana que o contacto com o deficiente e respectivos familiares exige? Está assegurada, psicologicamente, a fase de transição do internamento e a adaptação? O pessoal dos lares tem a qualificação adequada, sendo certo que isto não significa apenas a formação pedagógica e psicológica especializada? Que se passa com a supervisão dos educadores e do director do lar? Onde têm os pedagogos a possibilidade de expor os seus próprios problemas e os das crianças a que dão assistência, de se controlarem a si próprios? É reconhecido e conhecido o perigo de que cada empregado num lar está sujeito em menor ou maior grau à rotina? A falta de lugares nos lares, as listas de espera não são muitas vezes, simultaneamente, uma cortina que, com frequência, é de bom grado descida sobre os problemas do lar e das suas estruturas internas, onde, na garantia do reconhecimento de quão uma criança necessita de um lugar, se afunda a necessidade de controlo e de correcção do próprio sistema? Sabemos que muitas vezes até a localização de muitos lares levanta problemas; que o desejo de viver numa região bonita impede a proximidade, de interesse vital, das cidades. É sabido que, historicamente, isto é, já desde a instalação dos primeiros lares, aqui residem os motivos para um isolamento perfeitamente absurdo em regiões pouco habitadas. Conhecemos demasiadamente bem os problemas do Ghetto no estabelecimento de lares para deficientes, mas também, como consequência necessária, as tentativas desesperadas para destruir esse Ghetto.
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Finalmente, para nós é hoje mais claro que nunca que - talvez mais que a admissão e o acolhimento - é a saída do lar, este «passo para a vida» tantas vezes citado, que traz problemas, preocupações e dificuldades de toda a espécie para a criança, o jovem, seus familiares e assistentes!
Reflicta-se nas mudanças físicas, psíquicas e mentais sofridas pela criança deficiente durante o período escolar, que muitas vezes coincide com o período de acolhimento no lar, que esta criança, ao sair do lar, atingiu já a idade juvenil ou adulta. Como vai este jovem ser recebido em casa? A família está disposta e apta, isto é, tem forças suficientes para o tratar no seu regresso? Em que medida o lar é sinónimo de protecção perante um mundo nem sempre cordial para deficientes?
Finalmente há que referir, como problema da maior actualidade, que o lar com jardim infantil, escola, e eventualmente estabelecimento para formação profissional, funcionou para a criança, durante anos, de modo satisfatório; que aqui passou um período rigorosamente dividido, durante o qual viveu e experimentou uma formação profissional. O «E agora?» é, na actualidade, com a problemática do mercado de trabalho para deficientes não solucionada nem de modo aproximado, e com o crescente aumento do desemprego - não só para deficientes - uma questão palpitante e em aberto. Se hoje se encontra garantida, na Áustria, a existência material do deficiente através de legislação, moderna e progressista, para deficientes, continua em aberto uma questão seguramente tão importante como essa: a sua vida psíquica, a formação profissional e o exercício de actividade, a integração social e profissional estão asseguradas? Não existe actualmente o enorme perigo de, após os lares infantis, termos de subir um novo degrau, o seguinte, nomeadamente procurar, construir, habitar, estabelecer, ou ocupar lares para deficientes adultos?
A euforia da integração pode ser moderna; ela é, como exercício obrigatório de políticos e peritos sobre deficientes, indubitavelmente, também, eficaz em termos de publicidade. Contudo, essa euforia está deslocada se se conhecer a realidade e as consequências que resultam desta realidade. Sem optimismo, é impossível trabalhar com deficientes. Sem realismo, começar este trabalho é tolice ou hipocrisia.
Como instituição de assistência ao deficiente, o lar é um elemento importante. Contudo, o lugar do deficiente é, antes de mais,
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na sua família. Portanto o lar apenas pode ser um substituto. Como tal, é em muitos casos necessário e por consequência a sua existência é sem dúvida importante. Porém, o lar não deve simular apenas uma vida pseudo-familiar, mas ter continuamente a preocupação de, segundo as suas necessidades e leis próprias, dar ao deficiente a melhor forma de vida, tendo em conta a sua deficiência, na qual seja possível o seu desenvolvimento físico e psíquico, dentro dos limites estabelecidos pela deficiência. Para que esta forma de vida não seeja apenas um «bla-bla» pedagógico-terapêutico, necessitamos de pedagogos terapeutas empenhados e com formação, que sejam simultaneamente pragmáticos e idealistas. Esta combinação existiu e existe, por muito contraditória que ela possa parecer à primeira vista.
O lar como instituição transformou-se nos últimos anos. Ao nível da organização, construção, ocupação de pessoal e orientação pedagógica, há a preocupação de proporcionar uma assistência familiar às crianças. A camarata, outrora símbolo de assistência em massa de crianças mais ou menos marginalizadas, é por toda a parte «passé». Nas últimas décadas evidenciou-se, de entre os modernos esforços pedagógicos e pedagógico-terapêuticos, a aldeia com casas individuais, a «mãe», a «tia», ou os «pais» como assistentes de crianças e jovens. À questão sobre qual a «melhor» instituição - a aldeia organizada familiarmente ou o lar - apenas pode ser dada resposta, tendo em conta as qualidades pedagógico-terapêuticas e humanas do assistente.
Vê-se pela observação do deficiente se ele vive em ambiente conduzido desse modo. Não se trata necessariamente de um edifício arquitectonicamente moderno com piscina coberta com mosaicos, sala de teatro, quartos com duas camas e sala de televisão; trata-se da casa, do lar, cuja atmosfera permite perceber até ao visitante que a palavra «Heim» (lar) deriva de «da-heim» (em casa).
26.9 O ESTABELECIMENTO DE ENSINO ESPECIAL COM INTERNATO
A integração de uma criança com lesão cerebral num estabelecimento de ensino especial com internato é um problema simultancamente psicológico, médico, social e financeiro. Por estabelecimento
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de ensino especial com internato entendemos as instituições que se ocupam exclusivamente com a assistência a crianças com lesão cerebral e que apenas podem prestar tratamento activo ou assistência pedagógico-terapêutica em pequena escala. É claro que necessitamos de tais instituições. Contudo a questão do quando, como e onde deve ser colocada em cada caso de modo individual. A entrega de uma criança num estabelecimento de ensino especial é uma decisão significativa, que apenas devia ser tomada após cuidadosa ponderação, em condições muito especiais:
se até então não se verificou um desenvolvimento físico e mental positivo, não sendo também de o esperar, dada a extensão da lesão, uma vez que falharam todos os métodos de tratamento utilizados;
se a mãe da criança ou a família já não estiverem em condições de manter e tratar a criança no meio doméstico;
se a criança significar perigo para o seu meio ambiente e para si própria, devido a agressividade, hiperactividade e autodestruição.
Os pais ouvem com frequência, por vezes imediatamente após o nascimento do filho deficiente, que o melhor seria interná-lo imediatamente num lar, uma vez que, por um lado, de qualquer modo não será possível um desenvolvimento «normal» e por outro lado, através da imediata separação, não existiria qualquer contacto íntimo com a criança.
É muito difícil corrigir mais tarde estas opiniões erradas, deste modo gravadas nos pais. A procura desesperada de um possível lugar para assistência ao seu filho recém-nascido, com lesão cerebral, raras vezes tem sucesso, uma vez que o número de instituições aceitáveis é reduzido. O fundamento para não permitir contacto entre os pais e o filho é, de resto, do ponto de vista psicológico, um absurdo, pelo menos tratando-se de uma mãe que, pela sua natureza, se pode designar como mãe. Muitas vezes provém do pai o impulso de entregar a criança, acreditando não poder suportar a infelicidade e a sua constante contemplação, mas provém com mais frequência de familiares ou de bons amigos, que pressionam a entrega da criança alegando fazê-lo «por amizade à mãe».
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Também com o decurso dos anos da criança com lesão cerebral vem do exterior, com frequência, o impulso para entrega da criança a uma instituição. Pode também dar-se o caso de o conselho para a entrega ter de partir do médico, não conseguindo os pais decidir-se a fazê-lo, uma vez que muitas mães não conseguem sequer imaginar,-uma separação do filho.
Um fenómeno que podemos observar é a alteração da posição dos familiares em relação à entrega num lar, caso esta tenha lugar uma vez, talvez limitada então a um curto período de tempo. Pessoas que, com empenhamento heróico, cuidaram de uma criança durante anos ininterruptamente, vivem, pela primeira vez, um período sem a sobrecarga sufocante da assistência diária. O regresso da criança a casa é em primeiro lugar um acontecimento desejado, que, no entanto, em breve vai tornar mais nítido o peso dos problemas. Muitas vezes é também decisiva a atitude dos irmãos, cuja vida com a, criança «difícil» está exposta a grandes perturbações, achando insuportável a sobrecarga da família e o isolamento social, o que tem consequências sobretudo nas férias e na sua programação, mas também, naturalmente, no dia a dia. Por isso é compreensível se agora, após ter experimentado o «ambiente calmo», surgir o desejo de voltar a deixar a criança no estabelecimento, na próxima oportunidade. É como se fosse uma mochila pesada: quanto mais vezes ela for tirada para descansar, tanto mais se sente o seu peso quando é necessário voltar a pô-la ao ombro - quanto mais vezes, mais pesada. O nível assistencial e médico nos lares é diverso. Depende, como todas as actividades relacionadas com a criança deficiente, da personalidade do assistente. Pode continuamente ser confirmado que não depende tanto do estado do edifício e da novidade do estabelecimento, como do espírito do pessoal e em que medida o serviço de assistência prestado é bom, suficiente ou mau.
As visitas à pessoa assistida sobrecarregam enormemente os familiares, do ponto de vista psicológico. Conhecemos, por um lado, pais para os quais a visita regular é um dever óbvio; por outro lado há aqueles que, sob a alegação de terem «tanta pena dos filhos», espaçam continuamente as visitas e finalmente as suspendem completamente. A meio ficam os casos de visitas esporádicas, sem que a criança doente as sinta com gratidão, porque mal subsiste qualquer contacto afectivo ou este não é susceptível de ser restabelecido. A
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possibilidade de levar o deficiente da instituição durante as férias existe, mas a sua efectivação comporta muitas dificuldades. A desabituação em relação à criança e aos seus sintomas instala-se muito rapidamente. O confronto, de novo, com todas as dificuldades sufoca com frequência a alegria do reencontro. Através do crescente desenvolvimento físico ocorrido entretanto, a criança tornou-se estranha à família. Além disso, viveu-se muito tempo sem a sobrecarga da doença e das suas consequências. Por outro lado, a criança, que para já redescobriu a sua família, a sua casa, as suas refeições habituais (a sua memória afectiva, espantosamente bem desenvolvida, facilita-lhe extraordinariamente o reencontro), desenvolve todas as suas perturbações de comportamento anteriormente reveladas, após uma fase maior ou menor de «estar feliz - contente - portar-se bem». As férias acabam por ter de ser interrompidas mais cedo e por esse motivo tornam-se cada vez mais raras com o decorrer do tempo.
Não há dúvida de que nos sistemas dos estabelecimentos de ensino especial com internamento muito haveria a fazer, com vista a aliviar e humanizar a vida dos deficientes. Melhor alojamento, assistência mais intensiva, encorajamento mais consequente na actividade pretendida, em resumo, todas as medidas para elevação ou manutenção do nível fracassam com frequência devido à falta de pessoal adequado, de espaço, de edifícios, e, sublinhe-se, à falta de convicção da necessidade de tal assistência. Uma vez que jovens e adultos com deficiência mental continuam a ser colocados em estabelecimentos psiquiátricos e aí, a maior parte das vezes, em enfermarias com assistência menos intensiva, a consequência é, infelizmente, com demasiada frequência, um atraso intelectual definitivo.
Neste aspecto, existem actualmente muito poucas possibilidades de colocação em residências para deficientes, motivo por que os estabelecimentos de assistência psiquiátrica funcionam como ultima ratio. Uma vez que o motivo imediato para o acolhimento num estabelecimento psiquiátrico são as importantes perturbações de comportamento com frequentes quadros de irritabilidade, este tipo de colocação parece natural em princípio, mas mais tarde esta solução do problema é frequentemente lamentada, sem que seja possível corrigir a decisão então tomada devido a falta de melhor oferta em termos de acolhimento.
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A exigência de separação dos serviços destinados a deficientes mentais dos destinados a doentes psíquicos é, por isso, compreensível e fundamentada, mas actualmente manifestamente difícil de realizar. Neste aspecto, apenas vemos possibilidades se os serviços para deficientes tiverem continuação de acordo com a idade, na sua própria organização, dentro do seu sistema específico. O facto de o defi ciente, com a idade, desenvolver outros sintomas, outro comportamento, mas também um aspecto externo diferente, é o que justamente exige também novas formas de assistência!
26.10 A PROBLEMÁTICA DO ENVELHECIMENTO
A puberdade, mesmo para a pessoa saudável uma fase de insegurança acrescida nas dimensões física e psíquica, as quais apenas dificilmente consegue dominar e, com frequência, sob grandes dificuldades, receios e perigos, é para o deficiente mental um período difícil ou mesmo o mais difícil da sua vida, por motivo da discrepância entre a tempestade das sensações físicas e as limitadas possibilidades de as compreender e elaborar mentalmente. Deve ser energicamente sublinhado que estes problemas não atingem apenas o campo sexual; tem início já na puberdade uma diminuição, muitas vezes muito rápida, das capacidades mentais, do raciocínio, mas também da vontade de formação. Também em campos especificamente físicos, com o último «surto» de crescimento em altura, tem início uma fase de reduzida actividade física. Pensemos na «corcunda postural» e nas constantes chamadas de atenção de «endireita-te», que nesta fase é quase impossível, e que é ainda mais dificultada pela atitude psíquica. O jovem deficiente conhece nesta fase também o seu «outro ser», as suas reduzidas possibilidades sociais, profissionais e humanas. Uma espécie de «vergonha» acentua o seu porte deficiente. É igualmente típico que nesta fase também a linguagem fique limitada, totalmente ao contrário das expectativas do meio.
A transição para a idade adulta traz um reforço das referidas limitações. O peso aumenta, muitas vezes rapidamente, demasiado rapidamente; os cabelos ficam gordos, a pele suja. Borbulhas e pústulas transformam completamente o rosto. A marcha torna-se indolente, os
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movimentos dos braços mais reduzidos, chamando o deficiente, por esse motivo, mais a atenção. Isto conduz a um círculo vicioso, a uma menor actividade, isto é, a um isolamento mais profundo.
Também em deficientes físicos, sobretudo em pessoas com paralisia cerebral espástica, se desenvolve cedo uma tendência nítida para artrose nas grandes articulações, confirmável radiologicamente, bem como uma crescente rigidez na musculatura das extremidades e do tronco. O rosto «contraído», particularmente ao falar, combinado com a altura da voz, entretanto nitidamente alterada, tornam o aspecto externo mais marcado pela deficiência.
Sobretudo no caso de deficientes mentais, e de entre estes sobretudo em mongolóides, verifica-se com frequência enorme aumento de peso no início da idade adulta. As nossas observações em mongolóides de 20-25 anos revelaram que nesses 5 anos o peso aumentou em média cerca de 30%.
A elevação do diafragma provoca sobrecarga da circulação. O aumento de peso deve-se em parte à comida abundante. A dieta do dia-a-dia é demasiadamente rica em gordura e hidratos de carbono. A comida como ocupação em caso de inactividade, bem como para acalmar, é uma evolução típica. «A pobre criança não pode fazer mais nada que comer», é uma frase que se ouve com demasiada frequência.
Sabemos que, em caso de mongolóides, a capacidade auditiva e a acuidade visual se reduzem com frequência rapidamente, e que, para o processo de envelhecimento precoce, são responsáveis entre outros processos arterioscleróticos.
Não se pode dizer ainda com clareza em que medida processos de atrofia cerebral ou leucomalácia têm um papel importante; provavelmente trata-se de um acontecimento misto organo-neurológico.
Decisivo para o dia-a-dia é, contudo, o facto de as coxofemurais de um mongolóide de 25 anos de idade corresponderem, na sua estrutura óssea e nas suas funções articulares, às coxofemurais de unia pessoa de 65 anos, o que explica a inactividade crescente.
Aqui, é necessário salientar com a maior ênfase que este processo do envelhecimento de pessoas com lesão cerebral - correspondendo isso inteiramente ao envelhecimento da média das pessoas, ainda que, naturalmente, adiado no tempo, - depende em grande medida do que acontece nesta fase com ele e por seu intermédio.
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O princípio «descansar é enferrujar», é aqui de consequências inexoráveis.
O afrouxamento da actividade física e mental conduz necessariamente à regressão. A mudança diária de bastidores, a ida para o trabalho, a organização dos tempos livres são por isso motivos, imprescindíveis para uma permanente promoção da actividade física e mental. A este propósito refira-se o seguinte:
A cadeira de rodas tem, na vida do deficiente físico, um valor perfeitamente simbólico. Se uma pessoa deficiente, que até então conseguia mover-se livremente, podendo deslocar-se sozinha, passar a estar mais sentada na cadeira de rodas, isso constituí desde logo um enorme alívio para os assistentes, que muitas vezes já não conseguem ter forças para a conduzir permanentemente, uma vez que eles são com frequência menos corpulentos que os deficientes. Naturalmente, enquanto deficiente, anda-se mais rapidamente e com maior segurança numa cadeira de rodas. Além disso, a cadeira de rodas, por paradoxal que isto possa parecer, dá menos nas vistas em público, que um deficiente físico grave, que se desloca com dificuldade. Porém, e isto deve ser igualmente sublinhado, a própria actividade e a motivação para ele andar por si próprio é reduzida ao mínimo num curtíssimo período de tempo.
A puberdade foi o primeiro ponto crítico; na idade adulta chega o segundo ponto crítico, no comportamento. É, em primeira linha, a diminuição do prazer de falar, a tendência cada vez mais frequente de falar consigo próprio ou com um interlocutor imaginário, que, como se sabe, não corrige as respostas. A linguagem permanece muitas vezes espantosamente bem articulada e rápida, faltando, porém, o confronto com um interlocutor real. Os monólogos chegam a durar horas, muitas vezes numa monotonia infindável, muitas vezes mal audíveis, mas com nítidos movimentos de lábios.
O deficiente adulto coloca-se, aparentemente de modo consciente, cada vez mais fora da família. Entretanto, esta também se modificou. Os irmãos estão fora de casa, os pais estão também mais velhos, mais cansados, mais desgastados, em parte eles próprios doentes. O deficiente toma-se progressivamente mais rígido: o termo «obstinado» pode ser usado.
Têm lugar estados de irritabilidade, se, numa rotina que abranja quase todos os aspectos do dia-a-dia, houver qualquer alteração.
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Comer, evacuar, dormir, quase se transformam em acontecimentos rituais, nos quais a menor alteração desencadeia um desses estados.
Longos períodos no estado vigil são acompanhados de música, durante os quais, não obstante todas as restrições físicas, opera com inaudita perfeição o leitor de cassetes ou o gira-discos. Fixo em determinadas actividades, cassetes ou discos, intérpretes ou sons, acompanhando com movimentos oscilatórios estereotipados, passa-se também aqui um programa rígido de modo quase ritual.
A questão sobre o que sucede a nível organo-cerebral, nesta fase, é de difícil resposta. Trata-se seguramente de fenómenos atroficocerebrais. A velocidade com que estes processos decorrem é diversa.
Contudo, presenciamos com frequência quadros de crises, que se impõem de modo semelhante a fases de transição de esquizofrenia, antes de atingirem o quadro da demência. Temos, por isso, de ter a certeza sobre estes problemas, porque as situações originariamente tratadas enquanto crianças nos aparecem agora na idade adulta. São fases nas quais se observam rigidez catatónica, teimosia, mas também alucinações, já em deficientes mentais jovens, e particularmente em mongolóides. Raramente se mantêm muito tempo e transformam-se, como já foi referido, em quadro de demência. Podemos ver e reconhecer estes episódios na vida do deficiente mental em cerca de lb% a 15% dos nossos casos. Não temos ainda qualquer explicação para o seu aparecimento. De modo muito simplificado, pensamos poder admitir que, dentro de determinada fase da vida, pode ocorrer uma dissociação da função cerebral, possivelmente com paralelismo em relação à psicose.
Em tais casos, estamos naturalmente, de novo, perante a questão da terapia e da assistência, permanecendo actualmente ambas as questões totalmente em aberto. Porém, se o deficiente sair de uma instituição para deficientes por motivo de tais fases, para entrar numa instituição psiquiátrica, isso também não se nos afigura uma solução ideal.
Profilaxia: Pode dizer-se com segurança que a questão da involução mental é também um problema de ocupação profissional e de educação.
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Conforme a criança deficiente venha a ser educada, integrada e ocupada desde muito cedo, assim se apresentará a sua vida futura. ) Nós conhecemos muitos mongolóides, que têm mais de 30 anos de idade, sem sinais de involução e sem que nos admiremos com isso, porque sabemos que têm uma vida preenchida e realizada, dentro das possibilidades. É evidente que isto depende do grau de gravidade da doença. Quanto mais leve for o quadro, tanto maior a capacidade de evolução favorável e tanto melhor a adaptação social e integração nas actividades do dia-a-dia. Contudo, também temos conhecimento do quadro de jovens e adultos a quem se exige demasiado, que quase de um momento para o outro, e após sinais prévios a maior parte das vezes ignorados ou mal interpretados, como urinar ou evacuar na cama, suspendem todas as actividades e imobilizam-se em posição quase catatónica. O problema do envelhecimento é, sem dúvida, de momento, o mais palpitante de todo o trabalho com deficientes. Assistimos cada vez mais ao crescimento e envelhecimento das crianças. A investigação terá que discutir muito intensamente estas questões. O problema de cada um e do deficiente adulto, como grupo, não pode ser solucionado com a entrega em instituições de assistência.
Com efeito, se não encontramos novos caminhos para o diagnóstico e terapia, para a actividade profissional para a acção, será verdade o que nem só os pais, mas também os professores, educadores, psicólogos e políticos receiam, isto é «morrer com vinte anos, ser enterrado com sessenta».
Capítulo 27
GENÉTICA HUMANA
O trabalho de diagnóstico, terapia e pedagogia terapêutica, com crianças deficientes só tem sentido, se todo o campo das possibilidades etiológicas de cada caso for clarificado e analisado.
Os grandes progressos na profilaxia das perturbações congénitas do desenvolvimento, sobretudo nos dois últimos decénios, são devidos ao facto de ter sido possível identificar, consciencializar e compreender, do ponto de vista da anamnese e da catamnese, as anomalias da estrutura cromossómica, o modelo sindromático fixado geneticamente, o largo campo das embriopatias e das fetopatias e ainda os riscos da fase perinatal. Assim, muito do que, até há relativamente pouco tempo, era um acontecimento que atingia as famílias de um modo como que fatal, tornou-se previsível, embora nem sempre evitável. Contudo, uma vez que a prevenção precisa antes de mais da previsão, está aqui a grande oportunidade de uma medicina profiláctica no verdadeiro sentido da palavra. O «princípio do tudo ou nada» - ou a criança vive e é saudável, ou é deficiente e de qualquer modo morre, quer enquanto feto no útero, ou o mais tardar após o parto - defendido conscientemente ou desejado subconscientemente pela obstetrícia, já não pode ser hoje aceite. Já atrás referimos que essa ideia é, em princípio, falsa e irrealista. A investigação a nível mundial demonstrou inequivocamente o perigo de tais interpretações, embora esporadicamente ainda se oiçam opiniões desta natureza. A descoberta de um grande número de factores patogénicos nas fases pré-, peri- e pós-natal da criança, mas sobretudo a citogenética moderna, permitem reconhecer hoje a noção de risco como o eixo central do pensamento profiláctico.
Os modernos sistemas de prevenção, como por exemplo o passe
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mãe-Filho, indicam os riscos a ter em atenção, devendo ser objecto de acompanhamento intensivo da grávida e do seu filho. Estando a paleta de riscos no âmbito da informação médica, ainda hoje colocada de modo demasiado estreito, reconhecendo, quando muito, os riscos perinatais devidos a asfixia, torsão do cordão umbilical, aspiração do líquido amniótico, etc., mas sendo, em contrapartida, o nascimento precoce enquanto tal, muito menos reconhecido como risco, o facto de a capacidade de prognóstico da amniocentese nas observações cromossómicas do feto se estabelecer como método de rotina de um modo lento, demasiado lento, deve, não obstante, ser considerado e louvado como um grande progresso, embora desse modo o número de factores de risco não se encontre ainda esgotado. É importante, neste ponto, continuar a reflectir no facto de a consulta e a profilaxia ainda hoje, na maioria dos casos, só serem procuradas se existir, ou já tiver existido na família uma criança com perturbações de desenvolvimento. É já um progresso se aos irmãos desta criança deficiente for proporcionada uma consulta desta natureza. Assim, estamos hoje ainda muito longe de ver a consulta de genética humana entendida como uma consulta no sentido mais lato do termo, a qual de forma alguma deve ser limitada apenas à insistência na palavra «genética».
O quadro que se segue apresenta um panorama de 600 famílias com mais de uma criança deficiente:
Nº de crianças deficientes mentais por famíliaFamílias
N° %FilhosN° %2 crianças deficientes mentais55191,83110284,763 crianças deficientes mentais294,83876,694 crianças deficientes mentais71,16282,155 crianças deficientes mentais61,00302,306 crianças deficientes mentais20,33120,927 crianças deficientes mentais20,33141,078 crianças deficientes mentais10,1680,619 crianças deficientes mentais10,1690,6910 crianças deficientes mentaisI0,16100,76Total6001300Esta exposição, elaborada em 1976, é constituída por observações feitas em famílias, das quais 90% compreendidas nos anos de
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1956-1970. Somente 10% foram efectuados entre os anos 1971 e 1976. Isto significa evidentemente que, em anos transactos, havia ' essencialmente mais informação e aconselhamento; contudo, permite também admitir que seria eficaz uma melhor informação. Também a possibilidade de interrupção legal da gravidez deve ser entendida como um factor de diminuição destes números. A possibilidade da amniocentese tem, evidentemente, também o seu peso. A partir do líquido amniótíco obtido por punção, no final do 3.' mês da gravidez, os cromossomas do feto podem ser cultivados e analisados. Deste modo, podem ser diagnosticadas perturbações congénitas, como o mongolismo, num momento em que é ainda possível a interrupção da gravidez.
Do conjunto de doentes com o sindroma de Down, num total de mais de 2500 crianças, podemos afirmar com segurança, que as curvas geralmente conhecidas e mundialmente idênticas, relativas à distribuição da idade das mães de crianças mongolóides, já não são válidas hoje para o nosso campo de estudo, e que as mães, com mais de 40 anos de idade, há dois anos que já não aparecem assinaladas na nossa estatística - embora com duas excepções; estas com motivos diferentes: num dos casos a mãe recusou a amniocentese por convicção de manter a gravidez mesmo que a criança fosse mongolóide, no outro caso a amniocentese foi recusada contra a vontade da mãe, devido a referência a pretenso perigo por parte do obstetra.
Deve referir-se que, naturalmente, através da amniocentese somente podem ser diagnosticados os sindromas que são devidos a anomalias cromossómicas.
Relativamente ao diagnóstico pré-natal de perturbações congénitas do desenvolvimento, condicionadas por anomalias metabólicas, existem actualmente ainda poucas possibilidades e, mesmo tecnicamente, não se conseguiu ainda a simplicidade e precisão que seriam desejáveis e necessárias a um exame de rotina. Os estudos feitos nos pais em risco limitam-se actualmente, no melhor dos casos, a um número muito restrito de síndromas. Não há dúvida de que o fulcro da metodologia da investigação deverá orientar-se nesta direcção.
As possibilidades de obter sinais de factores predisponentes conjugados constitucionalmente, com o auxílio de métodos de observação morfométrica, foram apresentadas de um modo impressionante por H. SEIDLER, a propósito do sindroma de Down. Pensamos que a
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consulta de genética humana deve incluir a observação dos pais e, neste domínio, podem sem dúvida ser encontradas respostas. Sem dúvida vivemos hoje numa época que, nos aspectos médico, biológico, higiénico, social, económico e político garante condições para o desenvolvimento de uma criança, desde que é gerada até à idade adulta que, até agora, não existiam. Da frase, «para que oteu filho não seja nenhum acaso», passando por uma mortalidade infantil profundamente reduzida, até à segurança social dos jovens e adultos, são dadas muitas possibilidades. A questão sem dúvida é: Serão estas possibilidades aproveitadas? O nível de informação da população e a sua consciência de saúde estarão tão ampla eprofundamente desenvolvidos que as possibilidades que existem são utilizadas plenamente?
Se estamos em condições de eliminar quase por completo alguns quadros patológicos, antigamente relativamente frequentes, levanta-se, contudo, a questão, se o nosso tempo, com todos os aspectos tecnológicos positivos e negativos, não representa novos factores de risco que implicam novas anomalias estruturais da criança, talvez só perceptíveis em gerações futuras. É também tarefa da consulta de genética humana chamar a atenção para possíveis factores patogénicos, que podem desenvolver-se mesmo a partir das modernas tecnologias químicas e físicas.
Mas, a consulta de genética humana significa também a necessidade e o dever de acabar com as inquietações e angústias da família do doente. No âmbito de uma consulta familiar detalhada, o planeamento familiar receberá, por isso, as suas indicações, conselhos e medidas preventivas com base na experiência científica e nos resultados da observação do caso particular ou dos pais, de modo que nasça aquela confiança que garante o melhor acompanhamento possível da gravidez.
Temos que começar hoje mesmo nas escolas com o esclarecimento de teor biológico, para que a sociedade futura cumpra a sua tarefa geradora com adequada responsabilidade e escrupulosidade, o que somente pode resultar de uma consciência de saúde realista!
Na primeira edição deste livro, afirmava-se que era utópico dispor de uma análise cromossómica de todas as pessoas. Mas a amniocentese tornou real pelo menos uma parte desta utopia.
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A consulta de genética humana baseia-se num conhecimento que, nos últimos anos, aumentou bruscamente, acerca das causas das perturbações do desenvolvimento. Em comparação com o destino, anteriormente aparentemente inevitável, cuja origem jazia numa obscuridade mística, ou estava dominada por uma teoria radical e hereditária orientada ideologicamente, têm-se hoje conhecimentos essenciais que advêm do conhecimento sobre os cromossomas e a sua estrutura, sobre os processos metabólicos, e processos de desenvolvimento intra-uterino embrionário e fetal, sobre os processos antes, durante e após o nascimento, mas também da situação social ou da combinação de vários destes factores. Todos estes conhecimentos devem ser usados no quadro de uma política moderna de saúde. Podem ser utilizados como profilaxia no sentido mais restrito e mais lato do termo. Contudo, são também importantes para desfazer preocupações e angústias relacionadas com o desenvolvimento do feto. A consulta de genética humana não é hoje ainda aquele instrumento amplamente usado como nós desejamos; a maior parte das vezes, só se recorre a ela quando já ocorreu numa família uma perturbação de desenvolvimento. Ela pode e deve, em qualquer dos casos, indicar, qualificar e em parte quantificar riscos.
A palavra «eugenia», tão gasta e frequentemente mal compreendida, é, para nós, praticamente a genética humana aplicada. A consulta de genética humana não pode hoje consistir em dizer a um casal: «Nada irá acontecer». É preciso que os conhecimentos cientificamente comprovados sejam transpostos para a prática. Negar, ou ignorar perigos seria um erro médico. Contudo, seria contradizer todas as experiências científicas admitir que, através das medidas de genética humana, pudessem alguma vez ser evitadas todas as lesões na sua génese. Até mesmo se um dia for possível preparar e alterar genes, continuará provavelmente a haver quadros patológicos de origem genética, dado que há ainda muito para entender no organismo humano, para já não falar do que é possível manipular do exterior; há ainda demasiados factores desconhecidos a actuar no processo biológico «fecundação e maturação». Contudo, os conhecimentos, dados como seguros, devem ser aplicados, mesmo que seja insignificante o número das possíveis lesões evitáveis, perante o número total dos afectados. No campo da medicina humana não pode haver nenhuma medida considerada negligenciável.
Capítulo 28
EUGENIA - SIGNIFICADO OU FALTA DE SIGNIFICADO
FRANCIS GALTON, o fundador da investigação genética moderna, criou em 1883 o conceito de «eugenia».
O célebre investigador de genética, Dr. S. PENROSE (1970), escreveu: «Embora eu tenha admirado sempre Galton como cientista e, embora o seu objectivo pareça sensato e humano, nunca consegui estar de acordo com a ideia da eugenia».
GALTON descreveu uma vez o futuro de uma sociedade em que os jovens e as jovens são seleccionados e unidos pelo Estado, os quais, considerando as suas qualidades físicas, psíquicas e mentais, devem formar uma elite.
Estas ideias de um «aperfeiçoamento da raça», análogas às que mais tarde foram concretizadas, aliás sob outros sinais políticos, no «alvorecer» do nacional-socialismo, foram muito bem acolhidas em largos círculos da população. Estas e outras reflexões semelhantes podem ser agrupadas sob o conceito de «eugenia positiva» (ver abaixo).
Mas o que é, de facto, a eugenia? GALTON definia-a da seguinte maneira: «A eugenia trata, por um lado, de todas as influências e medidas que aperfeiçoam a qualidade hereditária do homem, devendo, por outro lado, ocupar-se das influências que levam as qualidades hereditárias a desenvolver-se o melhor possível» (Tradução moderna e um pouco livre de H. BAITSCH).
A ideia da eugenia positiva culmina no desejo de gerações no sentido de aperfeiçoar a raça humana, mantê-la saudável, impedir a
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sua «decadência eminente». Surgem aqui as primeiras dificuldades desta utopia. PENROSE coloca a esse respeito duas questões, que tornam evidente o absurdo deste projecto:
1. Que espécie de indivíduo é o desejável?
2. As mutações genéticas podem ser efectuadas de tal modo que todos os indivíduos revelem as melhores qualidades possíveis?
As experiências para a realização de uma eugenia positiva são, sem dúvida, equiparáveis a experiências inadmissíveis de manipulação humana, não podendo, no entanto, fazer-se qualquer confusão com a consulta de genética humana. Continua-a haver pessoas que defendem a ideia de que se podiam excluir da comunidade reprodutora as pessoas portadoras de predisposições hereditárias patológicas, com vista a conseguir-se uma sociedade como que «hereditariamente pura».
Se se seguir este raciocínio e isso for feito, resulta forçosamente que tenham que ser adoptadas medidas com vista a impedir a reprodução por parte de pessoas com predisposição para ou com doença hereditária.
É evidente: se se eliminarem doentes - ou melhor, todos aqueles que, eventualmente, sofram de doença hereditária, ou em cujas relações de parentesco se descubram anomalias hereditárias - são afastadas as predisposições hereditárias negativas da constituição genética global de uma população, sendo atingido o objectivo de uma sociedade «saudável».
Na segunda metade do século passado, foram criadas as bases das chamadas leis da saúde hereditária que encontraram a sua realização, sem amargura, no nacional-socialismo. O médico alemão A. PLOETZ introduziu o conceito de «higiene da raça», que substituiu a expressão sem valor «eugenia». Impregnado da angústia de dificilmente poder evitar a decadência iminente da civilização humana, surgiu em 1883 o trabalho sobre a degenerescência física, da autoria
de W. SCHALLMEYER.
SCHALLMEYER traçou no ano de 1933 o caminho para a lei sobre a profilaxia da nova geração com doenças hereditárias. Esta lei sobre a hereditariedade da saúde é comentada, con-
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forme se segue, por GUETT, RUEDIN e RUME: «Não são os aspectos económicos que estão em primeiro plano, mas a vontade determinada do nosso governo de limpar o corpo do povo e de eliminar, a pouco e pouco, as predisposições hereditárias patogénicas. É o início da prevenção a favor das gerações futuras, para construir um futuro melhor e mais saudável para os nossos filhos e para os filhos dos nossos filhos. A lei deve ser, portanto, entendida como uma brecha nos escombros e na pusilanimidade de uma concepção ultrapassada do mundo e de um amor ao próximo exagerado e suicida dos séculos transactos; é, contudo, também, algo de diferente, o que adquire significado como conteúdo base da lei, nomeadamente o primado e a autoridade do Estado, que ele se reservou decisivamente no domínio da vida, do casamento e da família».
Não há dúvida que, em largos círculos da população, paira ainda como um fantasma o receio de «uma nova geração com doenças hereditárias». «Aquele devia ter ainda mais outro filho?».
Deixemos de lado, por enquanto, demonstrações científicas contra este tipo de reflexões; pensemos um pouco nas consequências práticas que daqui poderiam resultar.
Na lei de 14 de Julho de 1933, havia também um impresso que podia ser utilizado por qualquer cidadão; no impresso, que era um formulário de denúncia, lia-se, entre outras coisas: «o ou a é suspeito de sofrer de ... Baseio-me, neste caso, nas seguintes observações:»
Isto não precisa de mais comentários. Mas haveria então alguém que, nestas circunstâncias, conseguisse ficar ao abrigo de uma esterilização forçada?
Esta lei não foi uma novidade do nacional-socialismo, novidade foi apenas a perfeição glacial com que ela foi aplicada. Já em 1928 foi promulgada uma lei semelhante no Cantão Suíço de Waadt, em 1929 uma idêntica na Dinamarca; em vários estados confederados dos Estados Unidos, a esterilização também se encontrava legalmente regulada, em caso de indicação genética (doença hereditária ou que, pelo menos naquele tempo, era considerada como tal). Contudo, em Oklahoma, por exemplo, entre 1931 e 1935 só foram esterilizadas ao todo 8 (!) pessoas.
Hoje, terra-se conhecimento que todos estes conceitos eugénicos passaram à história e foram, demasiadas vezes, a expressão de unia ideologia disfarçada filosoficamente por cientistas e políticos. O pré-
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mio Nobel J. H. MULLER referiu-se uma vez à «carga do gene» que cada pessoa, mesmo a mais saudável, tem que suportar. Ele queria dizer com isto que cada pessoa tem uma série de predisposições hereditárias as quais, através de uma combinação aleatória com o património do parceiro, podem ocasionar graves lesões nos filhos. Qualquer nova combinação do património paterno e materno, qualquer procriação, portanto, contém o risco de um filho com doença hereditária. Nunca seremos capazes de tirar esta carga do nosso gene. O que, sem dúvida, não se consegue - e para isso foram levados ad absurdum todos os desejos de medidas legais - é libertar a carga do nosso gene. Mesmo que, apenas teoricamente, isso fosse possível, seria insuficiente. Mantêm-se ainda as chamadas mutações espontâneas que podem surgir por acaso, mesmo em pessoas hereditariamente saudáveis. A certeza, de facto, de que já não existe nenhuma nova geração com doença hereditária, só existe quando for esterilizado o último homem, mas isso seria também o fim da humanidade.
Mas passaríamos à margem da realidade se admitíssemos que os riscos, as cargas genéticas, são iguais em todas as pessoas. O estado actual dos conhecimentos científicos sobre genética permite a determinação de probabilidades que fazem prever uma criança com afecção genética hereditária, no caso de uma determinada união conjugal. A diferença em relação às exigências da listagem de medidas eugénicas é que o médico ou geniticista apenas pode dar um conselho, uma vez que numa consulta de genética humana não devem, desde logo, ser recomendadas, ou de modo algum, exigidas quaisquer medidas. A anamnese familiar permite fazer um prognóstico dos riscos possíveis, mas a responsabilidade, a própria decisão fica sempre ao critério de quem procura o conselho.
Teoricamente, hoje já seria possível fazer desaparecer comple tamente o mongolismo, se todas as grávidas tivessem a possibilidad, de fazer a análise do líquido amniótico. Contudo, mesmo em face d um resultado positivo, no caso de prova desta anomalia cromossómic, deve ser a própria grávida a decidir se deseja ou não uma interrupçã da gravidez. Ninguém pode, sem o seu pedido de ajuda, influenci, -ia. Não são raras as mães que, apesar da prova do «mongolismo decidem continuar a sua gravidez. Neste caso, o exame é uma oportunidade para se preparar de um modo planeado para a situação futura.
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Continua a ouvir-se, demasiadas vezes, que os conhecimentos modernos resultantes da investigação médica levam a que possam continuar a reproduzir-se mesmo aqueles que, há poucos anos ainda, estavam excluídos do processo reprodutivo e que, desse modo, acumulação de predisposições hereditárias prejudiciais e patogénicas aumentaria acentuadamente no conteúdo genético global de uma população.
Não deve negar-se que se produz uma incidência de tais predisposições hereditárias. Pensemos na já tratada fenilcetonúria. Alterações na alimentação, ou a observação de prescrições dietéticas retiraram à doença quase toda a sua ameaça imediata para a saúde e inteligência. Pessoas afectadas atingem a idade reprodutora, têm descendentes e transmitem-lhes naturalmente a predisposição patogénica. A genética da população desenvolveu princípios matemáticos, mediante os quais é possível determinar quantas gerações podem decorrer, até ser de facto comprovado um aumento significativo deste gene; calcularam-se para isso, pelo menos, 2000 anos. O que é que nós sabemos, no fundo, sobre aquilo que o progresso da medicina irá alcançar em tão longo período de tempo? Se o desenvolvimento continuar tão rápido, e duvidar disso seria irrealista, pode esperar-se, com alguma certeza, que esta e outras doenças hereditárias (damos como exemplo as perturbações do metabolismo) - para falar de um modo muito simples - serão tratadas, através de meios terapêuticos com tanta facilidade como muitas outras doenças infantis.
Deve, além disso, referir-se que o carácter humanitário de uma sociedade também é aferido pela medida em que ela está disposta a compartilhar o peso da doença do «ser diferente» dos seus concidadãos.
Contudo, o conceito de eugenia não deve ser completamente rejeitado; devemos simplesmente modernizá-lo, dar-lhe um novo conteúdo como faz H. BALTSCH: «O que nos resta fazer não é esperar por utopias, mas dar uma multiplicidade de pequenos passos; uma tarefa importante é a profilaxia da mutação, nomeadamente através de um reforço da protecção contra radiações e através da investigação dos genes de mutação... teremos que intensificar, mais do que até agora, a investigação em matéria de ambiente com o objectivo de reconhecer todos os factores ambientais que, na sua maioria, foram criados por nós e que, de um modo geral ou parcial, excedem a norma de reacção hereditária determinada, na espécie humana.
Capítulo 29
EUTANÁSIA
Esta palavra não perdeu a sua força explosiva. Usada abusivamente por um regime político criminoso, tornou-se sinónimo de vida sem valor, demasiado destrutiva.
Sabemos que, traduzida literalmente, a palavra eutanásia significa «morte linda». Com uma carga sem dúvida muito negativa na nossa sociedade, é apenas discutida em casos isolados quando a ela se recorre como motivo para a chamada morte por clemência.
Nós comparamos a vida de uma criança com lesão cerebral a um muro. Basta tirar uma só pedra desse muro para a estabilidade de todo o muro ser posta em perigo. Isto significa que não nos cabe extinguir a vida, recusando o apoio possível. Enquanto um ser humano tem forças para viver nós somos obrigados a defender a sua vida. Contudo, se não dermos aos familiares, que têm que cuidar e defender esta vida, as condições materiais e ideais que tornem este destino suportável, então isso deve ser considerado como uma eutanásia passiva. Ela é tão condenável como a eutanásia activa.
Todavia, queremos também afirmar que deve ser reservada e é preciso também que continue reservada à responsabilidade consciente, à experiência e motivação ética do médico decidir, em face de uma criança moribunda, com lesão cerebral, se o tratamento médico, que apenas adia temporariamente a morte, deve ser mantido ou interrompido.
Capítulo 30
ASPECTOS DO DIREITO SOCIAL
Num período de dez anos, a situação legal das crianças, jovens e adultos deficientes sofreu alterações fundamentais no nosso país, assim como na RFA e na Suíça.
Estas medidas dizem respeito, sobretudo, à segurança material do deficiente e da sua família.
O peso do acréscimo de despesas foi reduzido claramente. No caso da Áustria, independentemente do rendimento familiar, é pago um abono de família cujo montante é o triplo do subsídio pecuniário concedido a crianças saudáveis.
As prestações ao abrigo da lei sobre o auxílio social e da lei sobre deficientes, garantem actualmente a realização de quaisquer medidas terapêuticas, a aquisição de meios terapêuticos, ajudas técnicas, tratamentos, bem como o transporte diário para as instituições.
Também no âmbito da segurança social, a criança deficiente com lesão cerebral, já não é hoje uma questão de generosidade, mas está abrangida pelo seguro em relação a todas as medidas terapêuticas e de diagnóstico.
O facto de, devido às importâncias, em parte consideráveis que são pagas, poder haver o perigo de a pensão ser mais desejada pelos familiares que pelo próprio deficiente, é uma manifestação acessória que deve ser combatida. Contudo, é sabido que, não raras vezes, o Estado procura livrar-se dos problemas da integração profissictial, mediante o pagamento regular de pensões.
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Também as questões da maioridade, isto é da responsabilidade no sentido legal, foram novamente discutidas, e uma lei sobre a nomeação de representante legal adaptada às condições actuais irá trazer benefícios reais. Este progresso do direito social afasta-nos, definitivamente, da dependência da caridade pública ou privada para aquela justiça social que, naturalmente, deveria existir num Estado sócio-humanitário.
ÍNDICE
Prefácio à 1.ª edição ..................... V
Prefácio à 5.ª edição, completamente refundida e acrescentada ..................... VII
Posfácio à 1.ª edição ..................... XI
Posfácio à 5.ª edição ..................... XIII
Cap. 1: A criança com lesão cerebral. Noção e definição ............ 1
Cap. 2: Normalização e integração como objecto a atingir ......... 7
Cap. 3: Frequência ...................... 13
Cap. 4: Causas .........................27
4.1 - Lesões antes do parto (pré-natais) ............. 28
4.1.1 - Perturbações de origem hereditária (Genopatias) .............. 29
- Mutações de um único factor hereditário (mutações
Genéticas) ....................... 30
4.1.1.1- Mutações cromossómicas ........................ 34
4.1.2.1 - Aberrações numéricas (mutações referentes ao
número de cromossomas) .............. 34
4.1.3 - Lesões devidas a infecção da grávida ............ 36
4.1.3.1 - Embriopatias víricas ..................... 37
4.1.3.2 - Infecções víricas do feto ................... 37
4.1.4 - Embriopatias por intoxicação (lesões devidas a produtos químicos) .... 39
4.1.5 - Lesões devidas a noxas físicas .............. 41
4.1.6 - Lesões devidas a perturbações hormonais ........... 44
4.1.7 - Nicotina e álcool ................ 45
4.1.8 - Estupefacientes na gravidez ............ 46
4.1.9 - Lesões devidas a insuficiente ou deficiente nutrição da mãe .......... 47
4.1.10 - Lesões devidas a "stress" psíquico .................. 48
4.1.11 - Incompatibilidade de grupos sanguíneos ............... 49
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4.1.12 - Hemorragias no início da gravidez ............ 52
4.2 - Lesões perinatais ............ 53
4.2.1 - Lesões devidas a falta de oxigénio ............ 53
4.2.2 - Parto pré-termo ............ 55
4.2.3 - Cuidados de obstetrícia ............ 58
4.3 - Lesões após o termo do período neonatal (lesões pós-natais) ......... 60
4.3.1 - Infecções ............ 60
4.3.2 - O trauma cranio-encefálico ............ 62
4.3.3 - Processos degenerativos e atróficos do sistema nervooso central .......... 63
4.3.4 - Lesões devidas a causas psicossociais ............ 64
Cap. 5: Observações e diagnóstico ............ 67
Cap.6: Anamnese ............ 71
6.1 - Anamnese familiar ............ 71
6.2 - Anamneseginecológica ............ 72
6.3 - Anamnese do parto ............ 73
6.4 - Vida do doente ............ 73
6.5 - Anamnese das convulções ............ 74
Cap. 7: Exame neurológico e pediátrico ............ 77
7.1 Cabeça ............ 77
7.2 - Pescoço e tórax ............ 80
7.3 - Baixo ventre ............ 80
7.4 - Exame das extremidades ............ 81
7.5 - Região genital ............ 83
7.6 - Observações do desenvolvimento neurológico ............ 84
Cap. 8: Métodos de observação biofísicos ............ 85
8.1 - Electroencefalografia (EEC) ............ 85
8.2 - Electromiografia (EMG) ............ 88
8.3 - Análises da marcha ............ 89
8.4 - Diagnóstico radíológico ............ 90
8.5 - Tomografia computorizada (TAC) ............ 90
8.6 - Arteriografia ............ 91
8.7 - Ecografia cerebral ............ 91
8.8 - Cintigrafia cerebral ............ 91
8.9 - Transiluminação do crânio ............ 92
8.10 - Provas da audição e da visão ............ 92
8.11 - Análises de sangue ............ 93
8.11.1 - Teste da Toxoplasmose ............ 94
8.11.2 - Reacções de Lues ............ 94
8.11.3 - Teste de Guthrie ............ 95
8.11.4 - Exame da tiróide ............ 95
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8.12 - Análise da urina .............. 96
8.13 - Exame citológico ..............96
8.14 - Métodos de observação antropológica .............. 97
Cap. 9: Métodos de diagnóstico psicológico .............. 101
9.1 - Testes de realização .............. 104
9.2 - Testes psicométricos da personalidade .............. 111
9.3 Testes de projecção da personalidade .............. 112
Cap. 10: Entrevista com os familiares .............. 117
Cap. 11: Sintomas e sindromas .............. 121
Cap. 12: Multideficiéncia .............. 125
12.1 - Sindroma de Down (mongolismo) .............. 126
12.1.1 - Sintomas .............. 127
12.1.2 - Graus de gravidade .............. 128
12.1.3 - Prognóstico .............. 128
12.2 - Sindroma da estereotipia (síndroma da hiperamo
-niémia) segundo A. Rett .............. 129
12.3 - A chamada encefalopatìa .............. 130
12.4 - Anomalias do sistema nervoso central .............. 131
12.4.1 - Afecções degenerativas do sistema nervoso central .............. 131
12.4.2 - Sindromas malformativos .............. 132
12.4.3 - Fetopatias .............. 132
12.4.4 - Perturbações hereditárias do metabolismo .............. 132
12.4.5 - Aberrações cromossómicas .............. 133
Cap. 13: O intelecto perturbado .............. 135
Cap. 14: Disfunções nas capacidades de aprendizagem .............. 141
14.1 - Dislexia .............. 144
14.2 - A dislexia nas crianças com atraso mental .............. 147
Cap. 15: A disfunção cerebral mínima .............. 155
15.1 - Perturbações motoras .............. 157
15.1.1 - Agitação psicomotora .............. 157
15.1.2 Movimentos coreiforme-atetóides .............. 158
15.2 - Perturbações do comportamento .............. 158
15.2.1 - Autismo infantil .............. 167
Cap. 16: A motricidade perturbada .............. 171
16.1 - Fisiologia do movimento .............. 171
16.2 - Patologia do movimento .............. 174
16.2.1- Perturbações da via da motricidade voluntária ............ 174
16.2.2 - Perturbações do sistema extrapiramidal .............. 180
Cap. 17: Paresia cerebral minima .............. 185
Cap. 18: As crises convulsivas (epilepsias) .............. 187
18.1 - Origem das crises convulsivas .............. 199
Cap. 19: Perturbações dos órgãos dos sentidos .............. 205
358
19.1 - Perturbações da visão ............................. 206
19.2 - Perturbações da audição ............................. 210
Cap. 20: Perturbações da fala ............................. 215
Cap. 21: O sono ............................. 221
Cap. 22: Enurese e encoprese ............................. 225
22.1 - Enurese ............................. 225
22.2 - Encoprese ............................. 227
Cap. 23: A alimentação ............................. 229
Cap. 24: A dentição ............................. 233
Cap. 25: Métodos de tratamento ............................. 239
25.1 - Terapia das perturbações de movimento de origem
25.1.1 - neuromotora ............................. 239
Tratamento das paralisias cerebrais espásticas ............................. 240
25.1.2 - Tratamento das crises convulsivas ............................. 244
25.2 - Utilização de ajudas técnicas ............................. 248
25.3 - Terapêutica ocupacional ............................. 249
25.4 - Musicoterapía ............................. 250
25.4.1 - Tarefas da musicoterapia científica ............................. 253
25.4.2 - Musicoterapia prática no caso da criança com lesão cerebral .................... 252
Metodologia da musicoterapia ............................. 256
25.4.4 - Musicoterapia para apoio de outros métodos terapêuticos .......................... 257
A formação dos musicoterapeutas ............................. 258
25.5 - Psicofármacos, vitaminas e hormonas ............................. 259
25.5.1 - Substâncias psicoenergéticas 260
25.5.1.1 - Neurolépticos, tranquilizantes ............................. 262
25.5.1.2 - Neurolépticos ............................. 263
25.5.1.3 - Tranquilizantes ............................. 264
25.5.1.4 - Soporíferos ............................. 265
25.5.2 - Vitaminas ............................. 266
25.5.3 - Tratamento ............................. 266
25.6 - Possibilidades de tratamento neurocirúrgico ............................. 268
25.7 - Outros métodos terapêuticos ............................. 269
25.7.1 - Métodos pseudocientíficos ............................. 270
Cap. 26: Pedagogia terapêutica ............................. 273
26.1 - O triângulo terapêutico-pedagógico ............................. 273
26.2 - Bases da educação ............................. 278
26.3 - Os jogos ............................. 283
26.3.1 - Brinquedo .............................283
26.3.2 - Companheiros de brincadeira ............................. 285
26.3.3 - Meio ambiente e comportamento ............................. 286
359
26.4 - Jardins de infância especiais .......................... 287
26.5 - A escola de educação especial .......................... 290
26.6 - Problemas de sexualidade .......................... 299
26.6.1 A puberdade do deficiente mental .......................... 299
26.6.2 - Sexualidade e comportamento sexual .......................... 302
26.6.2.1 - Experiências com pessoas com sindroma de Down ........................ 304
26.6.2.2 - Sexualidade em caso de psicosindroma orgânico .......................... 306
26.6.2.3 - Sexualidade de deficientes físicos ................................ 307
26.6.2.4 Masturbação ................................ 308
26.6.2.5 - Higiene do sono e sexualidade ................................ 309
26.6.2.6 - Orientação sobre medicamentos ................................ 310
26.6.3 - Deficientes mentais como objecto de abuso sexual ........................... 311
26.6.4 - Interrupção da gravidez e esterilização ................................ 311
26.6.5 - Informação sexual ................................ 315
26.6.6 - O direito do deficiente mental à sexualidade e ao casamento ............ 316
26.6.7 - Investigação científica ................................ 319
26.7 Profissão, trabalho, ocupação ................................ 320
26.8 - O lar e a aldeia para deficientes como forma de vida para deficientes . 324
26.9 - O estabelecimento de ensino especial com internato ............................ 329
26.10 - A problemática do envelhecimento ................................ 333
Cap. 27: Genética humana ................................ 339
Cap. 28: Eugenia - significado ou falta de significado ................................ 345
Cap. 29: Eutanásia ................................ 351
Cap. 30: Aspectos do direito social ................................ 353
CALOUSTE GULBENKIAN
Manuais Universitários
No prosseguimento dos fins gerais que a orientam, foi a Fundação levada a intervir na produção de livros portugueses, patrocinando e editando obras diversas e de diverso carácter-científico, técnico, artístico, histórico. Pretende agora, através de um plano amplo e sistemático, atingir aqueles sectores onde seja mais flagrante a necessidade de amparo ou de incentivo. Nesta primeira fase do plano estabelecido, pensou-se no ensino superior: estudantes que não encontram livros adequados e de preço acessível, professores que por vezes deparam com dificuldades para publicar as suas lições ou os seus trabalhos de investigação. A uns e outros oferece a Fundação facilidades que possibilitem a eficiência cada vez maior desse escalão fundamental da nossa cultura. Originais e traduções, mestres portugueses e estrangeiros, vão figurar nesta colecção, que se procurou rodear dos maiores cuidados e exigências técnicas.
289 volumes publicados Próximas publicações:
Fundamentos de Acaralogia Agrícola Manuela Carmona e Silva Dias
Ecologia das Populações e das Comunidades Maria Teresa Pité e Teresa Avelar
Textos Clássicos
15 volumes publicados
Em preparação:
Dei Delitti e delle Pene
Beccaria
Cultura Portuguesa 35 volumes publicados
Próxima publicação:
Obra Completa de Joaquim de Canvalho, VIII Vol.
Capa de José Antônio Flores
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